‘Actores’: os atletas das emoções que correm por nós
Quarenta e dois quilómetros, mais cento e noventa e cinco metros. É a distância de Maratona a Atenas, percorrida com esforço, ânimo e coragem por um soldado grego, na ânsia de partilhar uma importante boa-nova. Há quem a replique com as pernas, algumas vezes por ano, em treinos de alta competição de uma das primordiais modalidades olímpicas. Há quem a recrie de outras formas. Esta maratona ocupou o Teatro Municipal São Luiz ao longo de duas semanas e meia, com salas esgotadas a assistir (no total, quase 10 mil pessoas assistiram). Agora corre o país: Coimbra, Porto (7 a 11 de Fevereiro), Loulé (16), Ovar (23 a 25). Em palco, cinco atletas das emoções: os actores.
O treinador, em voz-off, faz-se ouvir. É Marco Martins, o encenador de Actores. O elenco entra em palco – pela última vez em Lisboa, na sessão extra marcada para a noite de Domingo – e são-lhes dadas instruções. O elenco é conhecido – a maior parte, caras familiares à maior parte dos portugueses. Miguel Guilherme, Nuno Lopes, Bruno Nogueira. E duas actrizes, mais novas: Rita Cabaço e Carolina Amaral. Foram estas as únicas que vi actuar antes desta noite – a Rita, no Teatro da Politécnica, a interpretar uma irreverente e provocadora projeccionista de um cinema de segunda categoria. A Carolina, há dois anos, em Guimarães, num breve monólogo a que tive a estranha oportunidade de assistir à hora de almoço, num dia de semana. Ao entrar na sala, imaginava que o cansaço dos actores seria tão grande quanto a expectativa do público. Não esperava que fosse maior, como julgo ter podido confirmar.
A premissa é auto-referencial. Três meses depois de Sopro, de Tiago Rodrigues, ter trazido ao palco do Teatro Nacional D. Maria II uma reflexão sobre as pessoas do teatro – numa peça inesquecível que ainda muito terá por espremer ao longo dos próximos anos (posso arriscar dizer décadas?) – eis que voltamos a mastigar os bastidores, que voltamos a saltar a cerca entre o público e o palco, que colocamos o processo no lugar do resultado final. Desta vez – mais do que por meio da poética da narrativa – à conta de interpretações ímpares, impactantes e irrepreensíveis. Talvez ao título de peça pudéssemos acrescentar, em jeito de preâmbulo: [5 Grandes] Actores. Assim está melhor.
Mas na verdade o que aqueles cinco estão a apresentar é mais do que eles próprios. A partir das suas histórias, dos seus medos, sonhos, dificuldades, rotinas, apresentam as dos outros. As daqueles que também partilham o mesmo trabalho: mais do que contadores de histórias, habitantes de histórias, de personagens – muitas vezes no ritmo esquizofrénico de múltiplas peças simultaneamente em cena. Fazem-no de forma competente e apaixonada, com criatividade e entrega. Emocional e física. A peça explica-o, exemplifica-o, coloca-o em evidência – choca, faz-nos reflectir.
Por isso, aqueles que de entre vós ainda não tenham assistido e tenham a expectativa de ainda o vir a fazer, saltem na sua leitura este parágrafo deste texto – porque o espectáculo também se serve da surpresa como arma. Nos vários momentos de que é composto. Também naqueles em que rimos: as réplicas dos anúncios à Água das Pedras e ao Renault Megane; ou todo o segmento em que voz de Nuno Lopes faz ressoar, num estranho conforto invernal, «Se é Natal… é El Corte Inglés»; ou quando ouvimos o texto inicial ser interpretado com alegria (e mais alegria ainda, na repetição da última frase) por Miguel Guilherme. Também nos momentos mais interessantes, como aquele em que a plateia é colocada em causa diante de um Bruno Nogueira que não, não é suposto ter sempre graça. E não é que ainda se ouviram duas ou três pessoas a não conter o riso, depois de tão convincente catequese? Somos mesmo tramados, enquanto público. As cenas seguem-se umas atrás das outras, seguindo um guião afixado na parede do estúdio de gravação. Poderíamos ter alguma dificuldade em avaliar que prestações mais nos tinham marcado, não se desse o caso de uma das actrizes vir agitar absolutamente as águas.
Já o é, embora a opinião pública ainda vá demorar o seu tempo a reconhecê-lo, principalmente se continuar a evitar a exposição e mediatismo que a televisão e o cinema proporcionam: Rita Cabaço, uma das melhores actrizes portuguesas. Se a projeccionista no Teatro da Politécnica já me tinha dado essa impressão, agora foi a própria Rita que o provou – e para a ajudar, e para minha surpresa, voltou a trazer a projeccionista consigo para cima do palco. É ela a protagonista da sequência mais intensa de toda a peça – é a maratonista por excelência. Destaco um momento. Trinta segundos. Os actores estão na boca de cena, a olhar para o público, com tristeza – estão a seguir indicações do encenador, dadas na hora. Todos de frente, todos a fitar-nos directamente, menos uma: Rita Cabaço, de costas para nós, mas de frente para uma câmara, que projecta o seu rosto na tela grande por cima do palco. É Marco Martins a fazer-se valer da sua faceta de cineasta, a trazê-la para o teatro, num bonito cruzamento entre os dois meios. Saltito com o meu olhar entre as várias caras, mas acabo por me fixar na tela. A Rita olha para nós, tão directamente quanto a câmara magicamente permite: sofre, sofre, sofre, sem que o rosto o denuncie. Por fim, um sorriso de tristeza profunda, do âmago, e lágrimas que escorrem rápidas. É isto o teatro.