Uma perna ao quadrado nos bastidores da comédia ao “Cubo”

por Gustavo Carvalho,    18 Abril, 2022
Uma perna ao quadrado nos bastidores da comédia ao “Cubo”
Ricardo Maria, Vítor Sá e António Azevedo Coutinho, os membros de “Cubo” (Fotografia: João Pedro Morais)

Pouco depois das seis e meia da tarde já um cubo (que serve literalmente de cenário) está em palco. Bolinha, o criador e produtor do espetáculo, experimenta as diferentes cores que vão iluminar o cubo durante o espetáculo e verifica se tudo segue conforme planeado com os técnicos do Teatro Villaret. É o próprio que diz que adora luzes e este projeto dá-lhe espaço para se apaixonar por fotões à vontade.

Em “Cubo” há três comediantes que sobem a palco para fazer stand-up à vez. No final juntam-se para três dinâmicas em que tudo pode acontecer. Bolinha, que foi produtor e co-criador de “Roda Bota Fora”, convidou para este projeto António Azevedo Coutinho, Ricardo Maria e Vítor Sá. Apesar de já terem atuado em palcos consagrados da comédia nacional, é a primeira vez que o fazem em nome próprio. Agora é mesmo o nome deles que tem de vender bilhetes, mas não parecem estar assim tão nervosos. “Cada um de nós tem fases e o Ricardo estraga as de todos”, diz António. Sem conseguir desmentir, Ricardo reclama o título de “Pessoa Mais Nervosa” para si e confirma que é também a que sofre menos em silêncio.

Vítor Sá, Bolinha, António Azevedo Coutinho, Ricardo Maria e parte do cubo (esq. para dir. Fotografia: João Pedro Morais)

Ricardo Maria é de uma aldeia chamada Colmeias, na zona de Leiria. Apresenta o Curto Circuito e publica regularmente vídeos na sua conta de instagram, onde mais de onze mil pessoas o seguem. Diz que será o “futuro fundador da Comunidade Kuduro e Arte”, enquanto não nos mostra as capacidades na pista de dança, foca-se em partilhar sketches em que, às vezes, surge acompanhado pela guitarra.

Quando termina o ensaio geral pede para usar os óculos de sol de Vítor Sá. Aparentemente são giros. Vítor concede e entrega-lhe a chave do seu carro, para que os vá buscar. Quando Ricardo regressa tem de facto uns óculos de sol (giros) na cara. Ao longo da noite tenta comprá-los a Vítor, que vai sempre subindo o preço. A certa altura até o nosso fotógrafo entrou na licitação, mas sempre sem sucesso.

Ricardo Maria com os óculos de sol de Vítor Sá (Fotografia: João Pedro Morais)

O que Ricardo também traz quando volta do carro é uma notícia: há uma multa no carro de Vítor. Várias pessoas tentam adivinhar o valor. Ouve-se trezentos, trinta (o valor base de licitação dos óculos de sol, curiosamente), e uns outros valores mais absurdos. Só que Vítor até está relaxado. Habituou-se a ser castigado com multas. Neste momento nem tem carta de condução, tem uma guia de substituição. Viaja muito de carro para atuar. Já fez 250 km desde Santa Maria da Feira (cidade do norte onde vive) até Azambuja (uma vila no Ribatejo), para abrir um espetáculo de Diogo Batáguas e Luana do Bem, a um domingo à noite. Conduzir de madrugada a ouvir podcasts tem resultado em várias multas. Porém, vale a pena quando se atua com nomes como Salvador Martinha, no Teatro Tivoli, em Lisboa. Pela conversa nos bastidores, querem-lhe colar a fama de que ultrapassa muitas vezes o tempo máximo que tem em palco. Hoje só pode chegar aos quinze minutos.

Discutem-se também alguns detalhes da última dinâmica da noite. António Azevedo Coutinho é o responsável pela “Marmita” e teve de preparar um momento relativo ao tema da noite, “Tatuagens”. António possui uma única tatuagem, feita a propósito do podcast “Epá, Por Mim Não”, que tinha com o humorista Pedro Sousa e o produtor Bolinha. António já abriu espetáculos de Pedro Teixeira da Mota e de Guilherme Geirinhas. Também um de Daniel Carapeto, precisamente no Teatro Villaret. Agora que tem mais decisão sobre o que pode ou não acontecer no espetáculo, decidiu levar o tema da noite à letra. Durante o momento “Marmita” um dos seus colegas vai ser tatuado.

O brinde (Fotografia: João Pedro Morais)

Vítor tem várias tatuagens, Ricardo nem uma. Os dois vão ter de argumentar em palco e o público é que vai decidir quem tem de se deitar na marquesa. Nos bastidores ninguém acredita que não vai ser Ricardo o escolhido. Há algumas ideias no ar sobre que palavra deve ser tatuada, sugerem-se algumas mal escritas. A discussão fica para o palco, a decisão também é do público.

As dinâmicas finais são normalmente preparadas em segredo, para a reação dos restantes humoristas ser genuína em palco. “Era impossível esconder que está aqui um tatuador”, explica António. Quando estão mais inseguros sobre o que planearam, Bolinha ajuda. Só se for necessário é que passa pelos outros humoristas.

António Azevedo Coutinho nos bastidores (Fotografia: João Pedro Morais)

António e Vítor estão mais isolados, Ricardo é o que mais conversa. Hoje é o responsável pela dinâmica “O Realizador”. Escreveu uma pequena cena sobre uma pessoa que fez a sua primeira tatuagem (quem sabe se dentro de momentos não será uma história autobiográfica). Vai dar indicações em palco enquanto Vítor contracena com uma pessoa do público e António narra a situação. Quando Ricardo, nos bastidores, acaba de agrafar os vários guiões com o texto, entrega-os a quem está responsável por filmar as dinâmicas finais. Vão ser colocadas no YouTube da produtora Freakshow e se tudo correr bem o projeto vai ganhar um maior alcance. Todos esperam que acabe refletido na venda de bilhetes. “É uma dinâmica primeiramente pensada em termos presenciais, depois é direcionada para a internet. Pode acontecer, por algum motivo, ser incrível ao vivo e na internet não ter a reação necessária, ou ao contrário”, revela Ricardo. Vítor e António já têm o automatismo de responder sempre a Ricardo, algo que é visível no podcast que fazem semanalmente — o Cubinho. “Vejam que o primeiro pensamento do Ricardo foi para a parte negativa, é por isso que não é fixe estar com ele no camarim”, responde Vítor. Mas percebe-se imediatamente que a venda de bilhetes é o assunto que atormenta Ricardo. “Eu nunca estive tanto tempo na Ticketline (risos). O Bolinha, conhecendo as particularidades de cada um, não nos disse os dados de acesso para não estarmos num constante refresh.” Pergunto logo se tinha tentado adivinhar a password, diz que só “algumas vezes”. Falhou sempre, mas agora já acha que sabe qual é. “Aposto que tentaste ‘ricardo’, egocêntrico como és”, não perdoa António.

A quatro minutos de entrar em palco cada um ouve a sua música. Ricardo diz-nos logo que está a ouvir o clássico “Lose Yourself”, de Eminem. Aponta o ridículo que é estar nervoso e precisar disto para ir “contar piadas sobre punhetas”. Vítor vai ser o primeiro a atuar. Sente mais pica do que está nervoso. Aquela ansiedade nos momentos antes é que aleija. A três minutos, Vítor liberta a energia dando pontapés no ar em frente a um espelho gigante. Está a ouvir “Can’t Handle This”, do humorista Bo Burnham. Gesticula muito, enquanto António entra na sala de forma bastante discreta. A dois minutos, e com receio de furar a sua bolha de concentração, atrevo-me a perguntar o que está a ouvir nos auriculares. “L.O.M.”, de MOBBERS com ProfJam e T-Rex. Falta um minuto. Bolinha começa a perguntar a todos os que estão presentes se bebem um shot antes do espetáculo. Ninguém se atreve a dizer que não – nem mesmo nós. Brindamos com um shot de whisky, Bolinha pisca o olho e diz: “Bora, vamos ver o que isto vai dar.” É o concretizar de uma ideia que esteve a marinar na sua cabeça durante um ano e meio. Apesar de não dar a cara, sem ele não existe “Cubo”.

Vítor Sá e Bolinha, em frente ao espelho, momentos antes do início do espetáculo (Fotografia: João Pedro Morais)

Ouvem-se nos walkie talkies algumas mensagens indecifráveis, mas percebe-se que está na hora. Descemos dos bastidores em direção a um pequeno estreito ao lado do palco. Já se sente o público, mas as cortinas ainda nos protegem. Ricardo revela que alterou o texto, decidiu falar sobre a multa que Vítor apanhou por não ter pago o estacionamento. Vai contar a história sem grande rede. Bolinha está a olhar para o cubo que serve como cenário e para o telemóvel. É através de uma aplicação que vai alterar a sua cor nos momentos exatos. “Estou com um problema gravíssimo”, expõe. O telemóvel não está a conectar-se ao cubo. Vítor é Engenheiro Informático de formação e mostra-se logo disponível para ajudar. Analisa a situação e, com base nos seus conhecimentos técnicos, sugere algo que pode funcionar: “Reinicia”. Resultou imediatamente.

Bolinha a controlar as cores do cubo nos bastidores (Fotografia: João Pedro Morais)

Abraçam-se os quatro antes de Vítor entrar em palco e Bolinha suspira um “meus amores”. As luzes da sala baixam, começa a música, o jogo de luzes e já estão os três em palco. Apresentam-se e Vítor é o único que permanece em palco. Aborda logo o facto de não estar esgotado. Os humoristas não conseguem deixar alguém apontá-lo primeiro. O público está quente. Vítor sabe que quanto mais provocar Ricardo em palco, melhor a história da multa (que Ricardo vai contar de seguida) funcionará. É isso que faz quando o introduz, se calhar até insconscientemente. Para surpresa de alguns, e contrariando as piadas que foram feitas nos bastidores, Vítor saiu de palco ao fim de dez minutos. Abraça António e mostra-se contente com o nível de aplausos. Quando se apercebe de que da próxima vez que entrar em palco pode sair com mais uma tatuagem no corpo, pega no telemóvel e começa a ler as notas. “Esqueci-me de decorar os argumentos para não ser tatuado”, admite. Nos bastidores estava tudo muito confiante de que será Ricardo o tatuado, mas a dúvida permanece sempre.

Após todos fazerem stand-up, sobem a palco em conjunto para as dinâmicas do “Cubo”. A primeira é “Pão de Zeus”. Vítor ficou de escrever uma piada sobre tatuagens. Se o público rir, os outros dois comediantes levam um choque. Caso contrário, é Vítor quem sofre. A piada não resulta, Bolinha não perdoa e carrega umas sete vezes no botão que controla a pulseira no braço de Vítor. Sete choques que fazem Vítor saltar. Recuperado, confessa que, das piadas que escreveu, a que contou foi Bolinha a sugerir. Toldado pela dor, Vítor propõe um caminho que o pode levar à vingança: quer contar outra piada, desta vez uma na qual confia. Se o público rir, os outros dois levam o choque, se não rir, Vítor leva um choque mais forte. À segunda é de vez, o público ri, e Vítor festeja efusivamente enquanto Ricardo e António contorcem-se com a potência do choque.

A reação aos choques de Vítor Sá (Fotografia: João Pedro Morais)

Após “O Realizador”, chega a vez da “Marmita”. É agora o momento da tatuagem. David, o tatuador, está pronto, apesar de um pouco nervoso. Vítor e Ricardo apresentam os seus argumentos ao público. Os de Ricardo são fortes e ajudam a decidir… a favor de Vítor. Aparentemente não gostar de agulhas e ainda não ter tatuagens leva o público a decidir contra nós. Quem diria.

As pernas compridas e finas de Ricardo saltam para fora. Deitado na marquesa, os seus pêlos no topo da coxa direita são rapados. Falta decidir o que tatuar. As opções mais fortes são as palavras “Freedom”, “Perna” e “Tatina” (o nome da namorada, mas mal escrito). Alguém sugere tatuar “Curto Circuito”, contudo Ricardo descarta dizendo que tem mais “letras do que audiência”, o que resulta num dos risos mais compostos da noite. Tatuar “Perna” na perna acaba por ser a ideia vencedora.

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Ricardo termina a noite com uns minicalções amarelos vestidos, uma tatuagem e confiante de que dia 25 de abril, no segundo espetáculo, a sala vai estar mais composta. Pelo menos para, na sua cabeça, fazer sentido ter sacrificado a perna. No final, a pergunta que me inquietava era: “Agora como é que se supera isto?” Garantiram-me que já há outras e melhores ideias pensadas.

A cada quinze dias, António Azevedo Coutinho, Ricardo Maria e Vítor Sá vão entrar no Teatro Villaret para saírem certamente diferentes. Quase sempre enquanto comediantes, às vezes fisicamente. Talvez com uns óculos de sol novos, quem sabe com mais uma multa de estacionamento. É o risco que correm quando elevam a comédia ao “Cubo”.

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