“Pastoralia”, de George Saunders: somos todos personagens no teatro do absurdo
A naturalidade com que cumprimos rotinas ou ordens sem nexo é, ela própria, irreal. As horas que demoramos para chegar ao trabalho, o almoço que se come em pé, como fazem os cavalos, aquele inútil cartão de crédito que se tem guardado, pois não se paga anuidades, a aceitação do conselho do colaborador que vende um crédito para não gastarmos as poupanças que perfazem o valor pedido, ou o colega que tem imenso trabalho a fingir que trabalha. São muitas as idiossincrasias que encaramos com normalidade.
“Pastoralia” (Antígona) apresenta essa realidade com um “twist” que nos leva a um plausível mundo alternativo.
George Saunders (Texas, 1958) utiliza a estranheza para sublinhar o ridículo das situações, enquanto mostra um sorriso irónico perante o absurdo. Quem lê vê-se reflectido.
O prisma de Saunders, sempre dotado de um acentuado cinismo, incide sobre os marginais de uma sociedade assente no rápido consumo e no entretenimento. São personagens com “impulso de obediência compulsivo”, como afirma o prefaciador e tradutor Rogério Casanova sobre as seis narrativas desta obra.
No conto que dá nome ao livro, um homem e uma mulher fingem estar nas cavernas, dentro de um parque temático. São bichos de zoo bem alimentados, com função lúdica. A incomunicabilidade é pouco contrariada pelos sons grotescos que trocam um com outro. As instruções são claras: sendo primitivos, não podem comunicar em inglês. Só por gestos e grunhidos. Nos bastidores do cenário, existe um faxe que vai debitando instruções. Ele, cumpridor de tarefas absurdas que o remetem para época primitiva, é pressionado para denunciar a colega. Ela, por sua vez, tenta trabalhar o menos possível. Mais selvagem e mais real do que o cenário montado é a instigação de animosidade entre os dois “colaboradores” por superiores hierárquicos. A crescente pressão da empresa, com o objectivo de cortar despesas fixas, leva à imposição da estratégia de utilizador-pagador. Tudo o que os empregados fazem que impeça de trabalhar é cobrado. É chamada a “taxa de merda”:
“É a mesma situação com aquilo que vocês chamam a taxa de Merda, pois por que razão é que havíamos de pagar a eliminação do vosso cocó quando no fim de contas vocês é que o fizeram? Acham que o vosso cocó é uma despesa empresarial legítima? Nós por acaso recebemos algum benefício directo quando vocês defecam?”
A indústria do lazer/prazer é comum entre “Pastoralia”, “A Infelicidade do Barbeiro” e “Carvalho do Mar”, mas é em “Carvalho do Mar” que a dignidade do ser humano atinge o máximo de degradação.
No bar de strip chamado “joystick”, os clientes avaliam os empregados. Existem quatro níveis, sendo que o último provoca o despedimento:
“Brasa, Pãozinho, Adequado ou Trambolho”
Chegado ao nível “Trambolho”, o despedimento é certo. Naquele microcosmo, impera a cultura dos “likes”, em que o ser humano é simultaneamente utilizador e produto. Tudo é de consumo e tudo implica rapidez. A ilusão de abrandamento e afirmação individual acontece em “Winky”. O absurdo está sempre à espreita num seminário de autoajuda, em que os intervenientes assumem “role play” para chegar ao último passo da tríade “Identificação- Protecção- Confrontação”. Chegados à última etapa, cada interveniente está capaz de dizer “pára de cagar nas minhas papas de aveia”.
A linguagem dos contos de Saunders, com expoente máximo em “O fim de FIRPO neste mundo” forma uma realidade empresarial, por vezes incompreensível. A individualidade é uma preocupação secundária num mundo envolvido numa linguagem opaca.
Rogério Casanova, no seu excelente prefácio, afirma que “o que aqui é interrogado não são apenas os hábitos linguísticos de uma cultura, mas também quem controla os meios de produção e distribuição dessa paralinguagem”.
Saunders vai demonstrando uma certa benevolência para com estes personagens, sempre à beira da derrota ou já derrotados, numa escrita próxima de Barthelme e de Raymond Carver. Essa benevolência nota-se também com Morse, no extraordinário “Cascatas”. No último conto do livro, Morse, um personagem “alto e magro e tão cinzento e sepulcral como uma igreja prestes a ser condenada”, sonha com momentos áureos que afastem a mediocridade em que vive. Ele sonha em ter o respeito, o desejo e o carinho dos filhos, mulher e amigos.
A necessidade de aceitação leva-o a um momento decisivo, junto às cataratas. E, mais uma vez, será o leitor, com a sua acção colaborativa, a interpretar e determinar o destino das personagens.
“Pastoralia” é o resultado de vários contos publicados na revista “The Yorker”. A compilação surgiu em 2000. Três anos depois, George Saunders foi premiado com o “PEN/Malamud”. Conhecido e muito premiado pelas suas narrativas curtas, o autor norte-americano tem “Lincoln no Bardo”, seu primeiro romance, na “long list” para o Prémio Booker 2017.
O reconhecimento da crítica e dos júris dos prémios literários reflectem – e bem – a excelência e originalidade da escrita de George Saunders.