The Microphones no Teatro Viriato, em Viseu: exercício de memória à procura de um sentido

por Tiago Mendes,    14 Março, 2022
The Microphones no Teatro Viriato, em Viseu: exercício de memória à procura de um sentido
Fotografia de Carlos Fernandes

Diante de uma plateia praticamente esgotada, Phil Elverum (como The Microphones) subiu ao palco do Teatro Viriato, em Viseu, no último domingo; data única em Portugal, naquele que foi o primeiro concerto do artista em solo nacional desde 2011. Acompanhado de apenas um músico, e revestido pela sua característica humildade, Phil apresentou uma única música, “Microphones in 2020”, trilhando um percurso pela memória e pelo sentido da existência.

O músico entra em palco com uma postura humilde. Traz vestida uma t-shirt azul e umas calças da mesma cor; nos pés, umas sandálias abertas. O primeiro “hi!”, longe do microfone, ouve-se em toda a sala. O auditório do Teatro Viriato, em Viseu, tem um aspecto acolhedor e uma dimensão familiar: sentimo-nos em casa, e muito próximos do palco. É nesta proximidade que Phil comunica que supostamente aquele seria o momento em que ele tentaria comunicar qualquer coisa em português, mas que não o iria fazer porque, afinal de contas, o público não deve ter dificuldade de compreensão do inglês, ao dispor-se a vir ouvi-lo durante cinquenta minutos a cantar na língua materna do artista americano. Fica-se por um “obrigado” na nossa língua. E, com a guitarra acústica suportada no ombro, começa a tocar o primeiro acorde.

Fotografia de Carlos Fernandes

A música que Phil Elverum tem vindo a fazer desde meados dos anos 90, quando começa a sentir uma espécie de chamamento para fazer experiências com som e expressar-se através da música, é pautada, simultaneamente, pela presença da natureza e da filosofia; uma e outra andando de mão dada — a observação do mundo natural informando a consciência do absurdo universal, e esta consciência apontando para a fruição do momento presente e do que nos rodeia. “Microphones in 2020”, álbum composto por uma única e longa música, não diverge deste pretexto temático. Mas o álbum, lançado há dois anos, e em que retoma pela primeira vez em mais de quinze anos o nome artístico The Microphones (desde 2003 que passou a utilizar o nome Mount Eerie), é uma incursão no seu passado enquanto pessoa e artista. Um mergulho honesto, divertido e emocionante nas raízes de uma carreira e de uma vida.

As palavras de “Microphones in 2020” são complementadas pela exploração sónica de Phil e do guitarrista que o acompanha, Jay Blackinton. A história que se conta não é meramente verbal: Phil faz questão de estabelecer as pontes com os sons, os rasgares sónicos e as sequências sónicas fluidas que polvilham a sua carreira e a ilustram. O guião vai alternando entre uma perspectiva do artista no presente e uma apresentação de memórias do início da sua carreira. Musicalmente, esta viagem é assinalada por diferentes sonoridades. Os primeiros minutos do espectáculo são montados apenas com recurso a dois acordes alternados, tocados de forma ritmicamente envolvente e hipnótica. Mas, à medida que a memória recua e que Phil se foca em momentos específicos do seu passado, como que à procura de uma constante que unifique a sua missão artística, o som torna-se mais intenso. O primeiro momento de densidade ocorre na passagem do primeiro para o segundo terço do espectáculo: a guitarra eléctrica sobe de volume e intensidade; Phil agarra no baixo e, coordenado com o guitarrista, extrai dele uma intensidade elevadíssima. É a passagem mais metal do concerto, vindo de um artista que gosta de cruzar uma sonoridade folk acústica com o barulho e a distorção (frequentemente lo-fi), e que parece encontrar nessa violência sónica uma forma de se expressar.

Capa de “Microphones in 2020” (2020)

A certa altura, ao recordar uma viagem de carro do seu passado, olha para cima e sorri abertamente. É um dos raros momentos em que a sua expressão serena manifesta uma emoção mais quebrada. Na maior parte do tempo do concerto, Phil apresenta-se com uma confiança descontraída e humilde, olhando em frente, recolectando as histórias que está certamente a reviver dentro da sua cabeça. Os pedacinhos de letra e de melodias repescam, frequentemente, recortes da carreira dos The Microphones (muitas são as referências a The Glow Pt 2, talvez o álbum mais universalmente aclamado da sua carreira). São particularmente interessantes os momentos em que o ritmo da guitarra lhe escapa ligeiramente, no meio do longo mantra narrativo: embrenhado nas histórias que fundamentam a sua missão artística, Phil expressa-se organicamente, de forma manifestamente humana. Sabemos que temos um homem vulnerável à nossa frente, sem truques na manga, que se serve do som para se contar. Se provas precisássemos desta vulnerabilidade, o assombrado testemunho de A Crow Looked At Me, álbum de 2017 (ver crítica) em que expõe de forma crua a dor de ter perdido a sua mulher, seria suficiente para o percebermos.

Ao contrário do que ocorre no álbum, não há bateria em palco nesta digressão. Mas os dois músicos não nos fazem sentir falta da bateria. É um dos grandes feitos desta performance: o aparente minimalismo apresenta-se como denso, recheado de interesse e de detalhes. A qualidade do som no Teatro Viriato em muito terá ajudado esta fruição.

Havia um momento do álbum, em particular, que não sabia com que êxito ia ser traduzido para o concerto ao vivo. No disco, corresponde ao trecho iniciado no minuto 26:50. A densa e sonhadora malha do que parece ser uma espécie de acordeão parecia de difícil reprodução com apenas duas guitarras em palco. Mas o efeito da guitarra de Blackinton faz jus à beleza do momento, e Phil Elverum adiciona melodias discretas sobre esse emocionante pano de fundo, ora com a guitarra acústica ora com o baixo. O testemunho de um ouvinte vale o que vale, mas foi este o único momento em que me arrepiei fisicamente no decorrer do concerto.

Fotografia de Carlos Fernandes

Não foi, logicamente, o único momento que me encheu de coisas boas. Ouvir a música de Phil Elverum ao vivo atestou a integridade artística de um músico que vive a sua música com uma humildade e uma seriedade envolventes. Ouvi-lo em Viseu teve também um outro sabor: Elverum é um dos maiores símbolos da música alternativa contemporânea, gerindo a sua própria editora e controlando não só a totalidade do seu projecto artístico mas também a gestão administrativa da sua carreira. Talvez por isto pareça particularmente adequado ouvi-lo longe das grandes áreas metropolitanas, num concerto único no nosso país que contribui para a descentralização da oferta cultural no território português. A programação do Teatro Viriato (que, por exemplo, receberá Grouper no final do próximo mês de Abril) merece esta nota de apreço; assim como o merece o esforço e a disponibilidade de Phil Elverum em tocar longe dos centros.

As palavras finais da canção interpretada, e do concerto, exigem uma longa citação directa: “every song I’ve ever sung is about the same thing: / standing on the ground looking around, basically / and if there have to be words, they could just be: / ‘now only’ and ‘there’s no end’”. Elas encerram o espaço hipnótico de uma emocionante auto-reflexão. Às últimas palavras segue-se um silêncio, a última nota da guitarra a soar cada vez mais fraca. Phil fita o público como se tivesse acabado de admitir todos os seus segredos e não tivesse mais nada a revelar. Um olhar transparente, humilde e inocente, que, juntamente com toda a musicalidade, arrebatam o público. Resta-nos esperar que Phil continue a desbravar o seu caminho, e que partilhe connosco o que nele for encontrando.

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