O silêncio das inocentes
A política tradicional norte-americana sempre se dividiu em relação ao aborto. A população norte-americana também. Contudo, uma geração inteira teve este debate, e foi dado como adquirido que o lado da liberdade da mulher e dos direitos reprodutivos tinha ganho. Infelizmente, ano após ano, e Estado após Estado, este direito fundamental foi consistentemente e habilmente afetado, com legisladores estatais republicanos e governadores a considerarem que a sua vontade suplantava o direito estabelecido federalmente. Tentou-se inclusive imbuir cidadãos de capacidade persecutória e delatora de quem assistisse a mulher no exercício do seu direito reprodutivo.
Durante décadas, existiu uma sensação de que com a reconciliação da população americana com Roe vs Wade este deixaria de ser um assunto político relevante, e o próprio GOP tentou transitar para outras bandeiras conservadoras, sendo que até o primeiro Presidente Bush era considerado pró-escolha até ser candidato a VP na presidência Reagan. Mas, bastou chegar às suas próprias primárias para abandonar esta posição. Levanta-se então a questão: o direito ao aborto sempre esteve seguro nos EUA, seja em termos políticos como em matéria de opinião da população geral?
Como tudo, nos EUA o aborto tem tanto de polarizador como de pouco moderado. Existem republicanos com cargos políticos relevantes a defenderem o aborto legal só apenas em casos de violação e incesto, sendo que uma franja nem nessa situação o considera, e temos democratas que não são favoráveis a um limite máximo de semanas para uma mulher poder realizar a intervenção. Só os mais desatentos com as especificidades da política americana podem ignorar o peso do single-issue voter, e que esta percentagem no voto republicano é muito mais alargada do que no voto democrata. Os eleitores democratas, e independentes que votam democrata, aderem a um conjunto de ideais e princípios, sendo estes normalmente a procura de mais equidade e direitos sociais num país tão desigual. O voto republicano, nomeadamente o evangélico, não é assim.
De facto, muitos evangélicos, e até americanos com outras crenças religiosas, depositaram o seu voto em Trump olhando para o 45º Presidente dos Estados Unidos como o seu Rei Cyrus, um homem profundamente distante deles em termos de conduta na sua vida pessoal, mas que lhes ia entregar o que mais desejavam: o reverter de Roe vs Wade, a nomeação de juízes conservadores para o Supremo Americano, e uma restruturação profunda do sistema judicial federal e estatal, apontando juízes que iriam decidir favoravelmente a qualquer tentativa de atropelo do direito ao aborto.
Obviamente que esta estratégia venceu. O Supremo tem uma maioria conservadora de 6 para 3. E chegamos aqui ao ponto final desta reflexão. O perigo de ter permitido que Roe vs Wade fosse meramente uma questão judicial, não sendo sufragada em voto e consequente discussão em Congresso e Senado, foi o maior erro dos democratas e ativistas pró-aborto. Permitir que o fosse culminou na sua óbvia periclitância, que leva a que só neste momento, depois de sair um rascunho de uma possível decisão de reversão de Roe vs Wade, se comece a ter uma conversa séria sobre a passagem de legislação em sede de Congresso, e na queda da filibuster do Senado caso não existam os 60 votos favoráveis, coisa que não há.
Os democratas, com um presidente obviamente não capaz de fazer um segundo mandato, tinham todas as condições de realizar mudanças estruturais no país até 2024. Não o fizeram em termos de direitos de voto, não o fizeram em termos de um pacote económico profundamente estrutural, e não o fizeram em termos de alteração da dinâmica do Senado, essa relíquia de um país que é como um grande barco imóvel no meio do Atlântico, perpetuamente estagnado politicamente, sem terra à vista. Já existia muito pouco que agarrasse o voto democrata tirando um voto contra uma plataforma republicana bafienta, e neste momento, o incentivo a que esta maré se altere é perfeitamente nulo.
Pode residir aqui a grande morte do sonho Democrata, a de uma transição demográfica natural e favorável ao voto no partido, dado que numa questão tão basilar votar democrata não protegeu os milhões de mulheres americanas inocentes, as que vão residir em Estados conservadores e que são demasiado pobres para poderem mudar a sua sorte, resignadas e possivelmente recambiadas de volta aos becos, à morte por abortos inseguros e ao profundo e mais absoluto silêncio.