Entrevista. André Henriques: “Não sou o narrador da história de outra pessoa, estou mesmo a falar de coisas minhas”
André Henriques começou por ser conhecido como o vocalista/guitarrista/letrista dos Linda Martini. A acompanhar os muitos concertos e discos lançados com a banda, André Henriques sentiu, a páginas tantas, que tinha uma ou outra música que talvez se encaixasse numa carreira a solo. Com o ímpeto de Pedro Trigueiro, começou a delinear Cajarana, o seu disco de estreia lançado em 2020, que define como um “disco de muitas fugas: fugir da cidade, dos passos apressados, do som da minha banda ou do emprego das 9h às tantas”. Três anos depois, volta com Leveza. Um disco composto numa fase diferente de vida, noutros espaços, com outros ruídos. E foi para lhe ouvir as histórias que andam à volta de Leveza que nos sentámos com André Henriques.
Cajarana era um disco que falava muito sobre a vontade de fugir, de sair da vida da cidade. Ao Público disseste que “Se no primeiro disco falava no desejo de fuga da cidade, agora que finalmente fugi dou por mim a cantar sobre a cidade que ainda trago cá dentro”. Este disco é também uma transição na maneira de ver a vida?
É, porque me acompanhou. O Cajarana era claramente um disco de fuga, fuga dessas coisas todas. Já há uns anos que abandonei uma vida de escritório, que trabalhava em recursos humanos como consultor, portanto essa foi a minha primeira fuga. E depois de começar a dedicar-me mais à música, com os filhos e com a família a crescer, queria sair da cidade. Sempre vivi nos subúrbios de Lisboa e tinha um desejo enorme de sair, de abrandar, de ter outro tempo para mim, outro tempo para os miúdos. Como a minha vida agora gira em torno da música, não tenho esta obrigação de estar na cidade. E este disco é o que acontece depois da fuga. Já não estou a morar em Lisboa, estou numa zona de campo perto da praia, não muito longe de Lisboa, mas com uma distância considerável para ter esse abrandamento. E este disco fala muito sobre disso. Neste contexto de disco a solo, há esta ideia de deixar que a minha vida, as minhas coisas pessoais e as minhas questões contaminem de facto as condições. Não há outra forma de escrever para mim que não essa. Linda Martini é uma entidade, é maior do que a soma dos quatro e, quando escrevo, também escrevo sobre mim, mas também tenho a preocupação de que eles representam. Aqui é deixar que a vida aconteça à minha volta. Por isso é que este disco tem mais motivos ligados à natureza.
“Não sou o narrador da história de outra pessoa, estou mesmo a falar de coisas minhas, destas ansiedades, de mudar de vida, de chegar a idade adulta, de ter filhos.”
Tem muitos pássaros também…
Essa é logo uma das diferenças. O Cajarana começava com uma música que eu gravei na casa de banho e ouvia-se um avião. Por isso é que na primeira música deste disco começo por dizer que troquei aviões por pássaros. É uma interacção que está mais presente. Muitas vezes quando vou correr para a praia e vou a ouvir as canções que vou fazendo, vou pensando naquilo que podem ser os textos e as melodias. Trouxe essa praia para dentro de uma das canções. Falo de um jardineiro que conheci e quando lhe perguntava “Sr. Arlindo, esta planta aqui o que é?” e ele respondia-me “isso são verduras, é para cortar”. Aparece um pedreiro, porque eu compus o disco no meio de um caos de mudanças, obras, crianças e escolas. Por isso, este construir uma casa, edificar uma casa também está muito presente. O mote da leveza, esta ideia de encontrar um tempo diferente não só nas canções, mas também na vida. É um disco pós-fuga.
É a casa na praia.
É exatamente uma casa na praia, já desenhava esse desejo, não é? Falava-se mesmo disso, sobretudo daquelas interrogações todas. Isto é o que acontece depois, portanto, as janelas são de abrir é mesmo isso. Eu queria que fosse a música que abria o disco, porque é exatamente uma resposta a esse meu desejo de fuga da casa na praia.
As tuas canções são muito ricas em imagens, quase que conseguimos ver o filme. Este contar histórias são cenas que vês no teu dia-a-dia? São cenas que vês num filme e gostas de as musicar?
Às vezes é difícil precisar de onde vem. De repente aparece uma frase na boca, um tema qualquer e tu decides ir puxar o novelo.
Como foi o caso de Maria Odete.
A Maria Odete sim, que é aquelas coisas que se impõe, que tu vês e depois mais tarde é que percebes que eu fiz isto porque devo ter visto aquela notícia. Mas em relação ao disco anterior, este é um disco onde eu fujo menos de mim. No Cajarana tinhas aquela canção da bomba de gasolina, que é claramente um filme, como se estivesse a fazer um miniconto. Neste disco, diria que todas as canções, à excepção de uma, são coisas minhas. Não sou o narrador da história de outra pessoa, estou mesmo a falar de coisas minhas, destas ansiedades, de mudar de vida, de chegar a idade adulta, de ter filhos. A tal ideia de casa muito presente e que aparece no final do Leveza. Até uma coisa que parece muito alegórica, na canção “Ela deu maçãs”, em que no meio do caos de obras e pedras e porcarias, descobri que havia uma macieira brava. E ela tinha uma maçã e então era aquela ideia do quando ninguém esperava, ela deu uma maçã. Não tendo o contexto, parece uma coisa meio alegórica.
Na canção Abriu em queda falas das angústias, de ter filhos, do futuro, do ambiente. São estas pequenas questões que todas juntas além de que parece que chegamos aos 40 e não sabemos muito bem para onde nos viramos? Ainda mais quando temos filhos.
E é também uma coisa muito curiosa quando tens filhos, que é tentares pôr-te no lugar dos teus pais quando tinham a tua idade. E perceberes que, se calhar, eles também não tinham a mínima ideia do que estavam a fazer. Crescemos a olhar para os nossos pais — se tudo correr bem, há lares e lares —, mas crescemos a olhar para eles como um porto de segurança e sabem mais coisas do que tu sabes. Mas em relação a esta ideia do que é a paternidade, até podes ler muitos livros e fazer muitos cursos, mas é uma coisa que se faz no dia-a-dia. E as dúvidas e as inquietações são constantes e teres, no meu caso, dois filhos, que dependem de ti. É bom assumir que não sabes tudo e que não é suposto saber tudo. É claro que estas ansiedades também te dão para escrever imensas canções, o Cajarana estava pejado. Chegares aos 40, e chegar eventualmente a metade da tua vida, é uma altura de balanço para toda a gente.
Na canção Espanto dizes “ando a ver se me espanto”. Parece que surge aqui o conflito entre o adulto, com as suas responsabilidades, e a vontade de ser criança, com capacidade de te espantares outra vez. É uma quase-necessidade de querer ser infantil outra vez?
Sim, brinca muito com aquela ideia dos parques de diversões e daquelas metáforas todas com carrinhos de choque e com algodão música. Até com a música, que cresci a ouvir música e ouvir discos de uma ponta a outra e há uma altura em que é muito difícil nos surpreendermos. Para o bem ou para o mal, às vezes torna-se um bocadinho cínico. Mostram-nos uma banda nova e parece que já ouviste aquilo outras vezes interpretado por outras pessoas. E às vezes é bom pensares que devemos abrandar aqui um bocadinho e tentares ver aquilo com uns olhos diferentes. É essa ideia que eu vejo com os meus filhos, mostro-lhes uma coisa que eles nunca viram e aquilo é um fascínio tremendo. Para ti, já não é nada, mas se vires pelos olhos deles, de facto muda qualquer coisa em ti. Trazendo isso para o que eu faço, isto de querer fazer música e de, por carolice, continuar a fazer música tem muito que ver com isso, com o gozo que tens de estares sozinho e espantares-te contigo. E pensar “se isto mexeu comigo, também pode mexer com outra pessoa, não é?”. Começa sempre uma coisa muito tua, mas depois há sempre aquele desejo de partilhar com alguém para perceber de que forma pode soar nos outros. Essa é das coisas mais bonitas que eu gosto naquilo que eu escolhi fazer, que é espantares-te. Há horas e horas que não sai nada de jeito, e depois há a frustração, a síndrome do impostor, mas quando sai uma frase, sai uma ideia qualquer, de repente puxou uma canção e ficaste ali umas horinhas à tarde e sais com uma canção. Aquilo é uma coisa de facto espantosa. Por mais canções que eu faça, nunca há uma fórmula, nunca sei como aparecem.
Há uma voz feminina que não identifico…
Sim, ninguém conhece. Chama-se Anna Grabner, é austríaca, foi uma adição ao disco. Foi curioso, porque eu conheci-a na escola dos meus filhos, tem 2 filhos da idade dos meus. E ela estava sempre a cantar. E uma vez disse-lhe: “tens uma voz lindíssima, o que fazes?”. Então ela nunca gravou um disco, não é cantora profissional. E lá está, é a minha vontade de deixar que a vida real entre nas canções.
Na última canção, que dá nome ao álbum, termina-se com um cantar em conjunto. A Anna, o Domenico (Lancelotti), o Ricardo (Dias Gomes), o André. É uma música lindíssima que parece culminar na sala de estar.
O disco esteve para se chamar muitas coisas, mas quando apareceu essa canção — e no meio destas coisas todas das obras, de ter uma casa, de pôr uma casa de pé, sendo que a casa não só as paredes, mas as pessoas estarem felizes lá dentro, com todas essas angústias e ansiedades — achei que o disco devia ter esse nome. Depois achei que a coisa mais bonita era toda a gente que tocou no disco cantar nessa parte final. Aquele mantra de leveza. Percebe-se que não é uma coisa de estúdio, é uma coisa gravada na sala e eu queria que o disco ressoasse nas paredes de uma casa.
Leveza está agora disponível em todas as plataformas de streaming. A fotografia de capa é da autoria de Joaquim José Henriques, pai de André Henriques, ao navio Tollan, que esteve encalhado no Tejo durante 3 anos no início da década de 80. No dia de lançamento do álbum (22 de Setembro), André Henriques atua no Montijo, na Casa da Música Jorge Peixinho. O novo álbum será apresentado em Lisboa (Teatro Maria Matos a 15 de Novembro) e no Porto (Plano B – 17 de Novembro).