“O Jovem”, ou como ler a vida de Annie Ernaux

por Mário Rufino,    16 Março, 2023
“O Jovem”, ou como ler a vida de Annie Ernaux

Acaba-se a leitura com uma pergunta: se não estivesse tão ligada à auto-ficção, teria tanto impacto? E uma outra: Se em “O Jovem” (Livros do Brasil) fosse um homem a ter uma amante muito mais nova, a relação seria pertinente?

 “O meu corpo deixara de ter idade. Era necessário o olhar fortemente reprovador dos clientes ao nosso lado num restaurante, para ela me ser devolvida. Olhar que, em vez de me envergonhar, reforçava a minha determinação de não esconder a relação com um homem «que podia ser meu filho», quando qualquer tipo de cinquenta anos se podia exibir com uma que visivelmente não era sua filha, sem suscitar qualquer reprovação.” 

Seja como for, há na prosa de Annie Ernaux (Lillebonne, 1940) elegância e limpidez que ligam o leitor ao texto. O tema, tão feminino, poderia afastar o público masculino, mas não é isso que acontece. Apesar de haver distâncias impossíveis de eliminar, a fruição literária não depende do género. 
Refiro-me, principalmente, a “O Acontecimento” (Livros do Brasil), história sobre um aborto; permite a aproximação masculina e a possível empatia, mas sem possibilidade de identificação total com a personagem. No entanto, a qualidade literária cria pontes entre o leitor exigente e a autora (vencedora do Prémio Nobel da Literatura em 2022). 

Annie Ernaux / Fotografia de Lucas Destrem – Wikimedia Commons

O lugar de fala não diverge de quem experiencia, o que nos leva a romper com o cinismo que nos afasta do narrador. 
Ernaux está em “O Acontecimento”, está em “Uma Paixão Simples” (Livros do Brasil), está em “O Jovem”. A obra é a mulher que a viveu e escreveu. 
Em “O Jovem”, há referências a amantes passados, como o de “Uma Paixão Simples”, e ao aborto, como o de “O Acontecimento”.  
Se virmos “O Jovem” como mais um capítulo da vida da autora, percebemos haver no livro uma invulgar honestidade, o desnudamento perante a observação de terceiros.  

O jovem é o amante da narradora, bem mais novo do que ela, e que a motiva a recordar os seus tempos de estudante, quase tão privados de dinheiro como os dele. O prazer é importante, mas a relação é mais complexa do que isso. 
“O amor no colchão colocado no solo, o quarto gelado, p jantar ligeiro num canto da mesa e a balbúrdia juvenil a que facilmente me adaptara transmitiam-me um sentimento de repetição. Contrariamente ao tempo dos meus dezoito, vinte cinco anos, quando estava imersa no que me acontecia, sem passado nem futuro, em Rouen, tinha agora, com A., a sensação de estar a representar cenas e gestos que já tinham acontecido, a peça de teatro da minha juventude.” 
A narração incide mais na emoção provocada do que numa lógica de encadeamento da acção. O jovem não tem voz, ele é filtrado pela consciência da narradora. Existiu com importância suficiente para ser contado, mas como sinédoque. É um episódio que a remete para outros momentos da vida dela. 

Comece-se por onde se começar, é sobre a autora que estamos a ler. E é para se ler tudo o que se puder. 

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