Reportagem. Por onde andam as bandas de Barcelos? (parte II)

por Hugo Geada,    24 Junho, 2023
Reportagem. Por onde andam as bandas de Barcelos? (parte II)
DR

Depois de, na semana passada, termos contextualizado a origem da cena musical de Barcelos e analisado alguns dos problemas que atormentam, atualmente, as bandas desta (outrora) prolífica cidade a produzir novos projetos musicais, na segunda parte deste artigo iremos continuar a procurar por novos e jovens conjuntos musicais barcelenses.

Pegando na última temática a ser mencionada, recordamos o saudoso Milhões de Festa, de forma a perceber o impacto que deixou na cidade e a falta que faz (ou não) nesta região.

Milhões de Festa: Uma faca de dois gumes

Para quem foi ao Milhões de Festa, para além do instantâneo comentário sobre o quão espetacular é a piscina e os concertos que lá aconteceram, o grande sentimento que transparece é de saudade.

Desde que foi fundado, em 2006, este festival levou grandes nomes da música popular quando ainda eram apenas promessas, como os Alt-J, Toro y Moi ou Crystal Fighters, e muitos nomes de culto e que são figuras de proa dos seus nichos, desde os Electric Wizard, aos Goat, a Chelsea Wolfe ou a High on Fire, sem contar com um infindável arraial de nomes que, apesar de merecedores (como os Earthless), certamente, iriam ocupar demasiados carateres.

Este festival ajudou, e muito, a colocar Barcelos na boca do povo ao atrair atenção mediática durante os dias em que decorria e trouxe vários benefícios económicos, nomeadamente, a níveis turísticos, uma vez que a maior parte dos “consumidores” do Milhões eram pessoas de fora da cidade.

Fotografia de Milhões de Festa

Mas um dos valores mais importantes que trouxe para esta cidade e que é impossível de medir subjetivamente foi a inspiração que ofereceu aos músicos locais para pegarem em instrumentos e fazerem música.

Para perceber a origem deste festival temos de recuar até ao final dos anos 1990, época em que Joaquim Durães, também conhecido por Fua, fundador da editora Lovers & Lollypop e do Milhões de Festa, se apaixonou pela música feita em Barcelos.

Barcelos é uma cidade muito pequena, por isso, a relação entre público e artistas sempre foi muito próxima e foi dessa proximidade, de mesa de café, que surgiram tantas bandas”, conta-nos Fua. “De repente, os Astonishing Urbana Fall estavam a tocar no palco principal do Paredes de Coura e, no dia seguinte, estavam a tomar café na mesa de uma esplanada ao teu lado”, ilustra.

Esta proximidade foi contagiante para toda a comunidade e estendeu-se em diversas gerações”, explica, relatando que acompanhava imenso o trabalho dos Astonishing Urbana Fall, e dos Kafka, recordando que passava algum tempo com Nico, membro desta formação, nos estúdios da UPS, a ouvi-los a fazer música.

Fui sendo introduzido à cena de Barcelos de uma forma muito natural”, reconhece.

Contudo, este revela-nos que a origem da Lovers, em 2005 — e que este ano celebra o seu 18.º aniversário com uma festa no dia 23 de julho, no Parque Público da Foz dos Amiais, em Barcelinhos, com artistas como Black Bombaim, Sereias ou Conferência Inferno — não aconteceu neste contexto, nem nesta cidade.

Fua organizava concertos desde o secundário e criou uma fanzine, a Emulação da Mente, mas ter uma editora sempre foi uma ideia “palpitante”, descreve, que começou a ganhar forma através do seu projeto de curso Audiovisual.

Fiz um documentário sobre a cena underground de Barcelona, local onde fiz Erasmus, em 2004. Era uma cidade que ainda não estava tomada pelos grandes festivais, como o Primavera Sound e o Sónar, e existia uma cena underground muito forte e enérgica em que, de repente, me vi envolvido, como, também, a conviver com uma série de editoras e artistas — muitos deles ainda continuam — como os ZA! e El Guinho”, recorda.

Apesar de nunca ter publicado o documentário, que não chegou a sair do CD-ROM que entregou aos seus professores quando regressou a Portugal, esta experiência criou em Fua a vontade de emular as experiências que tinha vivido na cidade espanhola, nomeadamente na relação entre artistas, editoras e público, e foi nesse seguimento que a Lovers foi criada no Porto.

Rapidamente, juntámos uma série de bandas que achávamos interessantes e que não tinham espaço para tocar, como os Green Machine, os Veados Com Fome ou os Lobster. O Porto, em 2005, era um sítio muito diferente para se viver e não havia salas de concertos para marcar espetáculos com grande facilidade, a não ser que fossem bandas de pop-rock”, explicou.

Criámos uma rede entre bandas em que éramos todos muito próximos. Criámos uma relação de família que lançou as bases para a Lovers and Lollypops”, afirma.

Em 2006, no bar Uptown, no Porto, aconteceu o primeiro Milhões de Festa, com artistas como Riding Pânico, em que estiveram presentes, “no máximo”, 30 pessoas. No ano seguinte, passaram para Braga, onde, dividido por dois dias, marcaram presença cerca de 300 pessoas, com concertos como If Lucy Fell, Foice Humana ou Feia Medroño.

No entanto, com o passar do tempo e com o desenvolvimento da editora, eram cada vez mais abordados por uma nova geração de bandas de Barcelos, como os Black Bombaim, Aspen ou os Glockenwise, passando a existir uma relação mais próxima com a cidade e os seus artistas.

Black Bombaim / Fotografia de Tiago Frois

A Lovers acabou por editar os primeiros EP’s destas bandas e, no seguimento desta ideia, surgiu a vontade de criar um festival ao ar livre, surgindo assim uma oportunidade para revitalizar o Milhões de Festa.

Depois de falar com os vários intervenientes para a elaboração desta reportagem, é fácil perceber que este certame teve um grande impacto nas suas vidas e foi uma grande inspiração e motivação durante a sua carreira.

Considero que o Milhões faz falta devido à importância que teve para comigo e com pessoas como eu que foram formadas com o festival”, diz-nos Marco Duarte. “O Milhões formou públicos e pessoas. Era um festival especial onde nunca ninguém sabia o que ia tocar, mas que também ninguém queria saber, porque o mais importante era descobrir música nova. Essa cultura é uma coisa que faz muita falta”, confessa.

Mas quando questionado se o fim do Milhões pode ter tido um impacto nesta estagnação da proliferação de bandas de Barcelos, Fua afasta essa possibilidade e prefere apontar para outros fatores, como a falta de espaços para ensaiar, revelando que chegou a existir um projeto para criar uma sala de ensaios comunitária, mas que não chegou a avançar, ou locais mais informais para tocar ao vivo.

Não existir um evento como o Milhões é prejudicial, mas é pior não existirem salas de concertos informais como havia no passado, como o Xispes ou o CCOB. Se uma banda não consegue apresentar-se no seu bar local, dificilmente conseguirá tocar noutras cidades, primeiro é preciso tocar na própria cidade, próximo de quem nos acompanhava”, argumenta.

Esta é uma opinião corroborada por André Simão, que considera que o festival acabou na altura certa e abriu espaço para outro tipo de eventos nos arredores, como o Semibreve, em Braga, ou o Amplifest, no Porto.

Sempre achei que aquilo que faz falta numa cidade, e principalmente numa cidade pequena, muito mais do que eventos que ocorrem pontualmente uma vez por ano, são aquelas coisas que acontecem sistematicamente ao longo do tempo. Faz muito mais falta, a Barcelos, eventos como o Jazz ao Largo, ou o Triciclo do que fará propriamente o Milhões, especialmente para as pessoas que moram na cidade”, alega André Simão.

André Simão / Fotografia de Rui Torres

A questão do Milhões também é uma faca de dois gumes”, corrobora Marco Duarte. “Sem dúvida que o Milhões é das coisas mais importantes da cidade e, na minha opinião, gostaria que tivesse continuado, mas as pessoas refugiavam-se no Milhões, no sentido em que este festival só acontecia quatro dias por ano, e tudo o resto era um bocado esquecido. É muito importante existir uma programação regular”, argumenta o guitarrista que toca com David Bruno.

Fua recorda ainda que o festival teve um papel importante no crescimento das bandas jovens da cidade, nomeadamente os Glockenwise e os Black Bombaim.

Uma das ideias base da Lovers, e que acabou por também contaminar o Milhões, era colocar os artistas locais em contacto direto com artistas internacionais porque, dessa forma, as bandas evoluem de uma forma brutal quando estão em contacto com os seus ídolos ou bandas que tem outra rodagem”, exemplificando com momentos como quando os Black Bombaim estiveram a tocar com Isaiah Mitchell, dos Earthless, ou quando os Glockenwise abriram o concerto dos Metz, no Plano B.

Isto foi um momento muito importante na vida destas jovens bandas. De repente, estão em contacto com uma banda muito mais rodada e percebem processos, dinâmicas e formas de estar”, refere.

O fundador da Lovers não é de todo negativo ao ponto de considerar que não existem mais bandas a emergir nesta cidade, recorrendo a uma metáfora ligada à agricultura, uma vez que acredita que se está apenas a viver um período de pousio.

Existem picos criativos e momentos de maior pousio. Pode ser que estejamos, agora, a viver este período de nojo de bandas, mas, se calhar, estão a ser congeminadas uma série de bandas nas garagens”, expõe Fua, recordando que, apesar de muitos músicos de Barcelos terem abandonado a cidade, a maior parte continua ativo.

Os Glockenwise estão num dos melhores momentos da carreira, os Black Bombaim este ano vão voltar a dar concertos e o André Simão é um músico prolífico que continua a tocar numa série de bandas”, afirma. “As bandas e os artistas continuam a existir e a fazer coisas, mas esta nova geração deve estar a congeminar e a germinar algures. Se calhar, estamos a viver este período que, tal como um terreno agrícola, está em pousio”, expôs Fua.   

Apoios institucionais ou liberdade completa: um dilema

Ao longo das conversas que foram feitas para a realização desta reportagem, é fácil perceber porque é que parecem proliferar menos artistas desta terra minhota: há cada vez menos espaços para fazer e mostrar música.

Isto faz surgir uma questão: será que com mais apoios da câmara municipal, sejam estes financeiros ou através da cedência de espaços, isto ajudaria novamente a uma maior proliferação criativa?

Para Nuno Rodrigues, existe um problema “crónico” de identificação do município desta valência que a cidade tem e que que está, constantemente, a pôr a cidade no mapa. 

Há anos, o município encomendou um estudo onde era revelado que a olaria era a maior valia cultural da cidade e, logo a seguir, estava a música”, expõe.

Isto é conhecido ao nível institucional até aos mais altos cargos, mas existe uma recusa em proporcionar os meios para que as coisas possam chegar a outros níveis, o que não deixa de ser curioso. Não é só uma questão de estar de olhos fechados, é uma questão quase propositada de querer ignorar estas questões”, acusa o vocalista dos Glockenwise.

Glockenwise / Fotografia de Renato Cruz Santos

É interessante questionar a opinião ao Nuno porque, este ano, os Glockenwise lançaram o seu mais recente disco, Gótico Português, onde exploram a relação bipolar que têm com Barcelos. Segundo ele, diversos meios de comunicação nacionais e dos arredores mostraram-se interessados em divulgar o disco e organizaram entrevistas, mas, na sua terra natal, ninguém contactou o grupo.

O nosso disco fala muito sobre o carinho que temos pela cidade, mas, ao mesmo tempo, existe um espírito crítico sobre o que se passa lá. Não podia ser mais Gótico Português o facto de termos escrito um disco sobre Barcelos e eles estarem completamente a cagar-se para isso”, conta-nos entre risos.

Mas a realidade é que existe alguma amargura nesta questão, com o músico a recordar os primeiros tempos da banda e a falta de apoios que tiveram por parte do município.

Recordo-me de quando começámos a tocar e fomos convidados para fazer um concerto em Espanha, na Galiza. Ainda não tínhamos a carta, éramos menores, por isso, fomos ao município perguntar se nos podiam pagar a viagem ou arranjar uma carrinha, porque eles costumavam fazer a mesma coisa quando era preciso transportar as equipas desportivas”, relata. “Nunca nos responderam e estivemos até à última sem saber se íamos conseguir arranjar maneira de ir à Galiza”, afirma Nuno.

No fim, esta história teve um final feliz, um colega de Barcelos, Pedro Silva, que tocava nos Azia e que agora é jornalista no jornal O Minho, deu boleia aos Glockenwise no seu carro. “E lá fomos nós, com o material todo empilhado em cima de nós”, lembra.

Isso é que era a cena de Barcelos. A cena de Barcelos não tinha nada a ver com a existência de uma continuidade estética e um interesse discursivo partilhado. Era muito mais baseado numa questão de companheirismo e entreajuda”, argumenta.

De certa forma, para estes músicos, que cresceram no seio desta comunidade habituada à filosofia do Do It Yourself e do desenrasque, pedir auxílio a uma entidade burocrática até parecia algo que iria contra o que tinham vindo a fazer.

A certa altura tornou-se um motivo de orgulho não pedir ajudas municipais”, afirma Nuno.

Mas será injusto afirmar que a câmara tem feito tudo de errado para com esta geração criativa, basta recordar os elogios que o Triciclo ou o Jazz Ao Largo têm recebido, assim como a programação do Theatro Gil Vicente, que consegue trazer mais músicos de grande perfil do que era habitual, assim como outras iniciativas feitas pela cidade.

Quando éramos mais novos participámos num evento por onde TODOS os músicos de Barcelos foram, o Projeto Artístico, organizado pela câmara, onde íamos tocar duas músicas e recebíamos 200€. Como putos, aquilo era excelente, era muito dinheiro naquela idade”, recorda Tiago Martins.

Mas esta falta de apoios é algo que continua a existir e a condicionar a criação musical.

A existência de apoios financeiros para quando alguém está a começar são muito importantes. Numa altura em que existem muitas pessoas a passar por dificuldades e não têm dinheiro para alugar uma sala de ensaio, para comprar instrumentos ou até para ir a concertos, a questão financeira é algo que pode impedir a criação de mais projetos”, afirma Tojo Rodrigues.

Killimanjaro / Fotografia de Sara Sofia de Melo

O guitarrista e vocalista dos Killimanjaro, Zé Roberto Gomes, também tem duras críticas para o município, nomeadamente, na forma como eles escolhem investir o seu orçamento.

O Município não percebe, nunca percebeu, nem creio que em 100 anos vá perceber o que se passava em Barcelos em relação à música. Como tal, não sabem o que hão-de fazer para fomentar a criação e fruição musical e acabam sempre a bater com a cabeça numas paroladas. Veja-se o cartaz da Festa das Cruzes (a maior festa da cidade) deste ano: José Cid, Pedro Abrunhosa, Diogo Piçarra e Toni Carreira. 1/4 deste dinheiro dava para muita coisa. Contudo, espero que tenham planos melhores para o futuro”, desabafa.

A questão dos apoios da câmara é um dilema: pode ser tentador imaginar uma câmara municipal que oferece bolsas a artistas, espaços de ensaio e para tocar ao vivo, mas a que ponto é que não estariam a colocar em causa a liberdade artística e a viver sobre limites impostos por esta instituição.

O organizador do Souto Rock, apesar de considerar que mais apoios são sempre bem-vindos, acredita que isto pode limitar o potencial dos eventos.

A questão da institucionalização pode criar fronteiras e limites, com pessoas que tentam dizer o que temos de fazer e isso não é o que o Souto Rock quer”, esclarece Leonel Miranda. “Os limites do Souto Rock são impostos por nós. Obviamente, temos de cumprir coisas, como a licença de horário, mas a programação é inteiramente decidida por nós”, explica.

Queremos ir buscar bandas emergentes, outras que sejam mais reconhecidas, mas que estejam incluídas no mesmo circuito que nós. O município apoia-nos, e isso é muito importante, mas se eles nos deixassem de apoiar, nós faríamos na mesma. Simplesmente não podíamos dar as condições que nós queremos dar”, afirma, mas reconhece, “as pessoas têm vindo e têm-se divertido, por isso é que o Souto Rock continua a acontecer”, acrescenta.

Contactados pela CCA, a Câmara Municipal de Barcelos fez questão de reforçar que a cena de Barcelos “não depende, nem se inicia com projetos municipais”, justificando que esta começou “com um conceito de garage-rock de irreverência da juventude, da onda da experimentação e do autodidatismo“, respondeu-nos Luís Ferreira, programador do Theatro Gil Vicente, através de um e-email.

Contudo, as autoridades camarárias explicaram que “com a perceção do dinamismo da cultura musical em Barcelos”, o município acabou por desenvolver, com a ajuda de instituições como o Theatro Gil Vicente (TGV), “uma política de apoio aos artistas e bandas emergentes através de acolhimentos, residências, showcases, formações e workshops com músicos nacionais”, onde é possível acontecer a troca de conhecimentos com músicos locais.

Cálculo / DR

Complementaram ainda que “a integração na programação do Theatro Gil Vicente foi o passo seguinte da escada ascendente das bandas que pisam o TGV como se fosse a garagem com palco, em conceitos mais intimistas, black box, ou na sala principal”, descreve Luís Ferreira. Este declara ainda que “para setembro, está programado o festival ‘Cena de Barcelos’ que contará com a presença, durante um dia, de diversas bandas, e pretende-se a criação de sessões de pitching e a observação dos mini espetáculos por programadores de outros equipamentos culturais”, afirma o programador.

Luís Ferreira mencionou ainda outras propostas que acontecem mais num âmbito municipal, como o “triciclo”: “A programação do Theatro Gil Vicente acolhe também o ‘triciclo’, ciclo de concertos itinerantes que percorrem vários espaços do centro histórico de Barcelos, principalmente espaços municipais com música e grupos nacionais e internacionais. Realiza workshops e showcases durante três trimestres e assume um papel de caráter educativo. O ‘triciclo’ é ‘made in’ Barcelos, produzido em parceria com o município”, explica Luís Ferreira.

O programador do Theatro Gil Vicente expôs outras iniciativas que tem vindo a ser desenvolvidas como mapeamento artístico cultural, “uma ferramenta que o município encontrou para criar uma ‘base de dados’ artística assente na individualidade. Este mapeamento proporcionou a criação de um festival e o conhecimento da ‘matéria-prima’ existente para novos projetos de criação”, descreve.

Mais recentemente, o município desenvolveu um projeto de apoio à internacionalização das bandas de Barcelos, “ajudando financeiramente as custear o valor das tours internacionais, num conceito de Barcelos para o mundo”, e afirma estar a realizar um trabalho de “facilitador”, “defendendo que não se deve substituir a criação de atividades independentes organizadas pelos próprios artistas, como é o caso do Prata da Casa, Barlos, Picnic Freak, Souto Rock, entre outros. Podemos continuar a afirmar que Barcelos respira musica e que os títulos populares de ‘cidade do rock’, ‘Seattle portuguesa’ continuam a fazer sentido numa muitas vezes inexplicável ‘cena de Barcelos’”, descreveu Luís Ferreira.

Um novo som?

Mesmo que não existam novas bandas de rock a emergir Barcelos, uma coisa é certa, isto não quer dizer que os jovens deixaram de fazer música, muito pelo contrário.

A verdade é que em outros estilos musicais, como o hip-hop ou o rap, esta cidade continua a ser uma verdadeira incubadora de talentos.

Para perceber melhor como funciona a cena de hip-hop em Barcelos, entrámos em contacto com Hugo Martins, mais conhecido pelo seu nome artística, Cálculo, considerado um dos principais rappers e produtores a emergir desta cidade.

Apesar deste não estar tão por dentro da cena trap desta região minhota, o rapper explicou-nos que o hip-hop tem umas raízes profundas e uma história que se tem vindo a desenvolver lado a lado à cena do rock, enquanto artistas de ambos os lados se conhecem, respeitam-se e mantêm uma relação.

Ao ser de Barcelos não é assim tão estranho seres um artista. Os meus pais já tinham amigos que tinham bandas ou que tocavam em algum sítio, já herdámos um bocado esta cultura”, explica Cálculo, que acrescenta, também, que acabou por conhecer muitos músicos devido às suas irmãs mais velhas.

Acho que estive sempre introduzido à cena musical, havia muitos concertos pela cidade e atividades. Quando era puto os meus pais costumavam inscrever-me em karaokes e concursos de talentos”, ilustra o rapper.

Este descreve como existiam diversas “tribos” em Barcelos, a malta do rock, do metal, os emos, os alternativos. Como seria de esperar, este estava mais ligado ao mundo do hip-hop.

Apesar de não reconhecer que houve um momento específico que o tenha feito interessar-se neste estilo musical, este recorda um momento que o marcou e inspirou.

Na minha altura, os grupos mais conhecidos eram os Mundo Lírico, Quartel 469 e os Tribo Urbana. Lembro-me quando era mais novo, em 2002 ou 2003, devia ter uns 12 anos, de ver um concerto dos Tribo Urbana, na rua direita, e de ficar muito fascinado”, narra.

Eles tinham um produtor que era o Cola, que é conhecido pelo pessoal da música, e foi a primeira vez que vi alguém utilizar um teclado midi. Fiquei fascinado com o elemento da produção e com vontade de criar as minhas próprias músicas. Ele era amigo da minha irmã e foi a primeira pessoa a mostrar-me este lado mais técnico. Fui a casa dele e ele mostrou-me a sua placa de som e fiquei muito fascinado com a ideia de gravar. Foi daí que nasceu a minha vontade de fazer instrumentais e de querer gravar em minha casa”, confessa.

No entanto, nem sempre era fácil ver um concerto de hip-hop em Barcelos, às vezes era preciso viajar para outras freguesias ou para Braga para, por exemplo, ver um rapper do Porto. Mas algo que era habitual nestes eventos, era a presença de um músico de Barcelos a abrir as hostes.

Cálculo refere que a cena do rock e do hip-hop em Barcelos são bastante diferentes, reconhecendo que o “pessoal do rock conseguiu mais rapidamente sofisticar o seu movimento em Barcelos.”

Tinham mais maturidade e organização, porque também já herdaram isso. O hip-hop era algo recente e que não estava muito estabelecido”, afirma, referindo ainda que as pessoas da sua geração contaram ainda com muito apoio de músicos mais velhos que já conheciam o que estavam a passar e que se identificavam com o seu som.

Apesar de todos fazermos música, que é o essencial, e de estarmos na rua a improvisar, não nos organizávamos bem, ao contrário da malta do rock. O movimento de hip-hop acabou por ter ali um pico, que agora já se democratizou com a internet, hoje as coisas estão mais diluídas e acessíveis para toda a gente”, admite.

Mas, no fundo, “não havia uma grande diferença” entre estas tribos, identifica: “Eram todos jovens que gostavam de música e cada um ia às festas que lhes agradava mais”, ainda que alguns preferissem ir ver uns concertos ao CCOB e outros preferissem ficar na rua a improvisar ou a beber litrosas em zonas como os Poetas ou junto ao Tribunal.

Ao longo da sua vida, os vários sons que foi ouvindo por Barcelos, como um concerto de Peixe:Avião, no Museu de Olaria, ou de Mykki Blanko, no Milhões de Festa, foram ajudando a criar sua identidade própria. Tudo isto começou pelo facto de conviver e criar amizades com as mais variadas pessoas.

Por exemplo, o Nuno dos Glockenwise era da minha turma e os seus primeiros concertos aconteceram na nossa escola, nas festas das listas”, recorda, partilhando uma história de quando quase passou a fazer parte da banda que este ano lançou o Gótico Português.

Eu cheguei a ensaiar com os Glockenwise na altura, quando estávamos a pensar fazer algo estilo Rage Against the Machine. Era normal ter alguém no grupo de amigos que tocasse um instrumento ou que tivesse uma banda, pelo menos essa sempre foi a realidade onde eu cresci”, afirma.

Apesar de concordar que o movimento do rock está a acalmar e que o hip-hop está num momento saudável, Cálculo argumenta que não existe uma diferença assim tão grande com o que acontece e o que acontecia nesta cena.

O movimento do rock até pode estar algo adormecido, o que se pode dever em parte com o fim do Milhões — todos os meus amigos na altura que tinham bandas queriam tocar neste festival — mas no hip-hop não noto tanta diferença. Acho que muitas pessoas foram indo e outras foram aparecendo, mas como o hip-hop nunca teve um movimento tão organizado como o rock, faz parecer que o hip-hop está em alta, mas no fundo continua como sempre foi”, confessa.

Depois de tanto questionar, finalmente, alguém nos conseguiu recomendar um jovem grupo de Barcelos.

Sei que há bastantes novos artistas a moverem as águas. Um grupo que tem feito algumas ondas são os Vinte Vinte”, elogia, afirmando ainda que “o facto de ainda haver músicos de Barcelos a lançar música vai sempre inspirar outros jovens a manter este movimento ativo”.

Perante este “desacelerar” da cena rock da sua cidade, Cálculo mantém-se positivo, afirmando que de certeza que ainda existem talentos escondidos na cidade.

Uma pessoa de Barcelos está habituada à mistura musical e a ver pessoas a fazer coisas e a querer fazer também. A mística de Barcelos é essa, podia parecer que não estava a acontecer nada, mas o movimento underground era completamente efervescente. Uma cidade de artesãos e artistas e pessoas criativas, há uma mística muito forte das pessoas canalizarem as suas vidas para expressões criativas, seja a nível visual ou musical. Acho que ainda há muito suminho”, confessa.

A morte de uma cena musical?

Começamos por dizer já que não.

Ainda acontecem concertos em Barcelos, os artistas provenientes desta cidade, ainda que se tenham mudado, continuam a fazer música (dentro ou fora desta zona). É bastante comum encontrarmos músicos barcelenses como integrantes de bandas que andam a percorrer o país e os habitantes da cidade continuam interessados no facto desta continuar a proliferar criativamente.

No entanto, vivemos tempos diferentes e o próprio conceito de banda acabou por mudar.

Se quisesses fazer música nos anos 1990 ou anos 2000, isso significava ter uma banda, juntares-te com dois ou três amigos e fazerem música. Atualmente, quando olhas para um cartaz de um festival português, vais ver que a maior parte dos nomes são autores a solo”, aponta André Simão.

Aquela coisa de ter uma banda com várias pessoas está fora de moda e de contexto. Não é assim que se faz música hoje em dia”, afirma.

O músico, usando o seu exemplo pessoal, afirma que hoje é muito raro existirem grupos que sejam exclusivos a uma cidade e isto é algo que acontece não só entre os barcelenses. A maior parte dos portugueses partiu da sua cidade natal e está espalhado pelo país.

Das três bandas onde toco, apesar de praticamente todas terem ligações a Barcelos, não são exclusivas a uma cidade, é como os Sensible Soccers: temos malta de Braga, Vila do Conde e Barcelos”, argumenta.

Aquele fenómeno de estar fechado num ambiente único já não existe. O mundo está mais pequeno e existe cada vez mais mobilidade. Por isso, tens bandas que são de todo o lado do país. De repente, uma banda já não é de Barcelos, é do Norte”, diz o músico que faz ainda parte dos Dear Telephone e dos White Haus.

De momento, enquanto estas bandas acima citadas continuam a fazer furor pelo país e a manter o circuito de Barcelos como um dos mais imperdíveis do país, acreditamos que ainda existe alguém a trabalhar dentro de uma garagem que esteja pronto para renovar esta cena musical com uma injeção de sangue fresco.

Até lá, Nuno Rodrigues lança um desafio a estas pessoas.

Digam-nos quem vocês são porque vocês devem andar aí e estamos curiosos. Nós editamos um EP vosso através da Vida Vã“, desafiou o músico dos Glockenwise, referindo-se à editora independente que criaram, responsável pelo lançamento do Gótico Português, e que pode estar prestes a descobrir a próxima grande cena de Barcelos.

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