‘Phantom Thread’: a força do cinema entre o deslumbramento e o trivial
O novo filme de Paul Thomas Anderson afirma-se como poderoso objeto de cinema que seduz de forma profunda, como uma espécie de erotismo escondido, embora este filme de arte e sobre a arte nos proponha também um percurso, que nos atreveríamos a dizer quase no limite do trivial. Ainda assim, vem nomeado para seis Óscares em categorias relevantes, como Melhor Filme, Realização, Ator (Daniel Day-Lewis), Atriz secundária (Lesley Lanville), música (Johnny Greenwood) e design de guarda-roupa (Mark Bridges). Ou seja, encanta pelo vincado gesto de cinema, naturalmente carregado pelas as suas referências, em que o artífice PTA parece estar num perfeito controle de todos os elementos, ainda que se deixe por vezes ultrapassar por um certo deslumbramento de coisa própria.
Não será Paul Thomas Anderson também um pouco o costureiro Reynolds Woodcock demasiado embrenhado com cada costura ou aplicação de organza no seu vestido de alta costura? Sim, ele é o artífice meticuloso de cinema, que escreveu e desenhou o melhor que pode um filme que é também um vestido de gala para o ator Daniel Day-Lewis usar na sua saída de cena, já que confessou ser este o seu derradeiro gesto no cinema. Será?
Quase tudo pode ser cosido na bainha de um casaco, segreda-nos o nostálgico Woodcock, logo no início do filme, ao recordar os pequenos segredos que cosia nas bainhas dos vestidos costurados pela mãe e que revelavam esta personalidade de eterno garoto tornado autor de vestidos para damas de refinado gosto. O mesmo que aprecia tanto a vertigem da condução a alta velocidade como os silêncios de um pequeno almoço calórico. É precisamente durante um manjar matinal que encontra na quase banalidade de Alma, uma empregada de mesa – a singular luxemburguesa Vicky Krieps que despontou como foi mulher de O Jovem Karl Marx, de Raoul Peck –, a musa com o desenho corporal ideal para a sua criação. Mesmo assim, “sem peito e com uma barriguinha”.
Só que nesta nova ligação, não haverá sexo, pois o erotismo está mais no folho, na dobra, na costura ou na aplicação de renda com história que confere ao conjunto esse toque de magia. Ou talvez melhor, no sexo do cinema, dos planos rigorosos, nos movimentos de câmara sensuais, na encantatória banda sonora. Daquilo que se sugere. Estamos então no domínio de um erotismo enviesado, como aquele em que Jimmy Stewart despiu e vestiu diversas vezes Kim Novak no clássico de 1958, A Mulher que Viveu Duas Vezes. E esta proximidade a Hitchcock nem se fica por aqui, já que são por demais evidentes os ecos do clássico de 140, Rebeca, com que o mestre do suspense iniciou a carreira em solo americano. Desde logo, articulados pelo singular triângulo estabelecido entre Woodcock, a criada Alma e a irmã Cyril, tão fria e dedicada ao costureiro, interpretada com a intensidade de Lesley Manville, justamente nomeada para o Óscar secundário, embora a sua figura, postura, corte de cabelo e maneirismos pareçam um figurino decalcado da governanta Mrs. Danvers, no marcante registo de Judith Anderson (também ela nomeada ao óscar respetivo nesse ano). Ela que atormenta a delicada Joan Fontaine resignada a viver na sombra da ex-mulher do marido, interpretado por Laurence Olivier. Enfim, fantasmas que se cosem com esta linha invisível, ainda assim indelével, que não se pode apagar.
Seja como for, esta “herança” omnipresente não diminui o interesse da obra. Serve-lhe até de eco e adorno cinéfilo, tal como sucedeu nos filmes anteriores de PT, sempre apoiados por essa proximidade com o género e um cinema de devoção, embora dentro de uma reflexão própria que o cineasta nunca abdicou. De resto, o seu cinema possui essa singularidade que escapa à maioria dos realizadores seus conterrâneos. Ao longo da sua carreira este cineasta de 47 anos soube explorar com assinalável detalhe e consistência os contornos sinuosos de diversos géneros cinematográficos. Talvez consequência da herança de uma cultura de clubes de vídeo que lhe tenha ficado do pai, um fanático de cinema de horror e um dos primeiros lá do bairro do vale de San Fernando, do outro lado dos montes de Hollywood, a possuir um aparelho de reprodução que desde muito cedo lhe deu acesso a home cinema e a analisar filmes de uma forma mais livre, bem como a fazer testes de montagem entre dois videogravadores.
Natural então a devoção pelos longos e admiráveis planos sequência que abundam na sua rica e variada filmografia repleta de personagens marcantes e marcadas, determinadas e dominadas por uma imensa personalidade capaz de grande feitos. Por isso mesmo, quase sempre alavancadas também por atores carismáticos, como Daniel Day-Lewis, gigante no papel do prospetor de petróleo em Haverá Sangue, em 2007, tal como Philip Seymour Hoffman, como o dominador líder de uma seita religiosa próxima da Cientologia, em The Master – O Mentor, de 2012, ou ainda Joaquin Phoenix, como detetive privado vicioso com historial de consumos, no filme anterior Vício Intrínseco. Isto sem esquecer Mark Wahlberg, a dar boa conta de si ao reencarnar a estrela prono Dirk Diggler, em Boggie Nights, ou Jogos de Prazer, de 1997, no arranque da carreira de PTA, de certa forma emulando também o seu filme de estreia, feito aos 17 anos, The Dirk Digler Story, o tal falso documentário sobre a história de Dirk Diggler, uma suposta estrela de filmes X, embora inspirada na história verídica e misteriosa do mítico John Holmes, o eterno ícone da indústria porno.
A linha Fantasma é um filme que casa bem com os precedentes, ainda que pareça recusar alguma da complexidade narrativa dos anteriores, para uma história apoiada no referido triângulo constituído pelo irmão, irmã e musa, ainda assim com um registo que se torna mais complexo, invisível mesmo, talvez um pouco à semelhança de Embriagado de Amor, de 2002, com um inesperado Adam Sandler. Só que este momento fascinante de cinema, desde o belíssimo início com Vicky Krieps a relatar a sua própria história, apenas iluminada pela luz de uma vela, embora saibamos tratar-se mais da história de Woodcock, ou da história de Daniel Day-Lewis, sabendo do seu rigor e total imersão da personagem, ou até mesmo a história do próprio Paulo Thomas Anderson, sempre embrenhado a pensar cinema.
A Linha Fantasma é tudo isto. O que faz de si um objeto ao mesmo tempo fascinante e requintado pelo design, os décors, a luz magnífica e a fotografia que acompanha cada plano. E a música. Um trabalho de arte, naturalmente, mas que ainda assim decide viver lado a lado com um certo lado banal das coisas, como o artificialismo decorativo dos próprios vestidos. Ou até a história de uma obsessão, como a que perturba Woodcock, mesmo que seja apenas o som da faca a barrar manteiga numa tosta. É a tal história do criador e a sua obra, procurando enxergar a beleza nas pequenas coisas, por mais comuns que sejam. Será essa a vantagem de Linha Fantasma? No filme funciona, ainda que o fio narrativo se arrasta inevitavelmente por alguns lugares comuns que nos embalam até ao final desta viagem, embora numa estrada diversas vezes percorrida por outros tantos criadores.
Artigo escrito por Paulo Portugal em parceria com Insider.pt