Entrevista. Frederico Serra: “Não acho que o cinema português seja pouco interessante. A prova é que muito do nosso cinema tem boa carreira lá fora”
O cineasta Frederico Serra, de 58 anos, cursou técnicas de expressão e comunicação audiovisual na Escola Artística António Arroio. Ao longo da sua carreira, o realizador já produziu publicidade e telediscos, contudo, a sua grande paixão é o cinema de género, mais precisamente, o cinema de terror. O cineasta tem-se consagrado no panorama do cinema português, possuindo no seu portefólio algumas das obras mais prestigiadas do cinema de terror nacional, como é o exemplo da longa metragem, Coisa Ruim, de 2006, ou a mini-série Noite Sangrenta, de 2010, ambas as obras realizadas em parceria com Tiago Guedes. Agora, em 2023, prepara-se para lançar os seus mais recentes projetos, a série Lusitânia, em parceria com a RTP, e a longa metragem Criança lobo, que faz parte da série, mas que por vontade de Frederico Serra ganhou lugar também nas salas de cinema.
De onde surgiu o seu interesse por trabalhar em filmes terror?
O meu interesse em trabalhar em terror surgiu quando comecei a ver filmes do género. Fazia parte de um dos meus objetivos vir a fazer filmes de terror desde jovem. Mais tarde, cimentou-se com o facto de o meu primeiro filme de terror, o Coisa Ruim [2006], ter sido com o Tiago [Guedes]. Já não me lembro quem é que espoletou a ideia de um filme de terror nessa altura. O Coisa Ruim, inicialmente, era um filme de género, e não era para ser de terror, mas mais de drama familiar associado às crenças da população. Sempre tive vontade de explorar essa área porque emocionalmente, para mim, tendo em conta o tipo de público ligado, e que aprecia o género, é muito gratificante fazer filmes para esses espectadores.
Cada género de cinema possui necessidades e desafios diferentes. Fazer uma comédia romântica, por exemplo, é diferente do que fazer um filme de terror. Enquanto realizador, quais são os grandes desafios do cinema de terror?
Para mim é muito mais difícil fazer uma comédia romântica do que um filme de terror [risos]. Não sei fazer comédias românticas. Esse sim seria um grande desafio, fazer um musical, ou uma comédia romântica, um grande desafio do qual não tenho grande interesse. Acho que não sei responder a essa pergunta porque o desafio passa muito pelo argumento, a maneira como o estruturas, e pela sua originalidade, isso é logo o ponto de partida para um filme de terror. Este género pode ser mais caro, mais barato, mais difícil de produzir com mais ou menos efeitos especiais, a base disto tudo está essencialmente no argumento e no conteúdo, e aí sim, acho que o grande desafio é conseguir fazer algo original e eficaz no sentido do que é um filme de género. Isso sim, pode ser um grande desafio, porque com a agravante de que o público de género é muito atento, exigente, e são pessoas que gostam de cinema, e de serem respeitadas enquanto espectadores. Acho que o grande desafio é conseguir fazer um argumento e conteúdo decentes, obviamente tendo em conta as limitações financeiras. Uma pessoa tem que sempre seguir um caminho, ou estratégia, que esteja adequada às suas limitações para não ficar uma coisa manhosa.
“Gosto muito de trabalhar com o que está subentendido na mente das pessoas”
Frederico Serra
Referiu que, para si, fazer uma comédia romântica seria um grande desafio. Considera então que a escolha do género dos filmes de realizador para realizador seja sobre um talento natural?
Acho que é por falta de interesse, ou de conhecimento, que eu não tenho “skills” para fazer uma comédia romântica. Isto são coisas que temos de gostar muito do que fazemos, e eu gosto de explorar este género, e esta parte emocional que mexe com o desconforto. Tem que ver com o gosto com que eu me entrego a essas coisas e se calhar, por isso, é que resultam bem, porque me identifico com o que estou a fazer. Acho que se fosse fazer uma comédia romântica haveria um grande risco de ser uma grande porcaria. Tenho a certeza de que sim, não ia ficar grande coisa.
Dentro do terror existem vários subgéneros, há o terror psicológico, sobrenatural, horror, entre outras variantes. Qual é o género de terror que mais gosta?
O género de terror que mexe com o tipo de relações emocionais e humanas, esse género de terror sim, com dramas de família, é o que eu mais gosto. Os outros géneros de terror também me interessam. O Criança Lobo [2022] é muito psicológico, aliás, para mim, o Criança Lobo poderia ser só terror psicológico até ao momento em que o monstro aparece numa fração de segundos. Gosto muito de trabalhar com o que está subentendido na mente das pessoas, ou seja, trabalhar o que vai na cabeça dos personagens e não na dos espectadores, brincar com os personagens.
Na primeira pergunta respondeu que o seu interesse em terror veio de quando começou a ver filmes do género. Quais são as suas inspirações enquanto realizador?
Não sei dizer. Não é por arrogância nenhuma em especial. Eu vi alguns filmes de terror, como os do Friedkin [William Friedkin], que provavelmente é minha grande referência [hesita]. Eu vi vários filmes de terror ao longo dos anos, e se me fizessem essa pergunta quando eu tinha 25 ou 26 anos saberia responder com mais certeza. Agora já não sei porque é um acumular de informação, e muitas das vezes nem tem a ver com referências de terror, tem a ver com referências de filmes em que haja estas discordâncias de relações, esta falta de comunicação, ou um ambiente desconfortável que há em tantos filmes, e que depois se leva, ou não, ao terror…. É uma maneira de depois a pessoa trabalhar e aprofundar os filmes não propriamente com base numa referência específica. De algum modo, este filme [Criança Lobo] e o Coisa Ruim tocam-se de alguma maneira no sentido de família, a relação da mãe, o filho, há ali um desentendimento não muito claro entre o pai e a mãe. Há ali questões que têm algumas semelhanças com o Coisa Ruim, e com outros filmes que não são de terror e que abordam esse tema que é esse desconforto que as personagens criam a elas próprias.
Terror português
Em relação ao panorama nacional do cinema de terror. Considera que há bom cinema de terror em Portugal?
Não sei, acho que ainda há pouco. Há potencial, e dá para ver pela quantidade de apaixonados de filmes de terror que existem neste país, podemos ver pelo sucesso do MotelX [Festival de cinema de terror de Lisboa], e o facto de, por exemplo, haver neste momento concursos do ICA [Instituto do Cinema e Audiovisual], em que apoiam o financiamento de filmes de género, já demonstra uma consciência e que começa a haver espaço para essa área do cinema cada vez mais.
“Não podemos fazer filmes a pensar no sucesso de bilheteira, acho que devemos fazer filmes em que acreditemos, e conteúdos que sejam interessantes, honestos, e que respeitem o espectador.”
Frederico Serra
Ao longo dos anos temos visto filmes de terror eternizarem-se como clássicos e fazerem sucesso pelo mundo. Posto isto, porquê é que acha não há mais investimento no cinema de terror nacional?
Aí já entramos num campo que é muito mais complexo do que responder sim ou não. Tem que ver com o apoio à cultura, e o que é que deve ser considerado, ou não, apoio à cultura nestes casos dos apoios públicos, apoios que têm que ver com financiamento, concursos públicos, e com aquilo que é um filme a pensar nas receitas e sucesso comercial. Acho que são coisas difíceis de se explicar literalmente, e daí estarmos há décadas a discutir esse tema de porque é que não há mais apoios a filmes com resultados de bilheteiras. Posso responder de uma determinada maneira. Se estes filmes têm esses resultados de bilheteiras então não precisam de apoios do ICA, poderia dar uma resposta desse género, como poderia dar uma resposta do género, os apoios culturais devem definitivamente fomentar e apoiar projetos com alguma singularidade cultural. Não fazia sentido apoios culturais que não trouxessem nada de novo, ou que fossem imitar o que já se faz nos Estados Unidos, podíamos ficar horas a falar sobre o conceito dos investimentos públicos. Algo que as pessoas não têm consciência, e digo mais, é até ao nível de investimento privado, é que os filmes de terror em geral dão resultados económicos muito bons. O Investimento versos a receita são muito bem-sucedidos, mas aí devia haver investimento privado, ou pelo menos mais apoios para esse efeito, porque na verdade, consegue-se fazer filmes de terror, ou temáticas do género, com muito pouco dinheiro. Consegue-se com investimentos bastante reduzidos fazer um filme muito poderoso e muito forte. Agora se deve ser à conta do investimento do ICA, isso já tenho duvidas, porque da mesma maneira, posso dizer que uma pessoa que faz filmes a pensar no resultado de bilheteira…[hesita] Eu acho que isso é uma maneira de pensar que não faz sentido, e não é um valor seguro, porque ninguém tem essa fórmula. Podemos ver em filmes pelo mundo, nos Estados Unidos os grandes estúdios só pensam nisso [bilheteira], mas 90% dos filmes de estúdio não tem sucesso, vai direto para os streamings baratos e nem tem sucesso de bilheteiras. Fazer um filme a pensar nessa forma é um grande risco, é quase como jogar no totoloto.
Criança Lobo e a Lusitânia
Como foi o processo de realização do filme?
O Criança Lobo faz parte de uma série de televisão que são seis contos, cujo mote que deu origem às criações destas histórias foram alguns mitos de lendas portuguesas. São todas diferentes, há um conjunto de contos, e na altura começamos com dois, depois fomos procurando mais e acabamos com 6 contos diferentes, e a Criança Lobo é um deles, é um conto que é baseado num fenômeno que se passou em Darque, ao pé de Viana do Castelo. Um conto sobre uma mulher que queria engravidar e que fez um pacto com forças sobrenaturais para conseguir engravidar, e resultou em ter uma criança que era amaldiçoada. Tudo isso faz parte de uma série. A Criança loba, especificamente, e por eu gostar muito daquele conto, é o mais de género, e definitivamente o mais ligado a um clima de terror. Justificava ser mais que um episódio de uma série de televisão, até pela duração, e espaço que precisava. Aquele episódio resulta melhor em sala de cinema do que em televisão.
Os contos da série são bastante distintos. Os géneros dos episódios vão além do terror?
São todos diferentes, um é assim mais de comédia, e se calhar outros dois tocam também mais na comédia, e os outros são de aventuras, mas de terror mesmo propriamente dito é só este [Criança lobo]. Todas histórias são diferentes, uma é mais de comédia até porque a própria lenda tinha uma certa comicidade em si. Uma aldeia que estava amaldiçoada pelo diabo, e vão pedir ajuda a um padre conhecido por fazer milagres, mas, erroneamente, o padre decide fazer uma aposta com o diabo, logo aí é um disparate fazer uma aposta com o diabo. Aquilo depois é engraçado porque, sem querer, ele torna-se um herói.
Interesse ou desinteresse do público
Regressando ao tema sobre o panorama nacional do cinema português e o interesse do grande público. Considera que o público português não anda interessado no cinema nacional ou as produções é que não interessam ao público?
[Risos] Podia dizer que são as duas coisas, acho que o cinema melhorou muito nos últimos anos, melhorou não só ao nível de conteúdo, mas melhorou muito a nível técnico. Neste momento a nível profissional, e técnico, o nosso cinema está equiparado a qualquer outro cinema. Dai também virem tantas produções cá filmar, porque, tecnicamente, nós estamos muito bem equipados. As pessoas estão com um grande grau de formação, já não são amadores a fazer cinema. Acho que o cinema melhorou muito. Agora, se calhar, melhorou numa altura em que já era tarde demais, e as pessoas já estão de costas voltadas para o cinema português. Havia muitas queixas com a parte técnica durante muitas décadas, queixas com o som, a imagem, e, se calhar, isso afastou algumas pessoas do cinema português. Não sei dizer qual a razão, se é o desinteresse do espectador, ou o cinema português que é pouco interessante, porque, para já, não acho que o cinema português seja pouco interessante. A prova é que muito do nosso cinema tem boa carreira lá fora, ainda por cima numa língua já por si difícil, porque não é uma língua universal como o inglês. Fazendo boa carreira lá fora, não percebo o porquê de não fazer boa carreira cá dentro. Se estamos a competir com blockbusters, a competir agora com as plataformas de streaming, é claro que o cinema está a viver um momento complicado, mas sinto que há também [hesita] Não sei dizer. Como eu disse, acho que não podemos fazer filmes a pensar no sucesso de bilheteira, acho que devemos fazer filmes em que acreditemos, e conteúdos que sejam interessantes, honestos, e que respeitem o espectador. Quando estou a fazer filmes é para o espectador ver, e, minimamente, tenho de ter respeito por esse espectador, respeito pelas pessoas que vão ao cinema, e não as tratar como estúpidas. Isso para mim é a minha preocupação como cineasta, e acho que tenho de ter preocupação de elevar um pouco o critério, não cair no erro de copiar o que os outros fazem porque estou a pensar na bilheteira. A bilheteira aqui vai ser sempre irrisória.
Disse que o cinema mudou para melhor. Acha que hoje há uma maior abertura para projetos inovadores e diferentes?
Inovadores já eram os nossos projetos, não é? [Riso], eu acho que agora vai acontecer uma coisa que é vai acontecer um fenómeno em que vamos ter projetos um bocadinho menos inovadores.
Acha que o Criança lobo seria tão aceite há 20 anos atrás como foi agora?
Acredito que haja uma maior aceitação e recetividade para este tipo de filmes agora, acredito que sim. Nomeadamente este projeto que foi um filme em colaboração com a RTP, e houve recetividade da RTP para produzir esta série. Se calhar há 20 anos não havia essa recetividade, não faço a mínima ideia. Não sei responder a essa pergunta, mas acredito que sim, que haja mais recetividade a este tipo de filmes.