Viagem ao Call Center da Terra
— Diga por favor o número que se encontra na posição três do seu código.
— Três.
— O número que se encontra na posição três.
— Três.
— O número que se encontra na posição três é três, correto?
— Sim.
— Muito bem, agora refira por favor o número que se encontra na posição sete.
— Sete.
— Ok. E, por último, na posição nove.
— Hum?
— O número que se encontra na posição número nove.
— Um!
— Ah, o número um. Muito bem, o código de acesso à sua conta na nossa página está desbloqueado. Nos próximos minutos receberá um e-mail a confirmar o desbloqueio e depois terá de criar um novo acesso. Mais alguma coisa em que possa ajudá-lo, senhor…. Estou?
A chamada deve ter caído. O que importa é que pude ajudar mais um cliente. Não escondo que adoro o que faço, falar ao telefone é das coisas que mais prazer me dá. Poder ajudar alguém fazendo isto é simplesmente adorável. As pessoas pensam que não, mas é divertido à brava. Aqui no inbound há menos “episódios”, são as pessoas que nos ligam porque precisam de ajuda. Há um ou outro mais malandreco, que por vezes chama nomes à minha mãe, mas eu não tenho culpa que o sinal de internet de Moimenta dos Bois se perca no meio daquelas montanhas de matos, ou lá o que deve ser aquilo, e o homem não conseguir ver o streaming da missa!
Não escondo que também há alturas críticas. Olhem, por exemplo, certa vez ligou para cá uma senhora que tinha uma proposta da concorrência com mais coisas por menos trinta euros por mês. Lembro-me que foi no fim do ano, era uma cliente top. Não podia de maneira nenhuma perde-la. Haviam de ver-me a correr pelo call center, tudo a olhar para mim, desesperado por falar com o meu chefe de equipa. Expliquei a situação, ele percebeu logo que tínhamos em mãos a potencial perda de um cliente top. Só que, para igualarmos aquelas condições, quase tinha de ser o Papa a autorizar, passe o exagero. Ele ligou logo para a coordenadora regional. A coordenadora regional ligou para o coordenador nacional. O coordenador nacional ligou para o CEO. Aquilo foi mesmo lá acima. A cliente à espera e eu ali, em ânsias, a ouvir as chamadas. O Boss disse para o coordenador nacional: “a diferença de preço sugerida não é acomodada na tradicional ébitidiâi márgine de cinquenta por cento convencionada e orçamentada pelo bórde, como deverá compreender; desestimamos a alteração proposta, com indicação à rede que tudo deverá fazer para manter o cliente”. O coordenador nacional disse para a coordenadora regional: “esse gajo não pode perder o cliente”. A coordenadora regional disse para o meu chefe de equipa: “esse cabrão que não perca o negócio!” O meu chefe disse-me: “Leonel, se perdes esse cliente estás lixado” (ele não disse “lixado”).
“Como?”, pensei. Pensei e disse, que eu também às vezes não papo grupos. “Mas sôdotor, é uma diferença de trinta euros mensais! E tem melhores serviços! Perdoe a pergunta e com todo o respeito: como é que eu seguro este cliente?” (esta é que ele não esperava).
“Leandro” — disse ele — “tens que ser disruptivo, não podes baixar os braços perante as adversidades! Tens que ser capaz!”
“Vou tentar”, disse eu, que também não sou pessoa de desistir e aprecio um bom desafio.
“Vais tentar, não…” — disse ele — “vais fazer!”.
“Sôdotor, permita-me interromper, se me permitir” — disse o Sousa, que estava no gabinete do chefe, como habitualmente — “essa sua afirmação fez-me lembrar uma vez que em que eu estava também com o administrador da minha antiga entidade patronal (como sabe, eu fui técnico de fabrico artesanal de alvenaria) num comité de atribuição de objetivos anuais, e estava lá um colega que, perante um desafio colocado pela empresa, também disse vou tentar. E o administrador, tal como o sôdotor fez agora, disse: vais tentar o caraças (ele não disse “caraças”), vais fazer. E é essa diferença, eliminar a palavra tentar, tal como o sôdotor fez agora, é isso que permite aquele click” —Sousa parecia emocionar-se, com o sorriso exagerado e o olhar lânguido centrado no chefe — “E eu, agora, enquanto ouvia o sôdotor, lembrei-me desta história, e não queria deixar de o parabenizar…”
Arranquei de volta ao telefone a toda a velocidade: o esgar fechado atravessando o open space. A cliente esperou e eu fui à luta, não podia perder aquela assinatura. Disse-lhe: “oiça, minha senhora, se mantiver este serviço eu ofereço-lhe um período de fidelização de mais vinte e quatro meses, no qual lhe garantimos o actual preço durante todos os dias desse período, são mais de setecentos dias em que terá a certeza de que não pagará nem mais um cêntimo, salvo obviamente alterações mandatórias relacionadas com inflação, legislação ou acontecimentos extraordinários que possam, numa eventualidade, prejudicar de alguma forma a margem da firma e/ou o rendimento dos seus acionistas.
Digamos que não foi o meu melhor ano, ao nível dos resultados.
Depois disso fui transferido para o outbound — aí já somos nós que contactamos as pessoas. Eu não me chateei nada, aqui entre nós. Ah ah, é com cada cena. As pessoas não têm noção, mas, por exemplo, uma grande parte das chamadas anónimas que recebem, e em que ninguém diz nada, é a gente que as faz. Ficam logo todas paranoicas e não sei o quê, “quem será que me ligou a esta hora”, “de certeza que foi aquele tipo mal-encarado do talho, porque é que fui comprar aquelas salsichas”, ou assim. Mas não. Somos nós, ah ah. Mas isso não acontece por mal. São falhas do sistema. Sabem, o nosso software tem uma espécie de “script de vendas”, ou seja, um “roteiro” que nos diz o que devemos dizer às pessoas, os dados dos clientes, etc. Para que a gente não faça juízos de valor sobre a pessoa que atende o telefone, se é homem ou mulher, se é novo ou velho, etc., etc.; a informação só “entra” quando a pessoa atende. Quando o sistema falha e a chamada é atendida, ficamos sem saber o que dizer. O que fazer? Ao princípio eu entrava em pânico! Mas é simples: não dizer nada, ah ah. Não vamos estar ali a dizer “olhe, estou a ligar da empresa X, mas esta porcaria não está a funcionar”, não é? Dá mau aspeto. Só temos de permanecer bem caladinhos e esperar que a pessoa desligue. A maior parte de nós separa logo o conector, que é a peça que liga os auriculares ao computador. Assim, nem ouve, nem é ouvida.
Uma vez, numa situação dessas, aconteceu-me uma muito boa. Falhou o sistema, mas eu não desliguei o conector. Mantive-me em silêncio, enquanto ouvia uma voz doce, pueril, quase angelical.
— Estou? Quem fala?
Ao meu silêncio, a voz, que parecia de uma menina da zona norte do país, reagia impaciente.
— Estou, sim? Quem fala? Daqui é a Jéssica…
Jéssica, nunca mais me esqueço do nome, parecia mesmo um anjinho, com o seu sotaquezinho lá de cima.
— Estou! Mas quem fala? Eu sou a Jéssica…
E eu nada. Vai daí, a menina fartou-se.
— Vai-ta f/%/%, ó filho da p&(/&(/&!!
Tive de puxar o conector, que me ia desmanchando. Há de facto histórias do arco da velha…
Passados dois ou três anos, fui de novo promovido para o inbound onde tenho estado até hoje. Olhem, esperem um pouco, tenho aqui uma chamada a entrar. Importam-se de aguardar um minuto?