A sublime e inquieta lírica de Florbela Espanca
A 8 de Dezembro de 1894 nascia, no distrito de Évora, Florbela Espanca, um dos nomes mais célebres da Poesia em Portugal. Trinta e seis anos mais tarde, precisamente a 8 de Dezembro de 1930, a poetisa cometia suicídio. Embora a sua vida tenha sido tão breve, Florbela soube, como ninguém, transformar as suas inquietações e os seus sofrimentos numa Poesia sublime e singular, que nos leva ao lugar mais profundo do nosso ser, onde os versos da poetisa nos fazem encarar no espelho a dor, o receio, a ânsia, o sofrimento, e nos deixam assim, despidos, mas plenos.
Nascia em Vila Viçosa, no Alentejo, Flor Bela Lobo, que, mais tarde, viria a adotar o nome do seu pai, João Maria Espanca e autonomear-se-ia Florbela Espanca. Florbela e o seu irmão, Apeles, eram fruto de uma relação extraconjugal de João Maria Espanca com Antónia da Conceição Lobo. João Maria Espanca nunca reconheceu Florbela como sua filha, sendo que apenas fez o reconhecimento de paternidade em cartório cerca de dezoito anos após a morte de Florbela. Florbela frequenta o ensino primário em Vila Viçosa, onde começa a escrever textos, contos e composições poéticas, sendo que, por esta mesma altura, começa a assinar como Florbela D’Alma Conceição Espanca. No ano de 1908, a sua mãe Antónia Conceição Lobo falece com apenas 29 anos.
«“Bendita seja a Mãe que te gerou.”
Bendito o leite que te fez crescer
Bendito o berço aonde te embalou
A tua ama, pra te adormecer!
Bendita essa canção que acalentou
Da tua vida o doce alvorecer …
Bendita seja a Lua, que inundou
De luz, a Terra, só para te ver …
Benditos sejam todos que te amarem,
As que em volta de ti ajoelharem
Numa grande paixão fervente e louca!
E se mais que eu, um dia, te quiser
Alguém, bendita seja essa Mulher,
Bendito seja o beijo dessa boca!!»
De Joelhos
Livro de Mágoas, 1919
Florbela ingressou, mais tarde, no Liceu Masculino André de Gouveia, na cidade de Évora, sendo uma das primeiras mulheres em Portugal a frequentar o ensino secundário. Foi durante os seus anos de Liceu que Florbela conheceu obras de autores, como Camilo Castelo Branco, Guerra Junqueiro e Almeida Garrett, que requisitava na Biblioteca Pública de Évora.
Em 1913, Florbela casar-se-ia em Évora com Alberto de Jesus Silva Moutinho. No ano de 1918, na sequência de um aborto involuntário, que lhe provocara outras complicações a nível de saúde, Florbela mostra, pela primeira vez, alguns sinais de depressão. Em 1921, Florbela casaria com António Guimarães e o casal viria a mudar-se para a cidade do Porto. Contudo, o casamento terminaria quatro anos mais tarde, deixando Florbela mergulhada ainda mais profundamente na sua depressão. Florbela viria a casar pela terceira vez, na cidade de Matosinhos, com Mário Pereira Lage. A poetisa mudar-se-ia para essa cidade, definitivamente, no ano de 1926.
«A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onde está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!
Onde está ela, Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?
Sonho… que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,
Num país de ilusão que nunca vi…
E que eu moro – tão bom! – dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim… »
A Nossa Casa
Charneca em Flor, 1931
Em 1927, o irmão de Florbela, Apeles viria a falecer num trágico acidente de avião. A morte do irmão deixou a poetisa ainda mais abalada. Um ano mais tarde, Florbela tentaria o suicídio pela primeira vez.
«Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada … a dolorida …
Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida! …
Sou aquela que passa e ninguém vê …
Sou a que chamam triste sem o ser …
Sou a que chora sem saber porquê …
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!»
Eu
Livro de Mágoas, 1919
Florbela Espanca acabaria por se suicidar em Matosinhos, no dia do seu 36º aniversário, a 8 de Dezembro de 1930, após lhe ser diagnosticada um edema pulmonar. Para trás, ficaram duas antologias de poemas, “Livro de Mágoas” (1919) e “Livros de Sóror Saudade” (1923), mas também os registos que se imortalizariam em obras póstumas, como “Charneca em Flor” (1931, uma outra antologia, assim como “Trocando Olhares”, de 1994), e “O Dominó Preto” (1982, uma coleção de contos). Porém, seria a sua poesia que se tornaria a referência da sua obra presente e póstuma, em especial os seus sonetos, que vinha partilhando em revistas nacionais notáveis, como a Seara Nova. Também alguma correspondência guardaria os segredos da sua intimidade, nomeadamente de cariz familiar, privilegiando um mundo profundamente introspetivo, voltado para a sua própria emancipação emocional e fraternal.
No espólio de Fernando Pessoa, viria a ser encontrado um poema em memória de Florbela Espanca:
«Dorme, dorme, alma sonhadora,
Irmã gêmea da minha!
Tua alma, assim como a minha,
Rasgando as nuvens pairava
Por cima dos outros,
À procura de mundos novos,
Mais belos, mais perfeitos, mais felizes.
Criatura estranha, espírito irriquieto,
Cheio de ansiedade,
Assim como eu criavas mundos novos,
Lindos como os teus sonhos,
E vivias neles, vivias sonhando como eu.
Dorme, dorme, alma sonhadora,
Irmã gêmea da minha!
Já que em vida não tinhas descanso,
Se existe a paz na sepultura:
A paz seja contigo!»
Enfim, Florbela Espanca deu muito de si ao material e ao suporte de escrita: para além de pensamentos e de perspetivas, deu sentimento, deu alma e deu um mundo a um mero conjunto de palavras que, encadeadas, descrevem um íntimo delicado mas fascinante. Deu de si aos contos, à poesia, ao romance e até às epístolas. No entanto, como mencionado, Florbela floresceu na poesia. Atingiu o auge da sua natureza ao compor versos, muitas vezes através do belíssimo e clássico soneto. O amor foi o que mais lhe apoquentou. Ao amor deu primos e irmãos. Solidão, melancolia, sedução, tentação, desejo, morte, saudade. Mas amor, sobretudo muito amor.
Por si, pelos seus e pelos recantos que habitaram no seu coração. Atribuiu especial destaque ao seu Alentejo. Na prosa, narrava com intimismo e uma familiaridade tal que parecia relatar os seus dias. Foi das pioneiras do lirismo feminista, com uma identidade própria e indelével do figurino da cultura portuguesa. Nunca descurando a primeira pessoa do singular, sente-se a essência de Florbela nos seus vocábulos e nas suas frases. Sente-se a devoção com a qual fala sobre o amor, a alma, a saudade, o beijo. Sente-se porque todos nós o sentimos, de maior ou menor forma. Uma flor bela que aprendemos a cultivar no jardim do nosso íntimo e da nossa estima. Florbela compreende-nos, Florbela conhece-nos, Florbela sabe o que amamos e o que nos apoquenta. Se não creem em Deus, em Buda ou em nenhuma entidade metafísica, pelo menos acreditem em Florbela Espanca.