Os mil e um talentos de Anna Maria Van Schurman

por Lucas Brandão,    12 Fevereiro, 2024
Os mil e um talentos de Anna Maria Van Schurman
Anna Maria van Schurman, de Jan Lievens, 1649
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Anna Maria van Schurman nasceu em Colónia, a 5 de novembro de 1607, falecendo com 70 anos, a 4 de maio de 1678. Cresceu e desenvolveu a sua carreira e a sua vida num fulgurante século XVII, mergulhado em transformações científicas e em descobertas artísticas. A alemã teria reservado, para si, um papel distinto e lendário: o de primeira mulher a estudar numa universidade na Europa. Mergulharia em arte, na música, na literatura e no estudo de diferentes idiomas, desde os mais clássicos até aos seus contemporâneos. Do latim ao grego, do árabe ao hebreu, Schurman cresceria na cosmopolita Holanda e seria um exemplo marcante e paradigmático do que a educação feminina sempre almejou.

Apesar de nascida na Alemanha, seria na Holanda, na catedral de Utrecht, onde passaria grande parte da sua vida. Isto porque a sua família sofrera perseguição religiosa na cidade de Colónia, numa fase em que as tensões advindas entre católicos e protestantes se adensavam. A cidade de Utrecht, contextualizada numa realidade bem mais tolerante e diversa, viu-a mergulhar na aprendizagem de várias áreas do saber e dos referidos idiomas. Recebeu uma educação personalizada, em casa, à imagem dos seus irmãos, e já sabia ler aos quatro anos de idade.

Assim, beneficiou da arte da escrita, do domínio da aritmética e da capacidade de tocar alaúde e clavicórdio, para além de treinar os seus dotes vocais. Entretanto, o pai da família permitiu que Anna pudesse estudar latim, embora impedindo-a de desbravar autores com literatura mais adulta. Porém, o contacto com a poeta Anna Roemer Visscher, para além da formação dada por professores da Universidade de Leiden e de Utrecht, abrir-lhe-ia as portas para os círculos literários da sociedade neerlandesa e para o acesso a ainda mais e mais vastos conhecimentos.

O seu pai faleceria a 1623, aos 16 anos de Anna Maria, a sua única filha, numa altura em que viviam em Franker, uma pequena vila ainda nos Países Baixos. Porém, o regresso a Utrecht não tardaria e continuaria a dar volume aos seus estudos e às suas descobertas, mergulhando em artes plásticas, como os bordados, os desenhos, os recortes e, até, as caligrafias. Eram artes assumidas como pertencentes a mulheres de elites e, com elas, fazia figuras naturais, florais e animais. Embora em muito experimental, era um caminho que levava muito a sério e que até gerava alguns proveitos para a família, vendendo algumas das suas criações.

Anna Maria van Schurman, de Jan Lievens, 1649

Isso não a obstaria de fortalecer a sua rede de contactos, maiores eram os louros que colhia dos professores da cidade, sendo que muitos deles ficariam ligados à criação da universidade na cidade de Utrecht. Corria o ano de 1634 e, na inauguração, convidada para compor um poema em latim — a língua comumente utilizada em meios formais —, refletiu sobre a ausência das mulheres da academia, exortando para que mais fossem trazidas para esta; para além de mencionar o papel importante que a universidade teria na própria relação com o rio Reno, de forma a melhor conhecê-lo e se relacionar com este.

Este poema seria bem acolhido, dado que Schurman continuaria a investir na sua educação naquele organismo, para além das aulas que teria com Gijsbertus Voetius, que, entre outras áreas, lhe ensinou teologia. Aliás, seria um dos responsáveis por lhe abrir as portas para a universidade, embora nem tudo fossem rosas, pois ainda persistia alguma reticência em acolher uma mulher num ambiente académico. Assim, era colocada uma barreira que a separava dos demais alunos e a impedia de ser vista pelos demais. A “estrela de Utrecht” não deixaria de cintilar, ampliando os seus conhecimentos em árabe e hebraico, enquanto se aprofundava na filosofia e na referida teologia. Seria cortejada pelo poeta e compositor Constantijn Hugens, mas o seu celibato e a dedicação plena aos estudos levaram-na a declinar a sua vontade de casar.

Esta sua ligação bastante estreita com a academia levou-a a redigir imensos ensaios de temas vários, mas nos quais se integra o papel (e as potencialidades) da mulher no estudo das artes e das ciências. Aliás, esta seria uma das bandeiras do seu percurso, sobre as quais até discutiu com o filósofo René Descartes, com quem trocou alguma correspondência. Schurman disserta sobre a temática em obra em 1641, “Dissertatio de ingenii Muliebris ad Doctrinam et meliores Litteras aptitudine”. Em todo este percurso, produziu muito mais conhecimento, desde gramáticas a poesia multilingue — em especial, a de idioma latim, mas também dos demais da quase dezena de línguas que aprendeu —, mas também estabeleceu valiosa e inúmera correspondência com figuras relevantes da sociedade europeia desses dias (daí a sua pertença ao grupo de intelectuais “de Republik der Letteren”).

Os seus dotes de artista – tanto a esculpir e a pintar como a gravar e a bordar — também seriam reconhecidos pela guilda de São Lucas, da cidade de Utrecht, da qual foi feita membro honorário em 1643, ano em que se havia licenciado em Direito. Foram competências em muito autodidatas, mas também aprimoradas com a sua amiga Magdalena van Passe, filha de um publicador e gravador conhecido de então, Crispijn van de Passe I.

Para a posteridade, ficaria, também, a “Opuscula Hebraea Graeca Latina et Gallica” (1648), que une esse potencial linguístico do seu estudo e da sua criação, mas a importante premissa que se tornou subjacente à sua vida: o direito da mulher ao conhecimento e ao estudo, compatível com as lides domésticas que faziam parte do papel social da mulher de então; e que não deviam ser substituídas. Enaletecendo a figura monárquica inglesa de Lady Jane Gray, mencionava o papel divino que a educação das mulheres possuía, um direito que lhes era concedido por serem almas racionais e humanas. De igual modo, a educação feminina — inicialmente destinada somente às das classe sociais mais elevadas — era uma forma de evitar que se praticassem pecados, contornando-se o problema da ignorância e do desconhecimento. A obra seria editada pelo professor Friedrich Spanheim, que dava aulas de teologia em Leiden, na célebre Elzeviers e que seria, ele próprio, um companheiro religioso de Schurman.

Ela, que havia sido a primeira mulher a licenciar-se na Holanda. Seria uma premissa que convocaria figuras da realeza ao convívio consigo, como a rainha Cristina da Suécia ou Maria de Gonzaga da Polónia, com quem já estabelecia correspondência durante os meados desse século XVII e sobre as quais até escreveu poesia. De igual modo, congratulava-se pelos feitos de demais mulheres como Schurman, como com Birgitta Thott, a dinamarquesa que traduziu do latim a poesia de Séneca, a anglo-irlandesa Dorothy Dury, a professora multilingue Bathsua Makin e as francesas Marie de Gournay e Marie du Molin. Como seu lema, definiu Amor Meus Crucifixus Est (em português, o meu amor foi crucificado).

O regresso a Colónia estaria próximo, por força de questões familiares, viajando para lá com o seu irmão e com as suas tias, já alguns anos após a morte da mãe de Schurman. Foi um regresso que não lhe agradou, pelo seu gosto por Utrecht e cidade à qual voltou rapidamente, fixando-se na sua periferia, na vila rural de Lexmond. Após a morte do seu irmão, continuou a desenvolver a sua atividade, incluindo a redação de poesia de teor religioso, ainda em muito visando Deus e identificando-se com o cristianismo. De igual modo, aprofundava o seu caminho artístico, usando o vidro (foi onde melhor potenciou os seus dotes caligráficos), a cera, a madeira, o marfim e, na pintura (menção para os seus autorretratos), o pastel para conseguir executar as suas obras e granjear a sua fama. No entanto, seriam inúmeros os trabalhos que, com o tempo, se iriam perdendo.

Mesmo granjeando grande atenção em torno da sociedade aparentemente mais conservadora, num alcance internacional, conviveria de perto com a efervescência protestante, convivência que justificaria na sua autobiografia escrita em latim, a “Eukleria seu Melioris Partis Electio” (seria um livro marcante, que servia de charneira entre a posição marcadamente feminista que assumia e a profissão mariana que fazia no rescaldo da sua vida, e que seria aplaudido por nomes como o académico Leibniz). Nesse contexto, em 1669, publicou o panfleto “Pensées de A.M. de Schurman sur la Reformation necessaire à present a l’Eglise de Christ” em francês, juntando-se a um grupo de amigos que tinham sido excomungados, liderados pelo pietista [um ramo mais individualista do luteranismo] Jean de Labadie.

Desencantando-se com o protestantismo convencional nos Países Baixos, juntou-se a eles e mudaram-se de bagagens para a agora Alemanha, beneficiando da tolerância e da cortesia da princesa Isabel do Palatinado da Boémia, então também abadessa de um convento formado nessa reforma protestante. Schurman havia conhecido Labadie em Genebra, por intermédio de um académico hebraico que, em Basileia, dava aulas ao seu irmão. Foi uma troca de correspondências que convenceu Schurman e vários seguidores a irem ter com ele à Alemanha e, posteriormente, a darem-lhe apoio numa fase em que Labadie quis erigir uma nova igreja em Amesterdão.

Esse clima permitiu que novas formas de viver a religiosidade se fossem exprimindo, embora, pessoalmente, Schurman acabasse por colocar de lado as suas iniciativas científicas. As celebrações beneficiavam de menor formalidade e de mais espontaneidade, havendo, até, trocas de afeto. Organizou vários encontros com ministros de cerimónias e procurou cultivar o exercício da fé nas comunidades. Constituía-se o labadismo, um movimento que fazia por voltar aos ritos da igreja primitiva, com comunidade de bens, na inspiração direta do Espírito Santo.

Porém, na mudança para os anos 1670, alguns conflitos entre os membros deste movimento forçaram nova mudança de Schurman, agora vivendo nos arredores de Hamburgo. Também seguiriam para a Dinamarca, sem granjear grande amistosidade entre os locais, em especial em relação às autoridades religiosas. Para o legado deste labadismo, ficariam escritos da sua autoria, que serviriam de testemunhos que imortalizariam o que esta nova fragrância religiosa trazia. De certa maneira, iam de encontro ao que havia escrito em 1639 em “De Vitae Termino”, reflexo dos seus estudos teológicos.

Foi como labadista — entre eles, conhecida como “Mama”, enquanto Labadie era “Papa” — que Anna Maria Schurman viria a falecer em 1678, dado que a sua cosmologia religiosa permanecia viva, algo que a distanciou dos seus antigos colegas académicos. Quatro anos antes, havia falecido Labadie e, neste período, equacionou emigrar para Inglaterra. No entanto, o reumatismo que a afligiu no final da sua vida remeteu-a para a escrita, continuando a trocar muita correspondência com teólogos e outros académicos.

Anna Maria Van Schurman foi muito mais que uma mulher do seu tempo. Foi uma das primeiras que trouxe a necessidade da mulher se envolver na intelectualidade do mundo, na arte do mundo, de fora parcialmente igualitária com o homem. Desde os seus estudos, passando pelos dotes plásticos, foi fazendo da sua carreira e da sua palavra um exemplo vivo do caminho a trilhar para sucessoras suas, ainda mais propensas a ir mais longe e a reivindicar o seu justo e autónomo estatuto na sociedade. Foi um caminho que não seria o mesmo sem as suas intermediárias e Schurman esteve por lá, em tempos tão turbulentos e vividos, entre cartas e profissões de fé. Para a história, ficam as tantas e tantas histórias que contou e que vão sendo contadas enquanto se vai descobrindo tamanha amplitude de fazeres e de feitos.

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