Entrevista. Rodrigo Teixeira: “A forma de se fazer cinema no mundo é muito parecida, o que muda é o financiamento”
Rodrigo Teixeira nasceu no Rio de Janeiro, é produtor cinematográfico, membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas e fundador da RT Features. A sua carreira internacional é uma das mais relevantes no plano da produção cinematográfica do Brasil. Entre alguns dos seus trabalhos encontram-se títulos como “Frances Ha” (2012) “Call me By Your Name” (2017), “Ad Astra” (2019), “The Witch” (2015) e “The Lighthouse” (2018). O produtor esteve em Portugal a propósito do Festival Guiões e a Comunidade Cultura e Arte falou com o produto brasileiro.
O Rodrigo cursou administração. Alguma vez foi um complemento útil ao percurso que tem feito no cinema?
Acho que não. Não me formei, estudei, mas não me formei. A faculdade em si, não sinto que tenha sido uma mudança no meu percurso. Acho que o convívio com pessoas ligadas a este mercado foi importante para mim, mas não necessariamente o estudo em si. Não vejo que a faculdade realmente me tenha trazido muitas vantagens, ou alguma vantagem específica, no mercado do cinema.
Como funciona o seu processo de seleção de projetos? A rápida mudança nos paradigmas de distribuição, com a chegada do streaming, alterou esse processo?
Não, acho que o meu processo de escolha de projetos é meio baseado numa premissa que tenho que é: gosto de fazer o que gosto de ver. O streaming, na verdade, não altera essa premissa, ele vem com uma possível nova ferramenta. O streaming não mudou a minha visão porque o streaming quer fazer um tipo de cinema diferente. Se eu não tiver vontade de assistir o filme ou a série, eu não vou lhe pegar, prefiro não fazer. Se eu não sou audiência, não sei para quem é que eu vou fazer. Acho que sou uma audiência muito ampla, vejo de tudo, então sou um cara difícil de atender, porque vejo tudo mesmo, gosto de bastantes coisas.
“A forma de se fazer cinema no mundo é muito parecida, o que muda é o financiamento.”
Sei que é um cinéfilo devoto, com um grande respeito pelos clássicos (“Godfather”, “Goodfellas”). Acredito que, como muitos produtores, tenha passado por um longo período de aprofundar conhecimentos formais e criativos. Porquê a produção e não o guionismo ou mesmo a realização?
A gente vai amadurecendo a cinéfila. O guionismo… tem um filme meu que escrevi o argumento, “O Alemão”. Não escrevi o roteiro, mas escrevi o argumento. Nunca parei para escrever… entendo o roteiro, mas não tenho a técnica, não tenho a prática na técnica do roteiro escrito, tenho uma prática de leitura de roteiro, mas a prática da escrita do roteiro não tenho. Não vou parar para escrever um argumento, posso escrever pedaços ou ideias. Escrevo bastante até, mas um roteiro em si… não.
A direção nunca me senti ‘picado’ pelo bicho da direção durante muito tempo, mas a direção em si não é algo que eu descarto, que eventualmente em algum momento da minha vida, eu vá dirigir. Não agora, mas eventualmente acho que quando tiver com cabeça um pouco mais tranquila, quando coisas que eu estou organizando ficarem mais organizadas, coisas que estou querendo fazer, se encaminharem, acho que posso parar e eventualmente falar ‘tenho vontade de dirigir um projeto’. Ainda tenho 46 anos, vou fazer 47, de repente posso querer dirigir com 50, mas eventualmente dirijo, sim. Não agora, mas é uma vontade que tenho.
Dentro de algum género específico?
Depende, não tem um género específico, depende muito. Para parar para dirigir tem que ser uma coisa que tenha muita vontade de fazer. Sou bem aberto, mas uma coisa que com certeza provavelmente seria difícil seria comédia, porque, por mais que goste da comédia, não sou um cara da comédia. Pelo menos uma comédia descarada com certeza não seria.
Apesar de trabalhar com um pé em Hollywood, mantém um contacto próximo com a indústria cinematográfica no Brasil. Quais são as vantagens de trabalhar nessa dinâmica entre países?
A vantagem é o seguinte: os Estados Unidos, fui trabalhar para lá muito mais por uma questão de relação com meu gosto pessoal; fui em busca de coisas que gosto e que gostaria de ver. Falei “como é que eu faço para fazer esse filme?”. Se ele não está sendo feito, vou tentar fazer lá fora! Os modelos de produção de cinema independente no mundo são muito parecidos… A forma de se fazer cinema no mundo é muito parecida, o que muda é o financiamento.
O único cinema em que houve diferença real para fazer é o cinema de estúdio. É uma coisa enorme, é uma coisa gigante, é uma coisa que não é um financiamento pequeno que faz acontecer. É uma coisa maior, ele é uma coisa que vem com uma estrutura muito grande, vem com um pensamento diferente. Esse cinema eu fiz uma vez na minha vida, e não fiz mais, que foi o “Ad Astra”, que é um filme grande de estúdio de Hollywood.
O Rodrigo tem essa experiência, estabeleceu-se há anos numa das maiores indústrias audiovisuais do mundo. O que pode faltar às produções portuguesas para ter um lugar à mesa de Hollywood?
É difícil falar sobre as produções portuguesas porque não conheço todas as produções portuguesas que são realizadas. Acompanho o cinema português em festivais que frequento, sempre que um festival em que estou tem um filme português eu vejo. Acho que cinema português tem autores que fazem filmes muito próximos, que são filmes que têm uma cara do cinema português, como Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues… Então há diretores que fazem filmes parecidos, que tem uma similaridade que faz com que você olhe para o cinema português de um jeito.
Um filme diferente que eu vi que esteve no circuito de festivais e que me chamou atenção, porque vinha numa linguagem diferente do que eu estava vendo no cinema português, foi o “Diamantino”, que foi um filme que viajou, um filme que esteve em Sundance, um filme que esteve principalmente nos Estados Unidos, foi um filme que me recordo de ser muito falado. É um filme diferente do que você está acostumado a ver do cinema português nos festivais. Sinto falta, por exemplo, de um cinema mais narrativo, de um cinema que conte uma história. Acho que o cinema narrativo, que se aproxima do cinema norte-americano, o de Portugal não chega. Se é feito, não está a aparecer. E acho que há um espaço para isso, acho que deveria ter.
Portugal é um país preservado, é um país plural, nos últimos anos Portugal foi um destino para muita gente. Acho que Portugal tem uma cultura afro aproxima de Portugal, a relação com o Brasil, a proximidade com Espanha, relação com o sul da África, com a África negra, a relação com a África do Norte, que é próxima, a relação com outros países daqui. Portugal é preservado, tem locações em quem se pode fazer uma série, tipos de filmes, que em muitos lugares não existe essa preservação.
A língua é uma barreira média, porque no mundo você tem nove países que falam português e a Coreia tem dois países que falam coreano, mas a Coreia não reclama da língua dela para ser um país com representatividade cinematográfica, ela conquistou o espaço dela. Então, acho que o que falta mesmo, para nós que fazemos cinema em língua portuguesa, são histórias mais universais, histórias que tenham uma narrativa. O que eu sinto aqui é que o cinema que viaja é um cinema muito parecido. São filmes que se assemelham, o trabalho de diretores que você fala “cara, isso é típico de cinema português”. São filmes mais contemplativos, são filmes mais metafóricos. E eu acho que tem um espaço para algo mais narrativo, tem espaço para um cinema de género, e eu não vejo. Envelhece muito o que aparece de Portugal para fora, quando acho que têm lugar para fazer muito mais coisas.
Eu provoquei muito esse debate nas minhas conversas aqui [no Festival Guiões] e vi que o que eu falei não foge muito do pensamento de muitas pessoas. Não entendo o porquê dessa não mistura. Porque é dessa mistura que nasce a riqueza das coisas. E se isso me chamou muita atenção.
Durante a decoupagem de um filme cujo tom é tão específico, como “The Lighthouse” ou mesmo “The Witch”, existe lugar para a interpretação do argumento por parte do produtor?
Claro. O [Robert] Eggers, especificamente, foi um diretor com que a gente meteu muito dedo no roteiro, a gente conversou muito e dialogou muito. O “The Witch” a gente mexeu mais ainda no roteiro, na edição, teve muitos comentários. O “The Lighthouse” a gente opinou muito na edição. No roteiro tinha uma cena muito forte no primeiro tratamento do “Farol”, que a gente suprimiu, que não entrou no segundo tratamento. A gente filmou praticamente o segundo tratamento. Não teve um tratamento 3, se não me engano. Se teve as mudanças foram muito pequenas, subtis, a ponto de não ser considerado uma V3, mas uma V2 teve, porque a gente tirou uma cena que seria complicada para filmar do ponto vista de história, nem de filmagens.
O Eggers é um cara que aceita muita opinião. Estou até desenvolvendo um projeto com ele hoje. Não sei como está a cabeça dele neste momento, mas sempre que a gente trabalhou, ele foi um cara muito acessível para conversar.
O Luca Guadagnino é também um cara muito acessível, ouve muita opinião. O James Gray é mais fechado, mas ele ouve, mas ele aceita bem a nossa intervenção. No “Ad Astra” a gente falou muito, no “Armageddon Time” como é que eu vou ficar dando opinião numa história que é pessoal da vida do cara? Não tem como mudar um facto que ocorreu na vida dele pessoalmente. Ele pode concordar, mas é uma história pessoal, a história dele, então tem propriedade para contar aquela história. Um filme pode falar sobre racismo, versar sobre racismo, e você é branco. O cara pode falar “mas é minha vida, eu fiz aquilo, eu sou o garoto branco que passou por aquilo”. Então como é que posso falar sobre isso? Fica difícil você dialogar nesse filme, mas em vários outros dialogo, sim. Se não puder dialogar com um artista para que é que eu vou trabalhar com ele de novo? Se o cara não quer ouvir a opinião, eu não quero impor a minha opinião, não sou um cara que fica impondo, até porque acho que tenho que entender os balanços das coisas. Mas, quando tenho controlo, se eu acho que o roteiro não está bom, não vou passar para início de filmagens, até achar que ele está bom. Sou um cara bem flexível, mas se não tem o diálogo talvez não queira mais trabalhar com essa pessoa depois.
Então trabalha até o guião estar como entende, para depois passar para o set?
Sem dúvida, acho que o guião tem de ser trabalhado e tem que estar bom suficiente para ir para o set.
É uma forma mais honesta de se trabalhar.
Não vejo de outra forma, porque se está a aprovar um projeto que não está pronto, a sua imagem está lá, o seu nome está no filme e se não ficar bom, o seu nome está lá printado naquele filme, naquele cartaz, as pessoas vão falar que você fez isso, acho que é preciso ter muito cuidado!
Referiu há pouco o “Ad Astra”, qual é a parte mais gratificante de terminar uma produção gigantesca como esta?
A parte mais gratificante nem é terminar, é poder participar num projeto como este. Nunca imaginei que iria fazer um filme em que eu fui para a Lua, para Marte, para Neptuno, passaria Saturno, que tivesse naves espaciais. Nem nos meus maiores sonhos eu imaginei que ia chegar nesse lugar, por mais que a vontade não faltasse, e que fosse trabalhar com atores do calibre de Brad Pitt, Tommy Lee Jones, Donald Sutherland. Acabei trabalhando com vários desses atores na minha vida, mas não eram famosos quando fizeram filmes comigo. O Timothée Chalamet quando fez o filme comigo, não era o Timothée Chalamet, o Adam Driver não era o Adam Driver, a Greta Gerwig não era a Greta Gerwig, a Anya Taylor-Joy não era Anya Taylor-Joy, eles se transformaram depois dos filmes que fizeram comigo. Alguns deles até ficaram meus amigos.
Acho que no “Ad Astra”, ter tido a oportunidade de fazer e conviver com um filme desse processo, a gentileza da minha equipa, que era uma equipa premiada — tinha 11 vencedores de Óscares na minha equipa do “Ad Astra” — poder dividir o meu tempo com eles três meses, o tempo deles comigo, foi um prazer. A estrutura desse projeto foi muito legal. Quando terminou foi uma sensação de “well done”.
“Se você não tiver resiliência escolheu a profissão errada, é melhor nem tentar. Porque o cinema é feito para não dar certo, o cinema é feito para demorar, é uma arte complexa, uma arte composta, não depende de uma pessoa.”
E quais foram as principais dificuldades?
A primeira dificuldade que a gente tem é que demorou anos. Entre o primeiro tratamento do roteiro estar pronto até o filme estar sendo filmado foram três anos. Foi como arrumar o financiamento desse filme. Esse filme só aconteceu porque o Brad Pitt veio e falou “quero fazer o filme”, porque viu uma oportunidade. O ator era o Joaquin Phoenix e o estúdio disse que o Joaquin Phoenix não dava dinheiro e não podia fazer o filme, isto antes do “Joker”. Se o Joaquin Phoenix não tivesse feito o “Joker” o filme era dele, o Brad Pitt veio depois e o Brad Pitt pediu para fazer o filme e ao pedir para fazer o filme o filme foi financiado.
E ainda bem que foi o Brad Pitt.
Ótimo! Não sei se como seria com Joaquin Phoenix… Teve outros dois atores que podiam ter feito o filme, o Daniel Craig e Michael Fassbender foram outros… Qualquer um desses quatro atores poderiam ter feito o filme. O Michael Fassbender quando deixou de fazer o filme para fazer um filme chamado “Assassin’s Creed”, que foi um filme que me fez muito mal para ele, e o Daniel Craig deixou de fazer esse filme para fazer um filme chamado “Kings”, que é um filme sobre os riots de Los Angeles, nos Estados Unidos, esse é um erro clássico. Mas sim, quase fizemos o filme com o Daniel Craig.
Um produtor tem de dominar quase a totalidade do glossário audiovisual. Noções sobre realização, guionismo, mas também adereços, efeitos visuais, pós-produção, direção de fotografia, montagem. Seria uma grande mais-valia se todos os departamentos tivessem um conhecimento amplo sobre o trabalho de produção?
Essa é uma pergunta difícil. Porque com a experiência dos chefes de departamento ao longo da carreira eles adquirem conhecimentos de produção. Quando você está acostumado a fazer filmes, você vai descobrindo os processos de produção. Acho que as pessoas não entendem as dificuldades que um produtor tem de viabilizar a parte financeira do filme. As pessoas têm uma falsa visão de que o produtor está ali para explorar as equipas. Não está. A gente está ali para realizar um filme e esse filme as equipas fazem junto com os produtores. Às vezes o produtor sacrifica-se para poder dar condições para essas equipas para trabalharem. Acho que é um mito que o produtor tem vantagens, que o produtor sacaneia as equipas. Não acho, pelo menos não na minha experiência, não vi fazer isso. São relações laborais diferentes, mas produtor tem um risco fodido! Se der errado vai nas costas do produtor o problema, não vai nas costas do assistente de arte, não vai no assistente de câmara, fotógrafo, figurinista, vai nas costas do produtor. Acho que essas coisas são mais delicadas, mas acho que todo mundo conhece sempre um pouco de produção.
Tem algum conselho para aspirantes a produtores que queiram dar os primeiros passos na indústria?
Um conselho que eu tenho é absorver o máximo de informação sobre cinema, assistir a filmes, o maior reportório possível. No cinema, você é um aprendizado eterno, eu não paro de aprender, não paro de estudar, não paro de ler sobre. Estar atento ao momento em que em que vive. Acho que se você não está atento àquele momento que se vive, você não vai conseguir ter sensibilidade para contar uma história que pertence aqui no momento, acho que isso faz muita diferença.
E o principal: um bom produtor ele é curioso, sabe buscar, e a busca por conhecimento gera busca por mais conhecimento. E ele é resiliente. Se você não tiver resiliência escolheu a profissão errada, é melhor nem tentar. Porque o cinema é feito para não dar certo, o cinema é feito para demorar, é uma arte complexa, uma arte composta, não depende de uma pessoa. Não é como as artes plásticas em que você pode ficar pintando ou um livro que se escreve sem depender de terceiros. A realização de um filme depende de muita gente, depende de muitas coisas, é uma coisa muito complexa. E esse é um universo que muda muito, quando aparece um desafio novo e você fala “caramba, e agora como é que dou continuidade a esse processo?” Então a resiliência é fundamental.
Como está a ser a passagem por Portugal?
Tenho sido um prazer, a minha relação com Portugal é uma relação muito afetiva. Eu sou português, também. Sou português sem ter nascido aqui, mas sou segunda geração no Brasil, os meus avós são portugueses. E tenho passaporte português. Tenho uma afinidade muito grande com o país. Fui criado numa família portuguesa, então para mim é super prazeroso estar no país de origem da minha família, falando sobre arte, sendo recebido como fui recebido aqui, com carinho, com cuidado pela comunidade cinematográfica portuguesa, sempre fui muito bem tratado em Portugal. É um lugar que venho com uma frequência cada vez maior. Sempre fui tratado com muito respeito e carinho.
Acho que é um país que tem muito para dar ao cinema, que se souber usar isso, souber usar todos os benefícios, as belezas e as coisas que esse país tem para oferecer ao cinema acho que este país tem um potencial enorme.