Nota A ao Matosinhos em Jazz de 2022
Nota A ou, como quem diz em português, nota excelente para a terceira edição do Matosinhos em Jazz. Foram só dois dos mais de cinco concertos que fomos assistir à cidade marítima de Matosinhos, coladinha ao Porto. No entanto, foram suficientes para se perceber a bonita e personalizada oferta, que se cruzou com a oportuna utilização do Jardim Basílio Teles — mesmo ao lado do edifício da Câmara Municipal da cidade — num evento que merece mais holofotes na sua próxima edição. São concertos abreviados, que terminam ao fim de uma hora, mas que, com a pontualidade dos artistas e com o asseamento e o cuidado do espaço e dos seus usufrutuários, são verdadeiros convites à abstração do alheio e à imersão neste delicioso género musical.
Assim sendo, fomos assistir, primeiramente, ao Alfa Mist e seu aglomerado de colaboradores: entre eles, Kaya-Thomas Dyke ou Jamie Leeming. Foi um discurso bem arrojado, como mostra a sua discografia, em que o jazz combina com uma onda bem mais disruptiva e audaz. Sob o comando de Mist, foram-se traçando prolongados diálogos entre bateria, guitarra, baixo, saxofone e os teclados do líder. Nesse sábado de 16 de julho, onde poucos eram os espaços para se poder repousar, ficamos de pé a ouvir o estrondo instrumental e jazzístico, que roçou o experimentalismo em algumas ocasiões. Contudo, pasmamo-nos com a qualidade do som que ecoou em torno do coreto do Jardim Basílio Teles. A única nota negativa só pode ser o ruído causado por conversas paralelas, que davam mais à bebida que ao ouvido. Nem mesmo os sons típicos da cidade e os aplausos fulgurantes a meio das canções estorvaram o magnetismo de Alfa Mist e companhia.
Todavia, melhor ainda estava por chegar. Chegou na nossa segunda deslocação a Matosinhos, no domingo da semana seguinte. Quem atuou foi Ashley Henry, ao lado de bateria e contrabaixo. Também ele ao leme de um teclado, mostrou um cintilante repertório de jazz espiritual — uma variante do jazz convencional que aponta para captar sensações etéreas e quase sobrenaturais, apelando aos sentidos do espírito. Foi, a nosso ver, um recital de jazz, assente numa tríade que se conjugou na perfeição e que conseguiu mostrar ao público — desta vez menos numeroso, mas igualmente rendido — o quão bem faz, de quando em quando, deixarmo-nos levar por um jazz imersivo, que se cultiva dentro de quem o cria de quem o ouve, mas que só transcende quando há sintonia entre instrumentos e intérpretes. Foi assim que nos rendemos e, mesmo perante cabeças mais voltadas para a contemplação e admiração que para a vibração e a dança, fomos abanando espamodicamente os membros e a cabeça. A entrega foi, desta feita, total e verdadeira. O próprio artista destacaria a importância de ter festivais deste tipo ao ar livre e de acesso livre, que a cultura e as artes assim o mereciam. Chegar a todos sem quaisquer barreiras à entrada.
É neste sentido que é justo saudar a autarquia de Matosinhos e a organização do Matosinhos em Jazz por ter conseguido um evento deste tipo. Para além de disponibilizar o jazz – um género musical ainda muito conotado com as elites e só com quem a ele pode (e não quem quer) assistir — a todos, fá-lo em espaços verdes, de lazer e de convívio, com garantida qualidade de som “nos seus quatro cantos”, imune aos desafios da vida citadina. Isto sob uma interligação bonita entre os mais novos — sim, mesmo aqueles que ainda dão os primeiros passos no nosso mundo —, e os mais velhos, que por lá passeiam juntos e se vão rendendo à música. Para além disso, convida nomes emergentes, como os destacados acima, para além de outros que não conseguimos ver, e retira-os de um nicho de uns poucos, possibilitando que (muitos) mais os conheçam, os explorem e os adotem nas suas preferências musicais. Como tal, com tamanhos predicados, e na esperança de um cartaz ainda mais fresco e atrativo no próximo ano (mantendo ou até diversificando os recintos ao longo da cidade), a nota é A. A de Alfa (Mist), de Ashley (Henry). A de acolhedor, A de alegria. A de and all that jazz…