“Regresso a Reims”, de Didier Eribon: um livro sobre identidade, humanismo, consciência e crítica social e política
O escritor, filósofo e sociólogo Didier Eribon (ler entrevista no Público) conquistou o seu lugar no meio intelectual francês através da atividade de jornalista literário, como estudioso das obras de Michel Foucault e Pierre Bourdieu (desenvolvendo amizade com ambos) e posterior carreira académica enquanto orador e docente de sociologia.
O autor regista uma profunda reflexão de consciência de classe, de orientação sexual e política em “Regresso a Reims” (editado pela Dom Quixote). Esta reflexão está estruturada num misto de autobiografia e sociologia (o autor inspira-se em parte na obra de Annie Ernaux, Nobel da Literatura de 2022). Aqui a narrativa surge intrinsecamente ligada à sua infância e adolescência, nos bairros mais pobres da cidade de Reims.
Eribon estabelece as bases lógicas para uma crítica pessoal, de esquerda em particular e da sociedade em geral. Aponta também dinâmicas sociais e políticas que suportam essa autocrítica e o seu papel no crescimento da extrema direita (ou concretamente, no enfraquecimento da esquerda tradicionalmente próxima dos trabalhadores). É por isso uma história sobre identidade e humanismo acima de tudo, mas também de consciência social e política.
“Os processos de pertença e transformação de si, de constituição da identidade e da recusa desta, estiveram por conseguinte, para mim, sempre ligados um ao outro, sempre imbrincados um no outro, combatendo-se e limitando-se reciprocamente.”
“Regresso a Reims”, livro de Didier Eribon
Para além da construção da sua própria identidade, este livro debruça-se sobre as diversas desigualdades e opressões que pairam sobre as classes sociais mais baixas e como, facilmente, se perde a influência política sobre esse imaginário e identidade colectiva. Demonstra de diversas formas (os percalços do percurso académico) que o conceito de “elevador social” não se aplica muitas vezes em situações nas quais deveria funcionar. Apesar de ser condição obrigatória, estudar não é garantia de mobilidade social (e cada vez é menos). Isto é, “Porque os destinos sociais ficam traçados desde bem cedo! Tudo se decide por antecipação! Os veredictos são dados antes mesmo que se possa tomar-se consciência deles“, refere Didier Eribon.
Eribon parte do momento da morte do pai (marcadamente violento, machista e homofóbico), para proceder a este seu regresso a Reims. Um regresso de carácter físico, emocional e sociológico, com o enorme contributo das memórias da sua mãe. Aponta ainda que na sua infância e posteriormente sempre sentiu as desigualdades às quais a sua família estaria condenada (há várias gerações).
Destaca também a forma como a sua família se agarra a profissões de pouca qualificação e mal remuneradas para sobreviver. Refere mesmo a maneira como a classe baixa fica refém da pobreza, através de pequenos incrementos na qualidade de vida ou reconhecimento profissional, que não as empurram para fora da sua condição social, dando o seguinte exemplo: “Foi só muito mais tarde que o meu pai conseguiu subir alguns degraus, se não na hierarquia social, pelo menos na da fábrica, passando por etapas do estatuto de operário não qualificado para o de operário qualificado e, por fim, de supervisor.”
O seu percurso de vida está profundamente ligado à sua orientação sexual. Sendo um jovem gay não assumido, relata a gradual quebra com as suas origens operárias, inicialmente impulsionada pelo desejo de se libertar de um meio altamente repressivo para a sua sexualidade. Sente-se diversas vezes culpado pela renúncia de classe e pela dúvida sobre se poderia ter sido influência positiva nos irmãos mais novos. Gradualmente relaciona esta quebra e posterior ida para Paris com a crescente ambição intelectual, desenvolvida na companhia das pessoas que foi conhecendo. O seu pensamento crítico nunca se escuda no facto de ser homossexual e na opressão sofrida, analisa até algumas vantagens que este facto inscreveu no seu percurso.
“O que hoje sou formou-se pelo entrecruzar desses dois percursos: eu tinha-me mudado para Paris com a dupla esperança de viver livremente a minha vida gay e de tornar-me um «intelectual». A primeira parte desse programa realizou-se sem grande dificuldade. Mas a segunda não tinha dado em nada: depois de ter fracassado nas minhas tentativas para entrar no ensino secundário, bem como nas de fazer uma tese de doutoramento, dei comigo sem trabalho nem perspectivas. Salvaram-me os recursos da subcultura gay. Os lugares de engate proporcionam, até certo ponto, uma mistura de classes sociais.”
“Regresso a Reims”, livro de Didier Eribon
Ou seja, ao escapar à repressão sexual do meio operário, encaminhou-se para a eventual emancipação social, da classe à qual pertencera e com a qual perdeu quase todo o contacto. Paralelamente, esta transformação da sua identidade efectua-se moldando o seu comportamento social, linguagem e pensamento ao novo meio em que se inseriu (cimentado a sua rotura social com a família).
Boa parte deste seu exercício de reflexão centra-se na desconstrução dos seus valores políticos e humanos, sobre identificar quais podem ser os caminhos de evolução do exercício desses valores. Contextualiza as suas experiências com a evolução das esquerdas no seu meio social, reflectindo sobre como, inicialmente, “entre a «classe operária», a política de esquerda consistia antes de mais numa recusa muito pragmática daquilo que se sofria na vida quotidiana. Tratava-se de um protesto, não de um projeto político inspirado por uma perspectiva global“, refere Didier Eribon em “Regresso a Reims”.
Refere a forma como a classe operária é remetida (por si e pela sua nova classe social) para um papel simbólico e fetichista, que a dá como garantida nas intenções e interesses próprios: “o meu militantismo esquerdista, era talvez apenas uma forma de idealizar a classe operária, de a transformar numa entidade mítica perante a qual a vida dos meus pais me parecia bastante censurável.” Disseca como os pobres não anseiam por palavras de ordem e uma intelectualização excessiva da sua condição, anseiam por dignidade, qualidade de vida e que não os “obriguem” a relativizar as suas lutas e dificuldades particulares, em nome de lutas que, muitas vezes, nem compreendem (nem tem de compreender, na verdade).
“No fundo, estava marcado por dois vereditos sociais, um veredito de classe e um veredito sexual. Nunca é possível escapar às sentenças proferidas. E eu trago em mim as marcas desses dois vereditos. Mas uma vez que eles entraram em conflito um com o outro em dado momento da minha vida, tive de me moldar a mim próprio voltando-os um contra o outro.”
“Regresso a Reims”, livro de Didier Eribon
Existe também um diagnóstico sociológico e político nesta obra. Através dele são traçados caminhos para o ressurgimento das extremas direitas na Europa: a antiga esquerda revolucionária (mas conservadora) transformou-se numa esquerda moderna que se abstrai das lutas locais de dominação de classe, preferindo priorizar causas globais dispersas. Isto em esquecimento da maioria oprimida que, ideologicamente, querem defender (e onde se incluem essas mesmas causas repartidas, sem noção hierárquica, de proximidade ou de urgência entre si).
O distanciamento das esquerdas das realidades locais, empurra progressivamente o oprimido de classe baixa, para quem se proponha a assumir o papel de sua “voz”. Porque no fundo é disto que se trata, nesta e em todas as causas: o desejo colectivo de ser ouvido.
Em França e um pouco por todo o lado, a extrema-direita tem captado esse descontentamento de forma oportunista e populista. Esta transição de eleitorado reflete-se na sua família, que mudou a intenção de voto operário, do Partido Comunista Francês para a Frente Nacional (que atualmente explora e alimenta as sementes da revolta presentes nas classes sociais mais baixas).
Isto deve-se, em parte, à diluição da génese da atividade política de esquerda, que deveria ter como foco a melhoria da vida dos pobres, e não como meio para indivíduos ricos e de classe média-alta burguesa se sentirem bem em relação à sua condição social (e sem repartir os seus privilégios). Eribon reflecte sobre o seu próprio papel nessa migração de orientação política em curso, e talvez exista algum sentimento de culpa até, sobre se a sua rejeição de classe acelerou o processo na sua família.
“De modo que, quando eu ia a manifestações contra os sucessos eleitorais da extrema-direita, ou quando apoiava os imigrantes e indocumentados, era contra a minha família que eu protestava! Mas poderia também inverter a frase e dizer que a minha família se posicionara contra tudo aquilo que eu defendia e, portanto, contra tudo o que eu representava aos olhos deles (um intelectual parisiense agastado das realidades e desconhecedor dos problemas que as pessoas do povo enfrentam).”
“Regresso a Reims”, livro de Didier Eribon
Seja qual for a orientação política, é importante não esquecer que este desequilíbrio da balança democrática não é só mau agoiro para as esquerdas, é um mau agoiro para todos. Principalmente os que reconhecem o papel de cada ideologia na construção de uma sociedade, de coexistência plena em democracia. Um dos antídotos para os extremismos políticos é a informação e a educação, não só a formal mas também a que se obtém vivendo no mundo que nos rodeia (e fora de bolhas de privilégio, de diversas ordens). Eribon define uma responsabilidade pessoal sua (nossa) de contribuir para uma evolução do pensamento político. Remetendo para a sua experiência pessoal, tem particular interesse na intervenção política de cariz interseccional.
“E se são os discursos e as teorias que nos constituem enquanto sujeitos da política, não nos incumbirá construir discursos e teorias que nos permitam nunca negligenciar este ou aquele aspeto, não deixar de fora do campo da perceção ou do campo da ação nenhum domínio da opressão, nenhum registo da dominação, nenhuma condenação à inferioridade, nenhuma vergonha ligada à interpelação injuriosa..?”
“Regresso a Reims”, livro de Didier Eribon
Neste regresso ao passado com os olhos no futuro, compreendemos melhor os obstáculos que teve de ultrapassar para atingir o sucesso e escapar às suas origens, considera até uma boa dose de sorte e aleatoriedade no seu percurso, que chega a apelidar de “milagroso”. Estabelece uma noção de como as opressões se relacionam e se precedem entre si.
Destaco a capacidade de aplicar uma visão distanciada em relação ao seu próprio passado, com um pendor autocrítico comovente e numa impressionante honestidade intelectual. Desenvolve uma crítica que, apesar de ser muitas vezes de origem pessoal, explora de forma original as profundas ramificações e variáveis da desigualdade social. Consegue humanizar quem dela sofre, através das suas palavras e experiências que partem de um lugar familiar a muitos de nós. A capacidade crítica e honestidade intelectual de autores como Didier Eribon não faz apenas falta ao pensamento político de esquerda, faz falta ao pensamento político.