Bons Sons: o rescaldo de um amor de Verão
Depois de um dia 1 preenchido e dedicado a relembrar as ruas de Cem Soldos, os dias seguintes do festival Bons Sons de 2022 foram repletos de concertos que ficarão, certamente, na história do festival.
No dia 2 – esgotado – o palco Giacometti-Inatel recebeu os Sunflowers, que voltaram finalmente aos palcos, e que voltaram a trazer o rock às ruas para mais um mosh de fim de tarde. Pouco depois, deslocamo-nos até ao palco António Variações, onde veríamos o pôr-do-sol com a companhia de David Bruno, ladeado por António Bandeiras e pelo guitarrista Marco Duarte – Marquito para os amigos. Um concerto de David Bruno nunca será uma experiência desinteressante. Há aquela portugalidade, aquele toque popular, mas há também letras interessantes e uma performance – muito devido à guitarra imaginária de António Bandeiras – que convencem até o mais descrente e “pseudo-erudito” festivaleiro. David Bruno assinou o concerto da noite e um dos concertos do festival.
Passamos para Cassete Pirata, cujo rock pop terá aglomerado mais pessoas por metro quadrado, para visitarmos a muito comovida Aldina Duarte. Sentada no palco à média luz, Aldina trouxe os fados – segundo a própria, maioritariamente escritos por Manel Cruz, que tocaria horas depois – a um público sentado na colina, silencioso e atento. Muitas vezes comovida, Aldina Duarte demonstrou a sensibilidade do fado sentido.
A começar a madrugada, foi a vez de Pluto subir ao palco António Variações. Há uns meses, os Pluto regressaram aos palcos no Maus Hábitos no Porto, 18 anos após o lançamento do disco “Bom Dia”, o único até agora assinado pela banda. Agora, e pisando os grandes palcos dos festivais, a máquina está mais bem oleada, mais bem torneada e as músicas de “Bom Dia” e alguns inéditos caem-nos que nem ginjas. O rock dos Pluto é eficaz e preciso e a voz de Manel Cruz soa bem como sempre, apelativa como sempre, e uma das melhores da música portuguesa.
No dia 3 – igualmente esgotado – A Garota Não subiu ao palco Giacometti-Inatel. Na descrição da conta de Instagram, A Garota Não diz apenas que gosta de escrever canções. Mas mais do que escrever canções, A Garota Não entoa-as, vive-as e escancara o peito e alma para um público que se rende com a simplicidade da sua voz, a complexidade da sua mensagem e a beleza, pura, de se mostrar o que se é. No final, voltou ao palco para cantar a “Canção a Zé Mário Branco”. Com ela, as ruas de Cem Soldos, apinhadas de gente que se calou e emocionou como poucas vezes se vê e como poucas vezes se mostra. A Garota Não é um tesouro.
No mesmo palco, horas depois, os Fado Bicha também chamaram centenas de festivaleiros, num protesto que vai muito além da causa LGBTQIA+. Os Fado Bicha são, porém, muito mais do que protesto. São a melodia, a tradição reinventada, a voz poderosa e a pedrada no charco.
Um dos outros grandes concertos do festival, ou talvez o concerto do festival, foi o de Criatura. Com 27 pessoas em palco – 10 da banda e 17 do Coro dos Anjos – os Criatura são uma banda que. dificilmente, irão desiludir em concerto. Com a carga dramática inculcada por Gil Dionísio, que representa um faz-tudo na banda, desde violino a dança, palavras de ordem a rastejar, os Criatura cativaram, motivaram, puseram todos a gritar palavras de ordem (“Bem Bonda”), a dançar e a cantar. Há um respeito e uma reinvenção da música tradicional, há um pulsar de algo especial e único que é feito ali. São um dos projectos a acompanhar, a ir ver, a dançar e a ouvir. É o trabalho de casa para quem não conhece: ir conhecer, ir ouvir.
Depois de grandes concertos no dia 3, e algum cansaço nas pernas, voltamos a Maria Reis para um envergonhado mosh de fim de tarde. Com o álbum “Benefício da Dúvida” fresco, Maria Reis trouxe-nos as suas canções cruas, emoções muito à flor da pele e por vezes bruscas. Não houve Pega Monstro, mas a Maria Reis já tem marcado, a solo, a sua presença no contexto do rock nacional.
Mas foi no palco António Variações que a emoção do punk mais nos tocou. Os 5.ª Punkada, de Coimbra, e que tem membros portadores de deficiência, mostraram-nos que a vontade é o que mais importa no que toca a ultrapassar obstáculos, transpor barreiras. Foi um concerto bonito pela música que nos oferece e pela grande, grande demonstração do que nos torna humanos, da empatia, da superação e da resiliência. Foi um concerto bastante emotivo porque demonstra o que é a música e o que é o sentido de comunidade. E que ninguém pára a vontade de fazer música, de ser músico – e de oferecer um excelente resultado.
Saindo do palco António Variações, vamos para o palco Zeca Afonso para, possivelmente, a maior enchente deste palco. O culpado? B Fachada, um simples pai dos subúrbios. Nem sempre é fácil gostar de B Fachada (mea culpa desta vossa escriba), mas é inegável a beleza das suas melodias, da forma como brinca com as palavras, a honestidade bruta, e a forma como interage com o público. B Fachada foi uma das chaves de ouro que encerraram este festival.
O Bons Sons de 2022 encerrou com Lena d’Água, Bateu Matou e Riva (+ convidados). Os quatro dias de festival foram intensos. Foram vividos como já há muito ansiávamos, com muitas saudades por matar, muitas ruas a percorrer. Ainda que não houvesse, em todo o festival, um nome forte e incontornável, esta edição do Bons Sons foi a que mais momentos míticos nos trouxe. Desde a beleza de Rita Vian, à imortalidade de José Pinhal, ao tango de David Bruno, às lágrimas nos olhos e os punhos cerrados em A Garota Não, a avassaladora experiência com os Criatura, à emoção dos 5.ª Punkada; por todo o lado, um momento que dificilmente esqueceremos e que entrará, sem qualquer dúvida, para a história de Cem Soldos. Lena d’Água cantou, no seu concerto, “Sempre que o Amor me quiser”, mas, no Bons Sons, temo-lo sempre.
Até para o ano. Já temos saudades.