‘As Últimas Testemunhas’, infâncias destruídas pela guerra

por Mário Rufino,    28 Novembro, 2017
‘As Últimas Testemunhas’, infâncias destruídas pela guerra

Svetlana Alexievich (n. 1948), Prémio Nobel de Literatura 2015, continua a registar a história da União Soviética utilizando as vozes das vítimas. Mais do que uma análise da macroestrutura das condições políticas, ou da exegese biográfica dos protagonistas, a escritora nascida em Minsk dá espaço para as vozes das pessoas se fazerem ouvir. Enquanto o historiador olha para o global, para esses grandes acontecimentos e grandes personagens, Svetlana olha para o pormenor, para o aldeão, para a criança, olha para quem a tragédia foi muito mais do que algo abstracto.
“As Últimas Testemunhas – cem histórias sem infância” (Elsinore; trad. Galina Mitrakhovich) mantém a estrutura de livros como “Vozes de Chernobyl”, “Rapazes de Zinco”, ou “A Guerra Não Tem Rosto de Mulher”.
O combate do exército soviético no Afeganistão, entre 1979 e 1989, foi o “leitmotiv” de “Rapazes de Zinco”.
A Segunda Guerra Mundial é analisada em dois livros complementares. Depois da publicação da perspectiva feminina sobre a Segunda Guerra Mundial, surgem os testemunhos de quem era criança quando a Alemanha invadiu a União Soviética, em 1941.
A “Operação Barbarossa” consistiu na invasão do território da URSS pela Alemanha. Hitler procurou destruir o exército soviético, eliminar a ameaça comunista, aniquilar os judeus, e conquistar território importante para cumprir o seu objectivo expansionista. Ao aplicar a Directiva 21 (ou “Operação Barbarossa”) Hitler quebrou o pacto Molotov-Ribbentrop, que assegurava a não-agressão entre tropas soviéticas e alemãs. Foi uma das maiores operações militares organizadas e executadas por Adolf Hitler.
O contexto vai sendo conhecido de forma imprecisa e sentimental. A polifonia dá um mosaico narrativo. É mais sobre como as crianças interpretaram os acontecimentos do que uma investigação factual e diacrónica. “As Últimas Testemunhas” é um livro sobre pessoas e de como estas viveram e interpretaram aqueles momentos horrendos. Esses testemunhos são registados com muitas das inerentes marcas da oralidade, ou seja, pausas acentuadas, pensamentos interrompidos e até intercalados, narração fragmentada. A dor – e o humor como mecanismo de defesa – está sempre presente. Nesses 101 testemunhos, há morte.  Crianças ficam sem pais, sem irmãos, sem casa, sem vizinhos. Ficam sem inocência.
As casas são destruídas, os orfanatos recebem milhares de crianças desamparadas. Mas até no horror há o belo. As palavras destas pessoas, actualmente pertencentes a tão diferentes extractos sociais, alcançam a beleza da mais excelsa literatura.

Um dos elementos mais intrigantes de qualquer texto literário é a identificação do autor.
A mediação que Svetlana Alexievich faz entre os testemunhos e o leitor é suficiente para podermos caracterizar os seus livros como Literatura e a escritora como autora?
A pergunta é polémica e até radical, mas não é nova.
Ao longo da evolução da Teoria da Literatura, o papel do autor foi sendo modulado.  Wayne Booth (“The rhetoric of fiction”) fala em autor implícito (um segundo “eu”) e autor real (o autor como sujeito empírico e histórico). Vítor Aguiar e Silva identifica outras designações, como autor abstracto (em vez de autor implícito) e autor concreto (em vez de autor real).
Em “Teoria da Literatura”, Aguiar e Silva explica os conceitos bipartidos e tripartidos nas teorias sobre o papel do autor, defendidos por Mukarovsky, Bonati, Culler, Vand Dijk e Dolezel, para depois acrescentar a sua preferência. A divisão proposta por Aguiar e Silva ajuda-nos a entender a importância de Svetlana Alexievich na construção do texto literário.
Segundo o ensaísta português, a divisão mais correcta é a de “autor empírico”, que possui existência como ser biológico e jurídico-social, e “autor textual”, que existe no âmbito de determinado texto literário.  O autor textual é o emissor que assume a enunciação do texto literário, estando oculto ou explicitamente presente nesse texto.

“Com efeito, se existem textos em que o eu do autor textual está explicitamente representado e afirmado – assim acontece em numerosos textos líricos, em muitos textos narrativos e em raros textos dramáticos -, noutros textos – em quase todos os textos dramáticos, em numerosos textos narrativos e também em muitos textos líricos -, o autor textual está como que ausente ou oculto, como se fosse um eu de “grau zero”.

Barthes afirma que o autor literário (écrivain) trabalha a palavra  sob dois tipos de normas: técnicas (de composição, de género, de escrita) e artesanais (trabalho, paciência, correcção). Em muito se difere do escrevente, para quem a palavra suporta o meio, mas não o constitui. O escrevente é transitivo e postula um fim, como o testemunho.
A voz da autora oculta-se do texto em benefício das vozes das personagens reais.
A escolha das partes mais importantes das muitas horas de conversa, a escolha dos entrevistados a constar no livro, a ordem  dos seus testemunhos são da responsabilidade da escritora.

“As Últimas Testemunhas – cem histórias sem infância “ traz-nos o horror contado pelas crianças que têm a responsabilidade de, agora, serem as últimas testemunhas dessa invasão concretizada pelas tropas alemãs.

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