Quem foi Erasmo de Roterdão?
O célebre programa de mobilidade europeu deve o seu nome a um dos maiores humanistas do século XV, também ele um itinerante por natureza. Erasmo de Roterdão conheceu muito, e, dessa bagagem empírica, formou e formalizou um extenso caudal de conhecimento, muito sustentado e voltado para as lides religiosas. Em latim e em grego, proporcionou o Novo Testamento, levantando questões, não diretamente na obra, mas na sua discussão, sobre a legitimidade da Igreja Católica de então. Não obstante, nunca se distanciou desta, mas sem colocar em questão e em dúvida os valores da investigação e da discussão humanistas.
Crê-se que Desiderius Erasmus nasceu em Roterdão, cidade de enorme abertura de valores e de conhecimentos, nos anos 1460, em plena ebulição renascentista. Apesar da designação pela qual é conhecido ser referente à cidade onde nasceu, só esteve aqui durante quatro anos, sem nunca voltar. A precoce morte dos seus progenitores, vítimas da peste negra, não impediu o então jovem de estudar em várias escolas monásticas, para além de outras de latim espalhadas pelo país holandês. Fruto de uma educação religiosa, nunca se desprendeu de uma relação com essa vertente, estudando em várias ordens católicas na sua terceira década de vida. Este foi um período em que, privando na primeira pessoa com o quotidiano destas, se tornou crítico em vários sentidos, compondo algumas ideias e dissidências em relação àquilo que era o status quo católico. Erasmo esteve em França e em Inglaterra, onde seria vítima do conservadorismo de valores, por se denunciar a sua homossexualidade. Este pendor sexual não seria desconsiderado pelo académico nas suas obras, defendendo e valorizado o desejo sexual numa relação intersexual conjugal.
Após sair da vida monástica, passou a trabalhar para o Bispo de Cambrai, uma região francesa, embora recebesse, pouco antes, uma dispensa temporária, algo considerado um privilégio à data, por motivos de saúde. Pouco depois, com o consentimento dessa figura, passou a estudar em Paris, num núcleo onde a Escolástica ainda dava passos firmes, mas com o humanismo renascentista já em alvoroço. De Itália, para além do Renascentismo, chegou um amigo para Erasmo, de seu nome Publio Fausto Andrelini. Para além da cidade francesa, também Basileia e Leuven, na Bélgica, passaram a ser frequentados pelo holandês, para além de um regresso bastante produtivo a Inglaterra, onde privou com Thomas More, ou Thomas Linacre. Porém, a saúde frágil que tinha foi fustigada em terras britânicas, apesar do legado que deixou nas várias instituições universitárias que já existiam à data, para além de ser professor no Queen’s College, presidida pelo amigo John Fisher. No final do século XV, ao ouvir os ensinamentos bíblicos de John Colet, decidiu empenhar-se na língua grega, e no estudo profundo da teologia. Não obstante, nunca se quis associar a qualquer tipo de escola ou de corrente, seguindo um caminho independente, que lhe permitia reforçar e alimentar a liberdade de pensamento e de expressão intelectual.
No século XVI, recebeu vários convites para assumir posições de vulto académico, mas recusou-os todos, viajando para Itália, e doutorando-se na Universidade de Turim. A sua residência fixar-se-ia em Leuven, onde também daria aulas, e onde seria alvo de várias críticas de académicos e críticos, opostos à reforma encetada e incentivada. Pouco tempo depois, apoiaria o estudo de hebreu na Universidade, da qual sairia para Basileia após se sentir perseguido pelos críticos. Nessa cidade suíça, sentiu-se livre o suficiente para dar azo a tudo aquilo que pensava, sem restrições ou precauções. Pouco tempo depois, ao dominar o latim, tornou-se mais hábil naquilo que era a expressão sobre literatura e religião, e tentou desamarrar o estudo das tradições formais e rígidas de origem medieval. Foi dessa forma que, mais do que criticar o estilo de organização e de vida das classes clericais, se cingiu à exortação de se manter uma vida moralmente ajustada àquilo que era a doutrina católica. Neste período, estabeleceria correspondência com quase cinco centenas de individualidades académicas e políticas.
Pouco depois, publicaria o Novo Testamento em grego, no ano de 1516, associado ao projeto poliglota encetado pelo cardinal Francisco Jiménez de Cisneros. Isto seria a conclusão de um trabalho que, em simultâneo com o de latim, lhe tomou alguns anos, acabando por se ver obrigado a, tendo em conta algumas discrepâncias entre as versões, sintonizar o texto grego para o latim. Assim, são várias as edições que vai fazendo, resultante de uma apressada incursão até à impressão. A primeira a conhecer o público foi “Novum Instrumentum Omne”, seguido, três anos depois, em 1519, por “Testamentum”, versão que seria usada pelo proponente do protestantismo Martinho Lutero. As duas seguintes versões dariam o mote para o seu estudo em Inglaterra, e que seriam colmatadas em “Textus Repectus”. Esta obra seria dedicada, por Erasmo, ao papa Leão X, considerado um dos patronatos da aprendizagem, do ensino, da pedagogia; e um servidor positivo em relação à causa do Cristianismo. Na sucessão deste moroso trabalho, viria “Paraphrases of the New Testament”, uma forma mais impessoal de exposição dos conteúdos traduzidos e assumidos.
“I consider as lovers of books not those who keep their books hidden in their store-chests and never handle them, but those who, by nightly as well as daily use thumb them, batter them, wear them out, who fill out all the margins with annotations of many kinds, and who prefer the marks of a fault they have erased to a neat copy full of faults.”
Acompanhando o nascimento do protestantismo, Erasmo foi forçado a assumir uma tendência, se inclinada para este, ou para o catolicismo. No entanto, e avesso à sua associação a algum partido, grupo, ou corrente, o holandês voltou a reforçar que criticava somente os abusos da Igreja, sem nunca a criticar diretamente. Esta tomada de atitude viria a distanciá-lo de Lutero, apesar de partilharem algumas ideias. A relação de respeito que existia e ligava os dois foi danificada pela recusa de Erasmo em juntar-se ao protestantismo, por acreditar que só de forma independente é que conseguiria encaminhar uma reforma na religião. Para além disso, não se revia na postura incendiária dos protestantes, criticando-os em algumas obras futuras, na medida em que seriam poucos aqueles que se tornaram bons ou menos pecaminosos somente pela palavra divina. Ademais, seria desvincular aquilo que tinham sido os milagreiros e as almas divinas provindas da herança católica, e colocar a religião em algo incógnito, à boa imagem de uma seita; e a própria interpretação da Escritura Sagrada, a olhos de Erasmo, era vista como unidimensional, voltada somente para a visão de Lutero e dos seus sobre a mesma. No fundo, discordava de todo o tipo de dissensões, e reivindicou os princípios básicos e elementares da Igreja Católica, naquilo que são os fundamentos divinos da revelação e existência divina.
Uma das temáticas mais proeminentemente abordadas pelo holandês prendeu-se com, à luz da plataforma divina, a livre vontade. Também aqui, a discussão com Lutero adensou-se, pondo em causa a devoção um do outro. “De libero arbitrio diatribe sive collatio” (1524) traz a ideia, proposta por Erasmo, de que Deus, apesar de capaz de interferir em diversas coisas, escolheu não o fazer, autorizando a ocorrência de diversas circunstâncias. A sua responsabilidade cingia-se a essa viabilidade para que os factos acontecessem, embora sem os influenciar. Erasmo defendia a justiça e a liberalidade de Deus em relação à existência humana, contrariando os valores de omnisciência e omnipotência luteranistas. A familiaridade de Deus em relação ao que se sucedia no planeta permitia a manifestação dessa livre vontade, onde os homens, à luz das advertências divinas, se comportavam. Os atos de cariz maldoso surgiam, dessa feita, não como obra de Deus – que o diabolizaria – mas como provenientes da vontade de cada um, que seria devidamente punida pela figura divina, que proporcionaria a sua graça àqueles que escolhessem o bem em detrimento do mal. A liberdade de escolha surgia como o valor primordial a ser destacado desta referência bibliográfica.
“Now what else is the whole life of mortals, but a sort of comedy in which the various actors, disguised by various costumes and masks, walk on and play each ones part until the manager walks them off the stage?”
A reforma que despoletou levou a que Erasmo se mudasse de novo, passando a viver em Friburgo, na Alemanha. Perante diversas manifestações religiosas, algumas derivando umas das outras, esta figura começou a refletir na necessidade de temperamento na discussão e no debate das várias propostas e ramificações, numa tentativa de descortinar melhor a verdade. Quanto àquilo que eram os heréticos, em relação à palavra e à ontologia divina, era oposto à pena de morte, defendendo a sua instrução e formação. Na problemática dos sacramentos, não punha em causa a veracidade da transubstanciação de Cristo no alimento, em plena eucaristia.
Erasmo de Roterdão, quando se preparava para aceitar o convite da regente da Holanda para lá voltar a viver, sofreria um ataque de disenteria numa visita efetuada a Basileia, que o vitimou no ano de 1536. Morreria fiel às instâncias e aos valores católicos, embora fosse da opinião que alguém pudesse alcançar a salvação sem qualquer ritual. Para trás, ficava um legado de enorme profundidade, associado a temas relativos à Escolástica – traduzindo várias obras de autores, como Santo Agostinho – numa altura em que a farta literatura que redigia constituía 10 a 20% da fatia livresca a ser transacionada na Europa. Entre esta, livros de provérbios e adágios em latim, tendo, por engano, cunhado a caixa de Pandora, sendo, na verdade, um jarro.
Naquilo que escreveu de forma formalizada, cunhou “Enchiridion militis Christiani” (1503), obra onde apontou as premissas para uma vida cristã normal, confrontada com o formalismo que automatiza as tradições vividas e sentidas. Ao olhar de Erasmo, as formas permitem dar a entender como honrar e venerar Deus, para lá daquilo que é o conservadorismo monástico, que inspira e alimenta um espírito repressivo e até bélico. Mais do que uma crítica, é um sermão que aponta os clérigos como educadores que devem partilhar o tesouro do seu conhecimento, para lá daquilo que são as disciplinas espirituais pessoais. Incentiva, também, a leitura e a sintonização para com a Escritura, capaz de motivar uma transformação em direção ao amor. Quanto ao Novo Testamento, que traduziu para duas línguas, mencionou-a como uma lei a ser seguida, e a figura de Cristo a ser imitada.
“For anyone who loves intensely lives not in himself but in the object of his love, and the further he can move out of himself into his love, the happier he is.”
Em pleno século XVI, criticou, em alguns trabalhos, as superstições e tradições existentes no seio da sociedade europeia (“The Praise of Folly”), colaborando com Thomas More; e trouxe uma visão oposta àquela que Maquiavel proporcionou em “The Prince”. Assim, e com “Institutio Principis Christiani” (1516), anunciou a honra e a sinceridade como princípios a serem detidos por um príncipe, para além do amor e da educação para promover uma governança justa e benevolente, desconsiderando a força, a intimidação e a opressão. Entre várias dissonâncias, e diálogos que deteve com outros teóricos, também mostrou o seu desagrado pela fanatização latina em relação ao autor Cícero, e defendendo os emergentes medievais (“Ciceronianus”, de 1528); e redigiu sobre a prece divina e o sermão em “Ecclesiastes” (1536), conhecida como o ápice da literatura e do pensamento de Erasmo. Dessa forma, aconselha e concede uma bagagem, repleta de referências bíblicas e clássicas, para a melhor forma de dar sermões de teor religioso e cristão.
Todavia, e no seio de todas estas obras, há uma que, no contexto da reforma da Igreja, surge com um valor histórico e conceptual denotado, sendo ela “Sileni Alcibiadis”, escrita em 1515. À letra, o título destrinça a figura de uma criatura, de seu nome Silenus, relacionada com o deus do vinho romano, Baco. A outra figura, Alcibíades, foi um político grego, e general na Guerra do Peloponeso. Ambos provenientes de duas realidades da Antiguidade Clássica, De um lado, uma personagem inebriante; do outro, um figura de pulso. Uma obra que tenta apontar para dentro, mais do que para fora, naquilo que é a perceção do caráter humano, e que vai de encontro aos diálogos platónicos que referenciam a segunda personagem. Uma beleza que, vista de fora, pode não corresponder à emitida por dentro. Em relação aos Sileni, Erasmo associa-os a Cristo e aos apóstolos, na medida em que eram ridicularizados pelos outros, e que traziam, em si, os valores mais significativos do mundo. A argumentação vai ter àquilo que é a Igreja, que deve representar toda a gente católica. Ao explorar as relações de servidão, para além da angariação de riquezas às custas dos crentes, as figuras católicas devem ser puras e mais vocacionadas para a palavra divina do que para o património monetário.
“Anyone who looks closely at the inward nature and essence will find that nobody is further from true wisdom than those people with their grand titles, learned bonnets, splendid sashes and bejeweled rings, who profess to be wisdom’s peak”.
Erasmo de Roterdão é um dos grandes nomes do renascimento humanista, embora sem nunca descurar e se desvincular daquilo que é a vida e a crença religiosa. Amigo do também humanista português Damião de Góis, celebrizou-se, não só naquilo que deu a conhecer de gerações passadas, mas também naquilo que propôs por toda a Europa. Não obstante as vozes contrárias que se mesclaram com a sua notoriedade, não deixa de se tratar de um homem de letras e de saberes, mesmo tendo surgido numa encruzilhada entre o catolicismo e o protestantismo. Futuramente, seria uma referência na idade das luzes, como alguém que, mesmo com a sua crença plenamente definida, dava o mote para uma racionalização e uma universalização marcante e fulgurante. A herança que deixou, nos seus tempos de mobilidade, em várias universidades do velho continente conduziu-o a uma natural honra de ser a referência dos programas de itinerância académica e profissional, incutindo e homenageando o seu espírito internacional. No trajeto de uma crença inabalável, Erasmo de Roterdão nasceu e renasceu, com o mundo, para uma dinâmica de saber globalmente incontornável.