“Amadeo”, de Vicente Alves do Ó: um D. Quixote modernista que persegue o cândido desígnio de pintar
Este artigo pode conter spoilers.
O novo filme de Vicente Alves do Ó (ler entrevista), “Amadeo”, é um biopic dramático que explora os verdes anos do pintor modernista, futurista, cubista e expressionista, Amadeo de Souza-Cardoso (sabe mais sobre o pintor). O enredo é um tríptico que divide a vida do pintor entre França e Portugal nos anos 1916, 1911 e 1918.
O ano é 1916 e Amadeo (Rafael Morais) expõe a efervescência das suas pinceladas futuristas a um Portugal entorpecido e conservador. Durante o arranque do filme, tudo relembra uma tela em branco, à exceção da relação entre o pintor e Lucie (Ana Lopes), já em flor e com tudo o que é necessário para perdurar.
No segundo ato, recuamos a 1911 para chegar ao brilho da Cidade das Luzes e, aí, a tela em branco enche-se de novas cores e profundidade. Vê-se Picasso (Duarte Grilo), Modigliani (João Cachola), Marie Laurencin (Mariana Pacheco) e outros tantos iluminados. A energia é contagiante e o ritmo fervoroso à medida que acompanhamos conversas sobre arte, noites de cantoria e momentos de farra.
Finalmente, em 1918, a família Souza-Cardoso é assolada pela “gripe espanhola”. Os sinos da igreja dobram e ecoam pelas paredes prostradas de uma casa combalida. A doença e o medo da morte e do desconhecido perduram, temáticas de uma tenra nostalgia no inconsciente coletivo da atualidade.
O elenco conta com desempenhos notáveis, com especial destaque para as performances subtis do protagonista, Rafael Morais, e Ana Lopes. A dinâmica romântica entre Amadeo e Lucie assume uma dimensão considerável e a temática das relações com a família é bem aproveitada, ainda que algumas personagens se fiquem pelo esboço, como o tão mencionado, mas pouco explorado, tio Chico e os restantes membros da família Souza-Cardoso.
Numa nota técnico-formal, há que destacar o trabalho de direção de fotografia, por Rui Poças, que se esforça por capturar, com singela destreza, a vida de um modernista à luz do barroco e enquadrar as virtudes do quotidiano de um homem das artes através de um rigor estático e cirúrgico. O trabalho de figurinos, por Joana Cardoso, é também notável e minucioso nos arranjos e pormenores. Já a direção de arte, assumida por Artur Pinheiro, que exterioriza e apura a identidade do protagonista, preenche o vazio com técnica e gosto.
Reconheço que seja fundamental uma sensibilidade acentuada para ver “Amadeo”, considerando tudo o que filme oferece e que também esconde. O protagonista permanece, durante todo o enredo, a uma distância de segurança e apenas podemos adivinhar as suas convicções, sentimentos ou aspirações, o que, por um lado, faz sentido. Esta é uma película que nos guia pela vida do pintor ao compasso da sua expressão artística e não das suas vivências. Um biopic feito à moda de Hollywood, mas com a subtileza e melancolia nostálgica que configuram esta maneira portuguesa de ser.
Amadeo, sem esquecer as origens, lutou por instalar uma crítica absoluta da tradição ao experimentar, desconstruir e fragmentar. O pintor procurou a rotura da academia e opôs-se às normas e ao convencional, um D. Quixote que perseguia o cândido desígnio de pintar tudo o que o rodeava através da técnica do sentir.
Esperemos que, nos próximos anos, as películas de Vicente Alves do Ó continuem, à semelhança de Amadeo, a “pintar o futuro” pela lente do presente e a limpar o pó de uma indústria adormecida, mas com mais e melhor para oferecer. É decididamente um cinema com espaço para crescer e absolutamente necessário ao quadro audiovisual português. Venham mais.
“Amadeo” é uma produção Ukbar Filmes com o apoio do ICA, RTP, Pic Portugal e Fundação Calouste Gulbenkian e terá a sua estreia nos cinemas dia 26 de janeiro (quinta-feira). O elenco conta, ainda, com a participação de Lúcia Moniz, Ana Vilela da Costa, Manuela Couto, Ricardo Barbosa, Raquel Rocha Vieira, José Pimentão, Rogério Samora e Eunice Muñoz.