Respeitem os pesadelos de cada um
Quem é que (ainda) não foi assolado por aquele devaneio – durante o repouso non aeternum, a categoria mais rasca do repouso – pintado em tons de branco, com portas destrancadas e monstros a guardá-las? A sensação que em mim cresce é a de ser perseguido, de forma constante, por um detetive extremamente aguçado nos sentidos e mais sagaz que o agente especial Dale Cooper.
“Sim, já me aconteceu. Pelo menos três vezes. É horrível. Acordei todo transpirado e com a roupa tão colada ao corpo que não sabia distinguir a malha da pele”. Solicito que repensem este vosso discursozinho apavorado. Não, não é um pesadelo ao nível dos verdadeiros. O pavio da minha paciência relativo à missiva “esta noite sonhei com o filme de terror a que assisti” é reduzido em demasia.
Contextualização para as duas retinas lá ao fundo: a sair!
Estava num estabelecimento privado e digo privado porque os restaurantes, até ao momento, ainda não são propriedade do Estado. O arroz de pato sabia àquilo mesmo: devido à travessia ao forno, os grãos vestiam cores douradas e tinham um sabor distinto de todos aqueles que já comi. Enchi o prato duas ou três vezes e o bandulho uma única vez. As minhas mandíbulas só não estavam cerradas quando executava o movimento manual de levar o garfo pejado à boca. Finda a refeição, dei um tabefe no prato, coloquei os talheres de acordo com as exigências do protocolo e recostei-me na cadeira.
Contextualização que devia ter sido dada antes da contextualização prévia.
Em todo e qualquer trespasse da porta do meu aposento, sinto a necessidade e a curiosidade de experimentar as casas de banho dos estabelecimentos e de ser mais um a inscrever os filhos na natação das suas águas. (Considerei adequado o momento para mais uma confissão). Não me cinjo apenas à nata das casas de banho. Já frequentei WC’s e latrinas. Sou uma espécie de sapo numa panela de água a ferver no que toca a casas de banho: adapto-me aos múltiplos cenários, tanto convivo com dificuldades como com mordomias. Já me designaram a Princesa Diana do compartimento de resguardo, mas acho que ainda estou longe desse título.
– Pai, eu… – confidencio.
– Vai lá, vai lá… leva o teu caderno, pega nesta caneta e sê feliz! – interrompeu meu pai.
Chegou o momento.
Arrasto a cadeira, levanto-me e prossigo sem olhar para trás. Dirijo-me ao local de culto e escancaro a porta. Acende-se uma luz. Até aqui tudo bem. Baixo as calças e só depois os boxers – um dia discutimos esta bizarria – e sento-me no trono. Abro o caderno, dobro o polegar para um estalido na caneta e enceto uma síntese sobre as condições fitossanitárias daquela da casa de banho.
“Lavatório em perfeitas condições. Torneira que esguicha água automaticamente. Sabonete líquido com notas cítricas apimentadas e com toque floral e sofisticado de madeiras (pesquisei o nome mal cheguei a casa e achei a descrição oportuna). Urinol devidamente distanciado da sanita. Suporte metálico para toalha de mãos e rosto, no caso de uma ou outra alma pingarem suor quando ingerem comidas picantes. Desentupidor inserido numa espécie de cúpula de plástico e situado imediatamente por trás da sanita.”
Quando me preparava para realizar mais dois ou três apontamentos, a luz apaga-se. Nesse exato momento, reparo que deixei o telemóvel em cima da mesa onde almoçava. Tentei esbracejar e efetuar movimentos de anca, porque a luz apresentava somente essa sensibilidade. Nada. Na sequência deste fenómeno bizarro, constatei uma dormência nas pernas e um súbito calor.
Ora, o leitor antecipa (e bem) conjunturas insólitas.
Se calhasse no erro de iniciar uma chinfrineira, qualquer pessoa que não o meu pai ou a minha mãe podia abalroar a porta e ver-me naqueles preparos. Por isso, evitei o constrangimento e a vivência trágica para a alma que tencionasse demonstrar o seu atrevimento.
Se calhasse no erro de aguardar pacientemente a chegada messiânica da luz e algum homem fosse invadido por aquela vontade específica, a porta seria igualmente abalroada. Sei bem qual é a definição de “aflitinho” e não quero ser motivo de perturbação para ninguém nessa condição.
Importa realçar também que a superfície que se abeirava da sanita estava molhada. Ou seja, se calhasse no erro de pousar o caderno e a caneta no chão para – às cegas – apalpar as nádegas ao papel higiénico, em princípio contaminava todos os meus estudos com urina.
Estive, por momentos, encarcerado num turbilhão de ideias. Tive de pensar numa fração de segundos porque a razoabilidade já não casava com o tempo.
Há pouco tempo notei que faltavam alguns dos meus apontamentos. Pensei que tivesse virado o caderno do avesso antes do serviço urgente, mas não. Desse modo, é pena que se tenham perdido estudos sobre uma temática tão pouco desenvolvida. Contudo, destaco a minha habilidade para o rasgar das folhas em situação de enorme pressão. Parecia trabalho de tecnologia de ponta.
Nem todos têm os mesmos pesadelos.