Entrevista. Martim Sousa Tavares: “Há pessoas que vão ao Festival de Sintra há 40 anos”
Martim Sousa Tavares dirigiu orquestras em vários pontos do mundo. Em 2019, e depois de se ter especializado em enfrentar os ventos gélidos vindos do Lago Michigan, mudou-se de Chicago para Lisboa, a sua cidade-natal, para fundar a Orquestra Sem Fronteiras em Idanha-a-Nova. Foge a rótulos de “embaixador” ou de representante da sua geração, preferindo destacar-se pelo que faz na cultura e na música através de uma miríade de projectos que tem vindo a assumir e têm sido muitos — além da já mencionada Orquestra Sem Fronteiras, Martim Sousa Tavares faz podcasts, assina newsletters, é curador, músico, orador e, mais recentemente, Director do Festival de Sintra.
Fundado pela Marquesa de Cadaval, o Festival de Sintra é um festival de música clássica, e continuará a sê-lo. “Há pessoas que vão ao Festival de Sintra há 40 anos”, diz-nos Martim, “é quase um ritual quase definidor da sua identidade enquanto sintrenses e é importante que essa tradição seja mantida, mas que existam coisas para todos”. E para todos falamos dos que têm memórias de décadas do Festival e dos mais curiosos, dos que querem ouvir, pela primeira vez, um concerto de música clássica, assistir a um duelo de pianistas ou de fazer uma caminhada-concerto ao nascer do sol. Teremos “recitais para piano a solo convencionais, um quarteto de cordas que vem da Hungria para interpretar Ligetti”, mas teremos também Filho da Mãe, Carlos Paredes em violino, Joana Gama e os tangos de Carlos Gardel.
A edição deste ano do festival tem uma programação mais aberta. Temos Rachmaninoff da ala mais erudita, e depois temos Filho da Mãe. E temos também uma dificuldade grande em saber o que é música clássica.
A mim interessa-me não ajudar a definir. Ou seja, a mim interessa-me precisamente a dúvida, este limbo. Porque acho que a vida também é assim, ou seja, as coisas não são todas, nem estão todas esquematizadas. O Filho da Mãe é um excelente guitarrista, vai tocar o solo, portanto é um instrumentista, e no dia que toca, por acaso um dia dedicado à guitarra, teremos Carlos Paredes em versão violino, um cantor que vem da Argentina e que faz o Cancioneiro de Carlos Gardel, que são duas guitarras e voz. Já me tinha acontecido, por acaso, quando fiz os concertos de música clássica no Lux com o Pedro Branco, guitarrista de You can’t win Charlie Brown, e ele estava a tocar sozinho uma coisa de improviso, exploratória, que me levou a pensar “se calhar fiz mal, isto não é assim tão música clássica, já está muito fora”, mas depois percebi que só eu é que estava a fazer estas perguntas, o resto das pessoas estavam só a assistir ao concerto. Só eu é que estava a pensar qual a etiqueta que podia pôr, quando tinha feito o ciclo para acabar com as etiquetas.
O concelho de Sintra é um melting pot de culturas, um território com uma zona mais agrícola da chamada zona saloia, tem praias onde escritores e artistas passavam os verões das suas infâncias, tem uma zona mais de elite, tem uma zona residencial, quase de dormitório. Em Idanha-a-Nova, criaste a Orquestra Sem Fronteiras, poderemos também, e no âmbito do Festival, criar uma orquestra em Sintra?
Sim, por acaso acho que a Orquestra Geração tem um pólo em Sintra. É uma orquestra do El sistema venezuelano que tira os miúdos das favelas e a ideia é trocar uma arma por um instrumento, por isso eles começam a estudar e são postos em escolas de música e muitos deles saem dali para as melhores escolas de música do mundo. E é um modelo que, enquanto revolução social através da cultura deu muito que falar e já está consagrada. Em Portugal, chama-se Orquestra Geração e tem pólos na Amadora, em Setúbal. Enfim, sempre que há zonas com potencial problemático ao nível social de jovens, abrem lá os pólos e é incrível. Já temos vários alunos nas nossas universidades e no estrangeiro oriundos da Orquestra Geração. Temos um contrabaixista, filho de pais cabo-verdianos, mãe mulher-a-dias, pai na construção civil, que nunca na vida tinha imaginado o que era música clássica, entrou neste programa, começou a tocar contrabaixo, adora, é bom, teve oportunidades, foi para a escola, foi estudar para a Suíça e atualmente toca numa orquestra. E isto aconteceu no espaço de 10 anos. Temos resultados muito rápidos nestes projectos.
O nosso sistema de ensino não favorece, por si, a aprendizagem de música, aprender um instrumento. Nos próximos anos, poderemos ter uma programação do Festival de Sintra junto das escolas do concelho?
Para este ano, e como assumi a direcção em Dezembro, já não havia tempo. Mas todas as escolas do concelho vão participar no festival e todas vão ser convidadas para os espectáculos que temos, sobretudo para dois espectáculos infantis. A ideia é trabalhar com uma amostra dessas escolas e trazer algumas pessoas que já estão identificadas e que já me apresentaram projetos para um trabalho contínuo que depois possa dar frutos já no ano seguinte. Pode ser muita coisa, pode ser em ateliers de escuta, pode ser uma coisa mais de expressão, eles próprios criarem qualquer coisa artística que se veja, o promovermos encontros entre os artistas e os miúdos, enfim, há muita coisa possível, mas isso já vai ser feito.
A Joana Gama vai fazer algo mais pensado para os mais pequenos também…
Sim, temos três espectáculos infantis. Um deles é “As árvores não têm pernas para andar”.
E ela irá também interpretar o Livro dos Sons, do Hans Otte, um autor contemporâneo. Por vezes associamos a música clássica a autores mais antigos, mas a verdade é que dentro das categorias de música clássica, vemos frequentemente nomes como Nils Frahm, Ludovico Einaudi ou Arvo Pärt.
Sim, são três compositores completamente diferentes, mas que eu percebo que estejam debaixo do mesmo chapéu. O Arvo Pärt vem mesmo da música clássica pura, é o autor mais tocado, vivo e de música clássica. E é um minimalista, o que agrada a muitas pessoas de fora, porque a música minimal permite uma escuta muito mais fácil e convida as pessoas, não se impõe, não tem as mesmas regras. O Nils Frahm já está mais “in between”, tem formação clássica, mas trabalha noutras áreas, trabalha com sintetizadores, produz também, não é só compositor. É um tipo interessantíssimo, criou o Piano Day que todos os pianistas e orquestras do mundo adoram celebrar no 88.º dia do ano — que é o número de teclas do piano. É muito acarinhado na comunidade da música clássica. Há outro que é o Francesco Tristano que está exactamente na mesma zona. E o Einaudi já é mais um pop mascarado, na verdade é mais um pop a tocar piano. Não está tão na música clássica, mas não me chocava vê-lo a fechar um dia do Festival de Sintra.
Estes nomes mais conhecidos do grande público podem ser um bom ponto de entrada para as pessoas que “complicam” a música clássica e, de certa forma, desmistificá-la.
Sim, acho que é interessante para contextualizar e seria interessante no contexto em que o puséssemos também porque pode ser tal como temos o Filho da Mãe num dia que é dedicado à guitarra. De certa forma, ele vem representar um outro lado daquele instrumento. O Einaudi podia vir num dia do piano, em que temos várias expressões de piano, por exemplo. Isso poderia ser podia ser interessante e super válido. Já pensei na Surma também, que faz um trabalho na minha opinião que às vezes não anda muito longe de alguns processos da música clássica contemporânea.
Esta edição do Festival de Sintra, que é a 57.ª, tem, provavelmente, os músicos mais jovens também.
É capaz, mas uma das coisas mais bonitas e especiais deste festival é que foi sempre um festival jovem. Nomes como a Martha Argerich, Jacqueline Du Pré e Daniel Barenboim, que são nomes gigantes, foram ao Festival de Sintra quando eram muito jovens e até ficavam em casa da Marquesa de Cadaval, que fazia residências artísticas. Na verdade, faz sentido o festival continuar a ir atrás daqueles que daqui a 20 ou 30 anos vão ser nomes incontornáveis, mas agora ainda não são e estão no caminho para o serem.
Tens memórias do Festival de Sintra?
Tenho. Um dos concertos mais importantes que ouvi foi lá em 2008, um pianista russo, Grigory Sokolov, que vem todos os anos a Portugal, passa pela Gulbenkian, Casa da Música… Para já lembro-me que foi o concerto onde fui que tinha mais pianistas na assistência. Fiquei sentado entre o Mário Laginha e o António Rosado. E foi assim uma coisa tipo meio epifania, meio fascínio, porque na altura estudava piano e tinha 16 ou 17 anos. Foi importante para decidir mesmo seguir uma carreira na música. Por outro lado, piano não era mesmo o meu instrumento, que eu nunca tive dúvidas, mas pronto gostava de tocar. De repente ver um homem daqueles a tocar aquele instrumento daquela forma… Eu percebi que isto é que é tocar piano e nunca vou conseguir isto, nem me interessa o caminho para lá chegar. Depois voltei a vê-lo várias vezes noutros sítios em Portugal e fora e nunca mais teve o mesmo efeito também não podia ter sempre aquele efeito, não é assim, é só a primeira vez é que podia ser assim.
Nos próximos 3 anos, ou três edições, serás o director do Festival. Nestes 3 anos, o objetivo é também aproximar o público do Festival?
Sem dúvida. E ter cada vez mais público a dizer que é a primeira vez que veio ao Festival nesta edição, no ano seguinte a mesma coisa. Aproximar a população e trazer pessoas de fora. Ou seja, o festival posicionar-se de uma forma que eu saiba que para ver certas coisas, eu tenho de ir ali.
O Festival de Sintra ocorre entre 15 e 25 de Junho em vários pontos da vila e do concelho de Sintra. Teremos caminhadas-concertos, duelos de pianistas, filmes acompanhados de concerto, nomes por conhecer e nomes consolidados na música.