Super Bock Super Rock (dia 2): C. Tangana, Nathy Peluso e o novo império latino
O segundo dia do Super Bock Super Rock trouxe a Lisboa dois nomes do novo império da música latina, exportada da Península Ibérica para o mundo com bom gosto e sabor a novidade. Em dois concertos no mesmo palco, um logo após o outro, Nathy Peluso e C. Tangana mostraram algumas das melhores facetas que a música pop espanhola tem vindo a ver nascer ao longo dos últimos anos. Num poliedro que vai bem para lá do reggaeton, a que normalmente associamos o ressurgimento da popularidade da música espanhola na última década, os artistas atuaram diante de uma plateia tão entusiasmada e vibrante que pouco espaço sobrava para dançar. Constrangimentos à parte, que bem soube sentir o calor humano (não tanto o praticamente insuportável calor físico…) entre o público, o carinho e o entusiasmo por música com sabor culturalmente familiar. Mas lá iremos.
À chegada ao recinto, já Pedro de Tróia apresentava “Namorada”, a primeira canção do seu último disco, Tinha de Ser Assim. Perante uma plateia pouco preenchida, que ocupava os espaços de sombra feitos pelo palco exterior, e apesar de algum nervoso miudinho, o artista português fez os possíveis para animar o público, chamando-o para mais próximo de si e tentando algumas interacções curiosas e ocasionalmente enternecedoras. O público, irredutível devido ao calor, não cedeu facilmente, mas tampouco deixou de assistir ao concerto, nem mesmo quando o ritmo baixou até à acústica “Rés do Chão”, a belíssima canção que foi uma boa surpresa no alinhamento. Alinhamento esse que ainda contou com a batida forte de “Gosto Tanto de Ti”, a adorável “Passarinho” e “Dente de Leão”, uma das suas melhores músicas. O som não estava ideal e talvez o contexto não fosse o melhor para receber o pop rock de Pedro de Tróia, mas ainda assim o concerto foi uma bonita porta de entrada para mais um dia de festival.
Dali seguimos para o interior da Altice Arena, a arena chamada a fazer as vezes da mais importante zona da clareira da Herdade do Cabeço. À chegada, um aglomerado ainda pequeno de pessoas (não estariam mais de duas mil naquela altura) aproximavam-se o mais que podiam do palco; e logo aí deu para perceber que Nathy Peluso havia conseguido congregar muitos fãs seus ao Super Bock Super Rock. Trata-se de um fenómeno que não pode ser tido por garantido: um nome que não está entre os cabeças-de-cartaz do dia de um festival nem sempre consegue ter uma audiência tão devota à sua frente. O combo com a actuação de C. Tangana, programado para o mesmo dia, terá permitido este maior aglomerado de fãs.
E que importante foi o carinho da audiência para cobrir de alma um concerto já de si tão recheado. Nathy Peluso deu tudo em cima do palco, com uma energia e dedicação inigualáveis em toda a noite (e não tenho em memória concertos a que tenha ido nos últimos anos cuja energia da front woman se tenha aproximado da de Nathy). Foi uma pena que a qualidade de som não tenha permitido fruir da melhor forma o concerto da artista: a voz estava a ser processada numa frequência algo monocórdica, e que frequentemente chocava de frente com os instrumentos de metal que estavam a ser tocados em palco. Se era difícil acompanhar as letras castelhanas de Nathy Peluso, a tarefa era facilitada pela plateia que as interpretava de cor e de maneira efusiva.
De resto, o concerto de Nathy foi coeso praticamente do início ao fim. Assumindo uma diversidade de diferentes ritmos ao longo do espectáculo, desde os bangers que mais levavam a plateia ao rubro, aos temas mais soft que tão bem soaram (ficámos particularmente bem impressionados com a vibe de “Buenos Aires” e de todos os temas que seguiram essa linha estilística). Muito se dançou na plateia; e muito se dançou no palco, com Nathy Peluso a apresentar uma performance que parecia fundir dança e ginástica: ora de forma enérgica, ora sensual; é inacreditável a capacidade da artista em manter a respiração ao longo de uma sessão de movimentos tão intensa e esgotante como a que apresentou ao público em Lisboa. Ficámos impressionados.
Seguiu-se o portentoso concerto de C. Tangana. À plateia de Nathy Peluso, que não desmobilizou, somou-se uma onda de público que se quis aproximar do palco principal do SBSR. Estávamos prestes a experienciar aquele que foi, sob muitos aspectos, o melhor concerto da noite e um dos melhores a que pudemos assistir este ano. C. Tangana apresentou um espectáculo que fundiu vários formatos das artes performativas: concerto, peça de teatro e cinema. Mais de três dezenas de pessoas – entre instrumentistas, cantores de apoio, dançarinos e figurantes – polvilhavam um palco repleto de mesas de jantar e múltiplos adereços, simulando o interior de uma enorme sala de jantar em plena festa. Bebidas espirituosas, comida, cigarros, palmas (muitas palmas) e um ambiente de animação impressionante. Ao público eram oferecidas duas possibilidades de fruição deste cenário vivo: ora a olhar diretamente para o palco (assemelhando-se o espetáculo a uma espécie de ópera pop), ora olhando para o imenso ecrã gigante que ocupava toda a metade superior da tela de palco. É que, guiados por uma câmara profissional e por uma realização de maravilhoso sentido estético, estava a ser montada em direto uma produção cinematográfica que nos permitia acompanhar de perto não só o próprio artista como detalhes das interações que ocorriam em palco.
O resultado foi um concerto íntimo, em que o público era convidado a juntar-se à festa de uma maneira quase individual. Estávamos ali, entre o círculo de dez amigos do artista espanhol, sentados à mesa com ele; também nós a aplaudir os ritmos latinos embutidos no mais recente trabalho do artista (El madrileño, editado em 2021). Esta bonita e inspiradora viragem na carreira do artista e rapper espanhol, que estende as raízes e se deixa embeber pelo flamengo, pela rumba e pelo bolero, encontrou no palco do SBSR uma autêntica montra da bela cultura espanhola (e, permitam-me que generalize, da cultura ibérica e mediterrânica): C. Tangana actua quase como embaixador de um modo de vida, de uma maneira particular de fazer festa. Trazendo não só a sua música, mas uma maneira de estar para os palcos internacionais do mundo, temos a sensação de ver retratada naquela produção formas também nossas, ambientes que nos são familiares, e que são exportados deste cantinho da Europa.
Tivemos espaço para todas as facetas de C. Tangana no espaço de um concerto que pareceu curto mas que ofereceu tanto; desde o rap mais tradicional de “Llorando en la limo”, passando por alguns dos melhores temas do trabalho de 2021 – “Ingobernable”, “Tú me dejaste de querer” e “Ateo” (a que, infelizmente, não se juntou Nathy Peluso, presente na versão de estúdio e que teria dado gosto ver subir novamente ao palco), até autênticos “skits” de flamenco nos quais C. Tangana se torna espectador connosco, comungando do virtuosismo musical dos maravilhosos músicos de que se faz acompanhar. É um universo construído com mestria, um espetáculo ao vivo desenhado com ambição e levado a cabo com alegria e carinho. Temas como “Muriendo de envidia” e “Me Maten” encontram no palco de Tangana um lugar orgânico; não são apresentados como algo “exótico”, e sim como temas viscerais, pertinentes, actuais, com um lugar na cultura de hoje. Fica a expectativa de podermos um dia vir a revisitar o concerto em formato gravado, assim C. Tangana o queira disponibilizar; seria uma opção mais do que justa, e artisticamente justificada.
Da arena principal da Altice Arena seguimos para o palco Somersby (na Sala Tejo), para assistirmos ao concerto da rapper portuguesa Capicua. Apesar da ligeira sobreposição com o final do concerto de C. Tangana, ficámos contentes por ver a sala tão composta para assistir ao concerto de Capicua. Apresentando temas do seu mais recente trabalho (Madrepérola, editado meses antes do início da pandemia) e da sua anterior discografia, a rapper fez-se acompanhar por uma banda ao vivo e por vozes de apoio, que em muito ajudaram a sua música a ganhar ainda mais asas. Não que fosse estritamente necessário – as palavras de Capicua têm sabor a liberdade, a expressão descomprometida e refletida, num timbre tão seu que sabe tão bem ouvir – mas o calor dos instrumentos ao vivo deu-lhe ainda mais amplitude emocional. Isto apesar de o momento que nos causou mais arrepios ter sido a interpretação a capella de “Alfazema”. Destaque ainda para “Gaudí”, “Madrepérola” e “Último mergulho”, esta última com a surpreendente e aconchegante presença em palco de Lena D’Água, que aqueceu o coração da plateia. O panorama rap português tem em Capicua um nome incontornável; o calor do público do SBSR, que a artista muito agradeceu, não permite qualquer outra conclusão.
Ficámos no mesmo palco para assistir a um dos concertos mais improváveis desta edição do festival. O duo Daft Funk é uma banda tributo dos franceses Daft Punk, apresentando ao vivo um espetáculo que mimetiza a banda original. Embora um cenário mais imersivo tivesse ajudado ao exercício de imitação, a verdade é que o espetáculo proporcionou uma autêntica festa para os milhares de pessoas que ali marcaram presença, pese embora o concerto estivesse sobreposto com o do cabeça-de-cartaz do dia (o rapper Dababy, concerto a que também nós não assistimos). Os dois músicos – um sentado na bateria, outro a tocar guitarra, e vestidos exatamente como os robôs mais famosos da história da música eletrónica – interpretaram parte da música ao vivo, mas recorrendo a samples da música dos Daft Punk. Embora as misturas executadas não tivessem a mesma qualidade, fluidez e originalidade das que podemos ouvir nos live sets da banda original, os Daft Funk recorreram a alguns arranjos de Alive 2007 que arrancaram entusiasmadas reações na plateia, com muita dança à mistura (por exemplo, em “Around the World / Harder, Better, Faster, Stronger” e “One More Time”). “Digital Love” soou especialmente bem. Foi um momento emotivo, reprodução de um concerto que não é expectável que venha a acontecer com os músicos franceses. Fez sentido, e soube bem, celebrar desta forma a música da banda francesa que recentemente anunciou o fim da sua carreira.
Parece-nos que, nos últimos anos, os Hot Chip têm entrado um pouco na rotina. A cada música do concerto que fechou o maior palco do Super Bock Super Rock, sentia-se uma repetição de uma fórmula que a banda provavelmente afinou para manter os concertos ao vivo repletos de batidas constantes e impecavelmente executadas, mas sem a diversão que caracteriza os seus álbuns até ao mais meloso A Bath Full of Ecstasy, lançado em 2019. Talvez os problemas técnicos que pareciam assolar a banda tenham sido a causa de algum azedume na entrega, particularmente no que tocava a Alexis Taylor e Joe Goddard, vocalistas do grupo que constantemente faziam sinais ao técnico de som. Ainda assim, a clássica “Over and Over” manteve a acidez dos seus sintetizadores e “One Life Stand” equilibrou na perfeição o romantismo e energia que são apanágio da banda. “Freakout/Release”, faixa homónima do disco novo a ser lançado ainda este ano, soou mais entusiasmante e pode ser um bom augúrio para o que aí vem. Quem sabe voltaremos a apaixonar-nos pelos Hot Chip.
Outros concertos terão marcado o segundo dia do SBSR, mas a beleza dos festivais de música passa por aqui: cada espectador tem o seu roteiro, a sua história particular, um percurso único e chegado aos gostos de cada um, e às descobertas que se fazem de improviso. Esta é a história do nosso dia, numa quente noite de Verão, na margem oposta do rio Tejo daquela em que esperávamos estar, mas consolados por, apesar de tudo, podermos dançar novamente depois de vários anos sem SBSR (e qualquer outro festival).
Reportagem de Tiago Mendes (texto) e Sofia Rodrigues (fotografias), com o apoio de Bernardo Crastes (texto).