Édouard Louis e a violência cometida sobre os operários franceses

por Miguel Fernandes Duarte,    27 Agosto, 2020
Édouard Louis e a violência cometida sobre os operários franceses
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Desde cedo que Édouard Louis dá a cara pelas lutas que valoriza. Alcançando elevado reconhecimento logo com a publicação do seu primeiro livro, Acabar com Eddy Bellegueule (2014), onde expõe como foi crescer gay no seio de uma família operária no norte de França, o jovem escritor francês tem-se vindo a associar cada vez mais às lutas sociais da esquerda francesa, inclusivamente através de diversos artigos e crónicas nos jornais franceses.

O seu percurso pode, aliás, ser visto paralelamente ao do seu grande amigo Didier Eribon, sociólogo que, o ano passado, lançou Regresso a Reims, um dos melhores retratos do crescimento da extrema-direita entre os meios operários franceses, baseando-se na sua própria família que, homofóbica e racista desde sempre, passou de ardente defensora do Partido Comunista Francês para votante da Front National (agora Rassemblement National) de Marine Le Pen. Finda a luta pelo projecto de futuro que o PCF propunha, desagregou-se a comunidade e restou o ódio que sempre lá estivera.

Trocando as suas pequenas terras por Paris, tanto Eribon como Louis fizeram de tudo para se libertar das amarras operárias das suas famílias, sentido que só assim, longe da crítica familiar, seriam capazes de finalmente abraçar a sua homossexualidade e intelectualidade. Ambos transitaram do seu meio rural e operário para o meio burguês parisiense, ambos escondendo o seu passado para melhor se integrarem no meio onde queriam entrar. E ambos, afastados da sua família, se viram na necessidade de a ela regressarem.

Édouard Louis por Arnaud Delrue

Após a revolta de Acabar com Eddy Bellegueule, Édouard Louis já mostrara uma certa reaproximação à sua família em História da Violência (2019). Mas é no seu mais recente Quem matou o meu pai, agora lançado em Portugal pela Elsinore, que se dá realmente esse reencontro.

São pouco mais de 90 páginas onde o autor vai simulando um diálogo com o seu pai, num misto de condenação e justificação, um estender do braço à procura de compreensão pelo que acontecera ao seu pai. Por entre toda a violência que marcara a vida que os dois partilharam, e que afastara o jovem Eddy da sua família, passa a ideia de que, fossem as condições de vida diferentes, o seu pai poderia ter crescido outra pessoa. No fundo, pai e filho partilhavam gostos, como cantar e dançar, que o pai fora obrigado a reprimir, fruto da violência da vida que tinha e da ideia de masculinidade que lhe era passada.

“(…) a tua existência foi, contra a tua vontade e precisamente contra ti, uma existência negativa. Não tiveste dinheiro, não pudeste estudar, não pudeste viajar, não pudeste realizar os teus sonhos. Na linguagem, quase só há formas negativas para descrever a tua vida.”

Antes de se ter tornado operário na fábrica onde trabalhou até um acidente no trabalho o ter condenado à invalidez, tentara até uma outra vida, tentara escapar àquilo a que a sua condição o condenava.

“Viveste todas essas experiências o mais intensa e agressivamente possível, por teres a sensação de que era uma coisa que estavas a roubar (…) há pessoas a quem a juventude é oferecida, e há pessoas que não podem senão teimar em roubá-la. (…) É o problema das coisas roubadas, como te aconteceu com a juventude, não conseguimos pensar que elas nos pertencem verdadeiramente e temos de continuar a roubá-las até à eternidade, num roubo que nunca termina. (…) Só aqueles a quem sempre foi dado tudo podem sentir verdadeira sensação de posse, os outros não. A posse não é uma coisa que se consiga adquirir”

Mas é a invalidez que acaba por destruí-lo. Além da sensação de inferioridade, o tédio toma conta da sua vida e o ódio destila cada vez mais, em todas as direcções, não poupando o filho homossexual que não mostrava interesse por nada daquilo a que masculinidade supostamente obrigava. E mesmo que, anos depois, pai e filho tenham afinal conseguido reconciliar-se, já era tarde demais.

“Mudaste, nos últimos anos. Tornaste-te outra pessoa. Conversámos muito, durante muito tempo, explicámo-nos, eu queixei-me da pessoa que foste quando eu era criança, da tua dureza, do teu silêncio, das cenas que tenho contado aqui, e tu escutaste-me. E eu escutei-te. Tu, que toda a vida repetiste que o problema de França vinha dos estrangeiros e dos homossexuais, agora críticas o racismo francês, pedes-me que te fale do homem que amo. Compras os livros que eu publico, oferece-los às pessoas à tua volta. (…) Mas o que eles fizeram do teu corpo não te dá a possibilidade de descobrires a pessoa em que te tornaste.”

Eles são os sucessivos governantes de uma república francesa a quem Édouard Louis dirige este livro, aqueles que acusa de terem destruído o seu pai.

“Hollande, Valls, El Khomri, Hirsch, Sarkozy, Macron, Bertrand, Chirac. A história do teu sofrimento tem nomes. (…) A história do teu corpo acusa a história política.”

Atrás das narrativas políticas, existem caras. Aqueles que pessoas como Macron e Sarkozy acusam de ser um entrave, um “calaceiro”, um inútil, são pessoas como o pai de Louis. Sujeitos a constante humilhação por parte do poder, só lhes resta o rancor e a revolta.

“Sabes desde sempre que esse nome [“calaceiro”] está reservado para as pessoas como tu, aquelas que não puderam ou não podem trabalhar porque vivem demasiado longe das grandes cidade, que não arranjam trabalho porque foram postas fora do sistema de ensino demasiado cedo, sem qualificações, aquelas que já não podem trabalhar porque a vida na fábrica lhes esmagou as costas.”

É sempre mais fácil criticar quando o alvo é anónimo, uma massa facilmente culpabilizável pelas nossas falhas enquanto sociedade. Assim, facilmente se culpam aqueles que estão mais longe do poder, facilmente se arranjam vários bodes expiatórios que não tenham como se defender. Pior, às vezes o efeito desta culpabilização é tão grande que os próprios alvos não se auto-identificam na crítica, acham que não estão a falar para eles mas sim para o vizinho do lado. Porque, no fundo, para conseguirem ascender socialmente, têm de conseguir demarcar-se o mais possível destes “calaceiros”. É um discurso que promove o individualismo, a desagregação comunitária. Enquanto é outro a ser pisado, não sou eu. Mas este discurso vem, verdadeiramente, daqueles a quem interessa perpetuar essa situação, e Édouard Louis não tem medo de dizer os seus nomes. Talvez assim sejamos finalmente capazes de mudar o alvo – para que as causas das dores e decepções possam, também elas, ter caras.

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