“Restos do Vento”, de Tiago Guedes: mostra a culpa sem rosto e a inocência sem medos
Este artigo pode conter spoilers.
Numa vila do interior do país, um ritual de passagem, assente numa tradição semi-pagã, deixa mazelas insanáveis num grupo de jovens que, 25 anos depois, se volta a reencontrar. Os rancores do passado vêm à tona, há um crime por resolver e uma tragédia assola a população local.
Filmado em Meimão, aldeia do concelho de Penamacor, “Restos do Vento” é um autêntico e subtil conto de advertência ao rancor, à tradição, à masculinidade tóxica e à retaliação. É uma película dramática que mostra a culpa sem rosto e a inocência sem medos, um ensaio sobre a violência e ilusão de poder, mas, acima de tudo e a meu entender, é um filme sobre consequências, que envolta “o errado e o certo”, o passado e o presente, a injustiça e a impunidade.
O elenco reúne alguns dos suspeitos do costume no trabalho de Tiago Guedes: João Pedro Vaz, Tonan Quito, Maria João Pinho, Gonçalo Waddington, com especial destaque às performances de Nuno Lopes e Albano Jerónimo.
“Violence can be justifiable, but it never will be legitimate. Its justification loses in plausibility the farther its intended end recedes into the future.”
Hannah Arendt, Sobre a Violência
O ano é 1995, “Vem o vento do deserto, misturar o errado e o certo, vem o vento, sopra forte, não é ele que traz a morte.” são as palavras proferidas por um grupo de jovens encapuçados, vestidos com trajes típicos de tradição semi-pagã, antes de espancar Laureano (Benjamim Barroso), provado ser, até ali, o único rapaz com o mínimo de escrúpulos do grupo. Percebemos do que se trata a azáfama quando, momentos antes, Arnaldo (Tonan Quito), o taberneiro local, chama os rapazes ao seu estabelecimento para lhes troçar os sexos e lhes dar umas vergastadas. Trata-se de um rito de passagem, uma praxe aos que se vão “tornar homens”. Não sabemos o que é mais patológico, se a atitude do velho Arnaldo, se a apatia e banalização da situação por parte das testemunhas presentes.
Vinte e cinco anos depois, reencontramos Laureano (agora Albano Jerónimo), no papel de “maluquinho da aldeia”, vive precária e despreocupadamente, num casebre junto à ribeira, enquanto todos os outros continuaram a sua vida, arranjaram trabalho, constituíram família e permaneceram impunes ao castigo do espancamento.
Assistimos, com a calma que só o interior rural pode oferecer, ao quotidiano de Laureano que, acompanhado pela sua matilha de cães de rua, percorre a vila a pé, na esperança de que um local lhe arranje mais “um cigarrinho”. Conhecemos, também, Samuel (Nuno Lopes), gerente do matadouro local e pai de Pedro, adolescente inconsequente que, a par com o seu grupo de amigos arruaceiros, parecem tornar-se os novos recetáculos da violência outrora folegada, que vai e vem, conforme o rumo do vento. Somos, ainda, apresentados a Paulo (João Pedro Vaz), agora GNR e à sua esposa Judite (Isabel Abreu), a única aliada de Laureano.
O argumento é assinado pela colaboração entre Tiago Guedes e Tiago Gomes Rodrigues, dupla célebre que nos trouxe Alegrias e “Tristezas na Vida das Girafas” (2019) e “A Herdade” (2019). O enredo leva o seu tempo até ao trágico incidente desencadeador e a partir daí instala-se um autêntico ensaio sobre o luto e à violência, mote central da narrativa.
“Restos do Vento” aborda interrogações que têm vindo a inquietar as grandes mentes da filosofia e da ética: “o que justifica a violência e a agressividade?”, “são a violência e a maldade indissociáveis?”, “que relação mantém a violência com a ilusão de poder?”, “o que leva à banalização do mal?”. Questionam-se, ainda, as hierarquias, a impulsividade, o falso sentido de poder e domínio, levando-nos a concluir, à semelhança de Hannah Arendt, que existem inúmeros motivos para justificar a violência, mas nenhum para legitimá-la. No decorrer do filme são, ainda, explorados diferentes graus e tipos de abuso e agressividade, que tal como brisas ou vendavais, circulam num espírito tempestuoso que se perpétua de geração em geração, camuflado pela banalização da violência e da misoginia e encoberto por um sentimento de impunidade geral, cíclico, como os movimentos das eólicas.
Numa primeira análise, mais superficial, algumas das personagens podem passar como bidimensionais, no entanto, esta particularidade parece-me intencional, na medida em que nos é fornecido um vislumbre daquilo que constitui o quotidiano rural, um espaço onde apenas podemos adivinhar o que cada pessoa sente por lhes conhecermos o contexto.
A relação com muitas personagens é mantida à distância e, neste sentido, o realismo exacerbado é comprometido em função do bom drama. Ao olharmos atentamente para as expressões dos atores e pontuações temáticas no enredo, observamos que a dupla Guedes/Rodrigues nos pinta um retrato à autenticidade humana e o que pode parecer uma caricatura rapidamente se transforma numa ode ao luto e num exame fraturante à tríade “comunidade, masculinidade e impunidade”.
Ainda que todo o elenco faça um trabalho absolutamente brilhante, nunca são suficientes os elogios à performance de Albano Jerónimo, sublime e inigualável, transmite-nos a inocência, a ternura e a bondade de Laureano e traz profundidade a uma personagem com poucas preocupações, além de “arranjar cigarrinhos”, claro.
Na ótica técnico-formal, Guedes apresenta-nos um trabalho exemplar de encenaçãoe blocking logo na primeira cena, através de um plano-sequência hand-held poderosíssimo. Torna-se evidente a evolução que existe no seu trabalho, que desde “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” (2019), “Coisa Ruim” (2006), “A Herdade” (2019) à série “Glória” (2021), não deixa de surpreender pela forma como utiliza a linguagem audiovisual. Ainda que pareça ter atingido a sua melhor forma, o realizador continua a testar práticas e exercitar novas técnicas cinematográficas. Em “Restos do Vento”, existe uma forte experimentação com o ritmo, onde o compasso narrativo estabelece uma forte relação com a montagem, dando um metro bastante próprio à estória, o que perdoa algum do tempo de exposição excessivo.
É pertinente referir que cada cena se encontra repleta de motifes altamente alegóricos (vento, cães, aguardentes, máscaras, eólicas), que enriquecem a mis en scène e nos ajudam a fazer sentido de um filme que não revela tudo à primeira exibição.
“Restos do Vento” é um filme que responde a quem procura compreendê-lo com sensibilidade, uma raridade contemporânea. Tiago Guedes é um dos nossos melhores realizadores, cujo trabalho se encontra em permanente mutação. Acredito que através desta reinvenção incessante, e mesmo sem se aperceber, Guedes está a recriar a identidade que se encontra na génese do cinema português.