Entrevista. Ondjaki: “Falta uma reflexão mais profunda e aberta sobre o período colonial”

por Catarina Brites Soares,    24 Fevereiro, 2023
Entrevista. Ondjaki: “Falta uma reflexão mais profunda e aberta sobre o período colonial”
Ondjaki / Fotografia de Ajg
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Poucos são conhecidos só pelo nome próprio. Ondjaki, só assim, é. Tornaram-no célebre os livros e os prémios. O Vergílio Ferreira 2023, da Universidade de Évora e que recebe a 1 de março, foi o último e mais um que enaltece as histórias que escreve há mais de 20 anos. Não procura repor verdades. É a ficção que o apaixona. Mas, assume que é impossível escapar à História. A sua confunde-se com a de Angola, a quem encontra falhas que já não deviam de existir. A falta de liberdade é uma delas. “Está na hora de vermos alguns problemas solucionados”, afirma.

Que importância tem mais este prémio?

Os prémios trazem reconhecimento e responsabilidade. Ao mesmo tempo que te dizem: ‘Estás a escrever bem’, também te sussurram: ‘Deves escrever melhor’. 

O júri destacou que contribui para que o português seja uma língua de reconciliação. Trabalha nesse sentido? E que conflitos são esses?

Essa pergunta deveria ser dirigida ao júri. Entendo que a língua portuguesa é uma das ferramentas de entendimento de um conjunto de países que optou por tê-la como oficial. Claro que a situação em países como o Brasil e Portugal não é a mesma de outros como Angola e Moçambique, onde o português não é totalitário e dominante ao nível nacional. Mas, creio que podemos usá-lo para proteger, defender e valorizar as outras línguas originárias. A língua portuguesa já não precisa de defesa, só de manutenção, imaginação e reinvenção. Quem precisa de defesa são as línguas originárias do Brasil, Angola e Moçambique porque na Guiné e em Cabo Verde existe o crioulo, que se fala. Tem de haver um interesse maior dos nossos governos. 

Fala de “língua desportuguesa” e da necessidade de desconstruí-la. A que se refere?

A Literatura contemporânea, sobretudo a de Angola e Moçambique, compreende manobras que, creio eu, estão a formular novas tendências dentro da língua portuguesa e que vão afirmar-se nos próximos 300 a 500 anos.

“Angola não é um país rico. Tem recursos naturais sim, que estão a ser geridos de uma forma deficitária pelos governos, e com isto quero dizer que não se traduz no bem-estar da maioria.”

Ondjaki, poeta e escritor angolano.

Como incorporar expressões dessas línguas originárias de que fala? 

As independências em Angola e Moçambique são recentes, de 1975. Com o tempo, os países vão ganhando consistência na sua identidade, a língua vai-se libertando das amarras iniciais e vai-se autonomizando. Mas eu não sou linguista, tudo o que eu digo são erros poéticos e especulações sensoriais. Quando falo de língua desportuguesa, quero dizer que os artistas usam outras línguas e outras linguagens que muitas vezes desrespeitam os dicionários e as gramáticas.  

Há mais de 20 anos que escreve e muito mudou. Desde logo, as vozes de países colonizados, como Angola, começaram a ter mais espaço e a ser mais. Nasceu em 77. A Guerra Civil terminou em 2002. De que maneira o contexto determina o que escreve?

Parte da minha escrita é auto-biográfica. Ficção e quotidianidade misturam-se. É natural que os fazedores de ficção em Angola e Moçambique naveguem entre uma e outra. Claro que a minha obra é muito influenciada pelos contextos político e cultural de Angola, diria até do continente africano. Vejo duas hipóteses: nós escritores optamos por aproximar a ficção da realidade; e a outra que não desconsidero é a de que a nossa realidade é tão cheia de ficção que seria injusto não abordá-la. A grande dificuldade em Angola é entender — para quem quer entender — essa linha ténue que separa realidade e ficção. 

Ondjaki / Fotografia de Malba

Tem a preocupação de repor e recuperar histórias que preencham silêncios do passado colonial e do pós-independência?

Não. A minha única preocupação é contar histórias com alguma coesão literária. É verdade que essas estórias — com E — passam pela História — com H — do meu país. Não pretendo propor verdades, mas sim alternativas de interpretação da realidade por via da ficção. Não me cabe repor a verdade, mas penso que a Literatura proporciona um contexto de análise susceptível de que países e realidades possam ser repensadas.

“Creio que o povo português merece melhor, merece um ensino onde as coisas se esclareçam.”

Ondjaki, poeta e escritor angolano.

Portugal tem feito o que lhe compete para que a verdade histórica — ou as várias — seja reposta? 

Na comunidade de língua portuguesa falta uma reflexão mais profunda e aberta sobre o período colonial. Nós, que fomos colonizados, deveríamos pensar sob uma perspectiva de ex-colonizados. Portugal, como quem colonizou.

E porque ainda não foi feita? O passado colonial continua a ser tabu?

Em Angola, não sinto que seja. Estudei em Portugal, conheço bem o sistema de ensino e sinto que não há uma reflexão sobre o colonialismo. Colonização não deve ser confundida com expansão, por exemplo. Parece-me que às vezes, do ponto de vista europeu, e não falo apenas dos portugueses, a colonização é escamoteada, é vista como um processo de expansão e de desenvolvimento. É preciso falar das consequências humanas dessa colonização sem comparar e afirmar que a espanhola ou inglesa foram piores. Não existe colonização pior ou melhor. Creio que estamos numa fase de reconciliação, mas também de aceitar o papel histórico que cada um teve. 

Não se aceita?

O caminho não é desculpabilizar. Interessa problematizar e educar as novas gerações a pensar de forma analítica os processos históricos. Creio que o povo português merece melhor, merece um ensino onde as coisas se esclareçam.

Angola é dos países mais pobres do mundo, mas também dos mais ricos. Artistas como o Ondjaki têm cumprido o papel de reflectir e pensar a disparidade?

Muitos artistas, não só angolanos, têm pensado a questão da desigualdade, Basta ler Odete Semedo, da Guiné; Mia Couto, de Moçambique; e Manuel Rui, de Angola. É uma preocupação constante. Mas confesso que tenho cada vez mais dificuldade em entender o que é um país rico, já que supostamente devia ser um Estado onde as desigualdades sociais estivessem num nível muito baixo ou prestes a desaparecer. E isso é raro. Angola não é um país rico. Tem recursos naturais sim, que estão a ser geridos de uma forma deficitária pelos governos, e com isto quero dizer que não se traduz no bem-estar da maioria.

“Uma livraria e uma editora hoje são actos de resistência. Acho que até sou mais político na editora e na livraria do que como escritor.”

Ondjaki, poeta e escritor angolano.

Mas, a Angola de João Lourenço não está melhor?

Não é possível pôr as coisas nesses termos. Houve avanços e retrocessos. Anunciaram-se muitas mudanças no primeiro ano e creio que agora as pessoas estão no mínimo preocupadas, eu inclusive, com temas como a comunicação social, execução dos programas do Governo, do controlo interno de corrupção. Continuamos preocupados com demasiadas questões, algumas são difíceis e duradoiras, outras já deviam ter sido resolvidas. É uma questão de bom senso ou até de boas intenções. Angola está em paz desde 2002. Está na hora de vermos alguns problemas solucionados. Creio que o MPLA sentiu a insatisfação nas últimas eleições. 

Que questões deviam estar resolvidas?

A interferência na comunicação social; os processos pouco claros na aplicação do Orçamento de Estado; os atrasos e falta de explicações em relação ao processo de eleições autárquicas; e a atitude cega e surda, por vezes, do Governo em agir em desconformidade com a opinião pública.

No que respeita a liberdade artística, hoje está assegurada? 

Como diria Joaquim Pinto de Andrade, a pergunta é capciosa. Não creio que possa responder se a liberdade artística está assegurada como se antes não estivesse. Voltamos a uma linguagem binária que não posso aplicar à nossa realidade. Gostaria mais de falar da liberdade de expressão, sobretudo no campo jornalístico. Em Angola, não creio que tenha havido grandes perseguições à ficção. Colocavam-se muito mais barreiras à investigação jornalística. Dito isto, melhorou? Sim. Se estamos onde devíamos estar? Não. Continua a haver queixas de jornalistas sobre a parcialidade das notícias, do tempo de antena dado ao Governo, substancialmente superior ao da oposição. Nesse sentido, continuamos com as mesmas questões. 

Vivemos o que se convencionou chamar de cultura woke — com toda a controvérsia que o termo implica. Resiste ao politicamente correcto?

Penso nas frases que escrevo e sobretudo no que vou publicar, mas tento que isso não me impeça de dizer o que quero. Actuo muito no campo de ficção, onde é difícil encontrar algo que não possa dizer. Nunca senti essa limitação nem em Angola, nem em espaço nenhum. Mas, repito, em Angola é muito mais fácil fazer ficção do que não ficção. É na notícia, no artigo jornalístico, que está o perigo.

Falava num contexto global.

Há questões que se levantaram e que são importantes debater: género, racismo, o chamado lugar de fala. Estamos todos a reaprender a reformular conceitos. É preciso estarmos mais alertas. Não apenas por ser correcto, mas porque enquanto humanos temos essa obrigação.  

Regressou a Luanda em 2017 e, em 2020, abriu a editora Kacimbo e a livraria Kiela. Referiu-se a estas iniciativas como provas de resistência.

Uma livraria e uma editora hoje são actos de resistência. Acho que até sou mais político na editora e na livraria do que como escritor. Cumprimos o objectivo com a livraria. Somos uma das melhores. A editora está a começar. Temos poucos títulos, mas enquanto puder vamos seguir um caminho que é o de nunca deixar de fazer poesia, e isso em si é um acto de resistência.

E o que está para sair?

Vamos publicar Francisco Guita Jr. O plano é continuar a publicar autores de língua portuguesa, africanos ou não. Outro projecto é o de publicar os vizinhos: escritores dos dois Congos, Zâmbia e Namíbia. Temos muito pouca relação com a nossa vizinhança, talvez pela questão da língua. Angola mantém relações muito fortes com os países de língua portuguesa e muito fracas com a vizinhança geográfica, e creio que isso pode ser corrigido.

E enquanto escritor, o que está previsto?

Acaba de ser publicado em Angola um livro meu e do Manuel Rui, de poesia. Para este ano, e por enquanto, tenho mais um infantil e uma peça de teatro.

Ondjaki quer dizer guerreiro em umbundu. Porquê este nome? Guerreiro de quem e contra quem?

Contra ninguém. Este foi o nome que a minha mãe tinha escolhido, mas quando nasci atribuíram-me um nome civil. Quando comecei a escrever, e como em Angola é hábito usar pseudónimos, lembrei-me deste, o que me dá muito jeito porque gosto de ser mais do que um. 

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