Entrevista. Celso Costa: “É preciso estudar para entender o que é uma narrativa, mas antes de tudo é preciso ser um leitor”
É matemático, mas não quis inventar a roda ao escrever “A Arte de Driblar Destinos”. Celso Costa explica que foi a partir das muitas leituras que fez até aqui, aos 74 anos, que chegou à fórmula certa para escrever bons livros — e que lhe valeu o Prémio LeYa, em 2022.
Em entrevista ao podcast “Ponto Final, Parágrafo”, de Magda Cruz, o autor brasileiro explica o processo de escrita deste romance, como fez uso de um gravador para gravar as memórias e, depois, passá-las para o papel. Oferece-nos até uma imagem do livro: “É como se as personagens estivessem à volta de uma fogueira, contando histórias”.
Neste episódio, Celso Costa anuncia que “A Arte de Driblar Destinos” vai ter continuação. O segundo livro já está pronto, já tem nome e continua a história do menino de 10 anos que se espantava com equações. Cesto leva a vida de escritor bem a sério, mantendo um horário de escrita diário — o que já o leva a revelar vários dos próximos livros.
Magda Cruz: Qual é a fórmula para escrever um livro? Pode partilhar connosco a fórmula matemática para escrever um primeiro livro assim?
Celso Costa: Tem alguns referenciais que podem ser de boa utilidade para quem pretende seguir por esse caminho. A primeira coisa é estudar os fundamentos da narrativa. Como se dá a narrativa? Começa pelo estudo, pelo esforço, por tentar entender. Eu, quando me aventurei por esse caminho, assisti a muitos programas de televisão dos grandes mestres falando sobre as suas experiências. Também participei nalguns cursos de escrita criativa. É preciso estudar para entender o que é uma narrativa, mas antes de tudo é preciso ser um leitor.
MC: Sobretudo, ler.
CC: Sobretudo, ler. Desde sempre fui um leitor assim obsessivo pelas histórias. Por boas histórias, dos grandes mestres. Então, a arte de escrever é uma arte que também tem as suas regras intrínsecas, como tem a Matemática. Nesse ponto, tem uma certa similaridade entre essas duas áreas que algumas vezes são colocadas de maneiras opostas.
MC: Não há uma equação certa, mas há coisas que se podem juntar — e começando por personagens e histórias boas.
CC: Exato. Os grandes mestres ensinam o fluxo da narrativa. Tchekhov, talvez um dos maiores contistas que a Humanidade já teve, ensina que se seu personagem vai ser tuberculoso no trigésimo capítulo, então tem de dar uma tossidinha no quinto. Se você bota uma espingarda no quinto capítulo, tem que ter um disparo no oitavo. E além disso, a questão dos ganchos. No meu romance, “A Arte de Driblar Destinos”, eu comecei com uma tourada e isso rompeu um pouco a linearidade temporal do personagem.
MC: Começa novo aí. É a primeira tourada a que ele assiste.
CC: É a primeira e tem cinco anos. Mas a história pega até nos três anos. Dos três aos 19 anos. Então, foi preciso fazer uma rotura temporal, pela regra do romance, também. Quando você começa um romance, e o leitor abre o livro para ler, começou a ter os primeiros passos de um contrato que é assinado entre o escritor e o leitor. É um contrato: “Vamos por esse caminho?”. E se esse contrato realmente goza de uma verosimilhança. Você pode ir para o Fantástico, pode ir para qualquer lugar que vai ter esse comunhão entre o narrador e o leitor. Então, é preciso começar de uma maneira pungente — o mais pungente que você possa. Você pode fazer, inclusive, uma inversão temporal, mas, evidentemente, com coerência. Resolvi começar aos cinco anos porque o personagem vai assistir, pela primeira vez, a uma tourada que aparece no seu modesto município — de mil habitantes, apenas uma rua de terra vermelha e sem calçamento, um lugar que não tem televisão porque é o ano de 1960. As casas também não têm geladeira porque são itens muito…
MC: De luxo.
CC: De luxo. Porque são movidos a querosene. Mas já tem o conforto de luz elétrica.
MC: E é uma tourada marcante até pela coragem que o pai da personagem mostra. Queria chamar a atenção para algo que o editor Paulo Werneck disse. Explicou que o que captou a atenção do júri do Premio LeYa foi o facto de “A arte de driblar destinos” não ser um romance que quer inovar a forma, pelo contrário, “dialoga muito com a tradição”. O Celso quis, sim, focar-se em contar uma boa história. Não estava aqui para reinventar a roda.
CC: Eu vejo que o objetivo que eu buscava, ao fazer essa narrativa, era um objetivo de procurar chegar mais perto do oral. Essas narrativas, que são narrativas de memória, são factos acontecidos e que eu coloquei ali a argila para que se transformasse numa narrativa. Eu procurei muito o sentido de fazer uma oralidade. E, evidentemente, quando você conta uma história não vai fazer inovação linguística. Inclusive, o modo de produção desta história foi muito especial. Nesse livro, eu contei essa história para um gravador. Os capítulos eram contados numa ordem qualquer. As recordações que me vinham eu contava para o gravador. Os meus filhos também participavam para a gente ter um pouco de calor na interação. Amigos também. Podia até ter um copo de vinho para poder animar a situação. Mas eram episódios contados durante 20 minutos, às vezes menos. E quando tinha reunido esse arcabouço, contratei alguns alunos da Universidade para fazer a desgravação. Desgravação é chato… (risos) Então, remunerei esses estudantes e muitos ficaram fãs da história.
MC: Ganhou leitores. (risos)
CC: Então, depois desse borrão, tive de fazer uma engenharia de mosaico. É como se tivesse um grupo de pessoas em volta de uma fogueira contando histórias. Procurei preservar a voz dos personagens: o coveiro da pequena cidade, os andantes da estrada. A capa do livro mostra o menino, que é o protagonista, caminhando na estrada, com dois desconhecidos que ele encontra na sua jornada. É uma jornada da educação. Nessa jornada, há muitos elementos distrativos que é preciso driblar para poder atingir o objetivo.
MC: Esse caminho para a educação, o aprender a ler, a somar, é também uma coisa que quer transmitir aos jovens leitores. Faz parte da vida do Celso. E esta ideia de que a educação pode nos levar mais longe.
CC: Certo, exatamente. É uma mensagem para a juventude, para os jovens de todas as idades, e também o público adulto, para os pais. Eu recebi alguns exemplares [do livro] no Brasil, dei para um amigo meu e o filho dele, de onze anos, está lendo o livro. Eu acho que a narrativa tem um fluxo assim que permite, realmente, ser acompanhado. Não se usa palavras complicadas, mas sim um ritmo que o Manuel Alegre, presidente do juri [do Prémio LeYa], identificou com um ritmo que oscila entre o pícaro e o dramático. De supreender sempre o leitor. Quando se nota que em cada capítulo — são 44 ou 45…
MC: Muito curtos, muito fáceis de ler.
CC: E eles terminam como se a palavra fosse passada para um outro orador. Não é uma quebra. É…
MC: Um conjunto de perspetivas que contam uma história inteira…
CC: Que contam uma história inteira. Eu acho que isso aí dá uma sensibilidade grande, eu acho, para o leitor poder seguir a história.
MC: Antes de continuarmos a falar sobre o seu romance, permita que faça esta pergunta. O Celso tem 74 anos. Como é que depois de tantos anos dedicados às Ciências, à Matemática, se vira para as Letras e para a escrita de um romance? Já percebi que era um grande leitor, desde cedo. Era uma ideia que já vem de trás?
CC: Nesse momento da minha vida, eu tenho duas amantes: a Matemática e a Literatura. Mas no decorrer da minha vida, a Matemática se mostrou uma amante mais exigente, que me segurou muito. Eu descobri muito cedo que eu tinha uma facilidade com a Matemática, porque tem esse pendor como disciplina de uma revelação cedo dos talentos. Talvez apenas a música possa ter uma precocidade. Esse talento musical pode se revelar muito cedo. A Matemática também tem essa precocidade. Então, quando eu estava na escola primária, eu me espantei com a equação e fui lá perguntar para a professora como é que funcionava aquilo… E aí o diálogo foi tão interessante que ela me estimulou. São memórias. O protagonista fica de tal maneira entusiasmado com aquela situação…
MC: Ele dá-se muito bem com a Matemática. A mãe e vários membros da família o põem a escrever o alfabeto e o tio a fazer contas… Vai ganhando essa facilidade. E o Celso vai buscar essa memória.
CC: Vou buscar essa memória. E, com isso, também vem a leitura. Leitura de revistas em quadrinhos… Depois mudamo-nos para uma cidade um pouco maior, que já tinha uma biblioteca um pouco melhor. Eu posso olhar, por exemplo, e encontrar o Mário Palmério com o livro “A vila dos confins”, com uma capa colorida, que chama a atenção. Eu li esse livro…Talvez seja o livro de Literatura mais possante que li.
MC: E que o marcou.
CC: Nem me lembro direito da história, mas marcou pela iniciação. Houve uma iniciação nesse momento.
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“Ponto Final, Parágrafo” é um podcast sobre literatura, conduzido por Magda Cruz, na ESCS FM em parceria com a Comunidade Cultura e Arte. Já conta com mais de 60 entrevistas a quem escreve e a quem lê. Pode ser ouvido em todas as plataformas de áudio.