Como se pode definir “Arte Bruta”? Visitámos a exposição “Portreto de la Animo” no Museu Nacional Soares dos Reis
O que é arte bruta? Será que há só uma arte bruta ou esta deve ser denominada assim? Certamente, ao visitarmos a exposição temporária do Museu Nacional de Soares dos Reis, “Portreto de la Animo”, em português “Retrato da alma”, apercebemo-nos de que não só não há uma arte bruta, como a arte bruta é apenas arte, desde a sua forma mais minimalista, simples, sem uma técnica depurada, até a uma forma que pode parecer mais complexa a nível técnico. E, neste pendor, não deixa de ser arte que não se rege “pelas regras ou convenções do mundo da arte”, como vem expresso na contra-capa do catálogo da exposição. Convém ter presente este aspecto até pelo facto de se correr o risco de catalogar esta arte como sendo elaborada por e apenas pessoas que padecem de uma qualquer patologia do foro mental, contribuindo assim para uma estigmatização, ou para uma tendência a menorizar a qualidade do que se vê.
Vale a pena relembrar que de forma mais ou menos elaborada ou técnica, estamos a falar de arte. E há, também, uma outra conclusão que se pode tirar desta aliança entre arte e saúde mental: a arte é uma via de comunicação e expressão, essencialmente, nem que seja só da pessoa para si própria. Assim percebemos como a arte ocupa um lugar central nas necessidades e expressões do que significa ser-se pessoa e ser humano. A arte pode ser, portanto, uma via de comunicação e expressão que auxilia pessoas que possam estar a passar por uma adversidade no que diz respeito à saúde mental, mas também, em pleno séc. XXI, já podemos dizer que arte não é sinónimo de “loucura” ou “artista louco”.
O primeiro aspecto que o visitante nota ao circular pela mostra, que conta com 150 trabalhos de 99 artistas de nacionalidades diferentes é, precisamente, este ecletismo entre estéticas, nacionalidades dos autores e tipo de obras — desde quadros, desenhos, a figuras tridimensionais e esculturais — até a uma transversalidade do tempo, juntando obras do início do séc. XX até obras mais recentes. Se dissermos que uma exposição pode juntar, no mesmo espaço, as obras de Jaime Fernandes e, por outro lado, Sarah Affonso, que estudou na Escola de Belas-Artes de Lisboa e teve como professor Columbano Bordalo Pinheiro e, até, o próprio Rafael Bordalo Pinheiro já dá para percebermos a verdadeira pluralidade que guia esta exposição, que junta autores detentores de uma cultura artística em si, mesmo que o modernismo do início do séc XX tenha desconstruído cânones do passado, até autores como Jaime Fernandes, que dedicou a sua vida ao campo, sem educação formal a nível artístico, e começou a desenhar espontaneamente durante o seu internamento no Hospital Miguel Bombarda, onde permaneceu por mais de três décadas — desde 1938 até 1969, devido ao seu diagnóstico por esquizofrenia.
Quando se fala, aliás, em arte bruta no caso português, é muito recorrente falar-se logo em Jaime Fernandes, mesmo que não seja conhecido pelo grande público. Mas, como o próprio catálogo da exposição refere, “porém, este reconhecimento acontece sobretudo fora do país, facto que se explica quer pela perda de uma grande parte da sua obra, quer porque a maioria remanescente se encontra dispersa em colecções no estrangeiro.”
E de facto, sendo a obra de Jaime Fernandes caracterizada por desenhos que brotaram de forma inesperada, aos 66 anos, quatro anos antes da sua morte, estes não eram, sequer, datados. Elaborados a esferográfica, em diversos tipos de papel, eram visíveis na obra de Jaime a forma humana, de forma frontal e de perfil, como se pode percepcionar nos cinco desenhos expostos quase logo à entrada da mostra, mas também como recorria a figuras antropormóficas (uma simbiose entre homem e animal), animais imaginários, sempre com as muitas linhas da caneta perceptíveis e que fariam a composição final da forma.
O realizador António Reis, que realizou o filme “Jaime” em parceria com Margarida Cordeiro — e, em parte, é graças a esse documentário que Jaime não ficou esquecido — acabou por referir, tal como o catálogo da exposição revela, que Jaime tinha “perfeita noção do espaço a ocupar pelo desenho ou pintura. Como estava limitado pelas pequenas dimensões do papel, muitas das suas figuras-homens têm os braços caídos ou levantados, enquanto as figuras-animais têm a cauda caída. Portanto, as atitudes do desenho estão sempre em função da delimitação do papel, para a qual ele achava sempre uma solução plástica genial. É possível que também estejam ligadas a uma estereotipia emocional, obsessiva e a arquétipos.“, explicava o realizador.
Mas uma das mais valias desta exposição passa, também, por dar ao conhecimento do público mais casos portugueses como, por exemplo, Carla Gonçalves, nascida em 1967, licenciada em arqueologia e bancária, diagnosticada com burnout, e que passou a dedicar-se à pintura em exclusivo. Ou, então, o portuense Daniel Gonçalves, nascido em 1977, também ele auto-didacta, mas que desde cedo teve contacto com a sua veia artística. Muito direccionado pela Op Art, ou seja, a criação de formas de ilusões de óptica, foi o que se pôde observar na exposição através do seu António Variações criado, justamente, através de uma composição de Op Art.
No entanto, tendo em conta que a exposição junta autores que já poderiam ter algum domínio artístico ou do desenho, com casos em que a necessidade de expressão artística brotou já tarde, de forma quase espontânea e após um quadro de diagnóstico de alguma doença mental, é verdade que há alguns factores ou características que se evidenciam ou alinham, mesmo que não se possa falar da existência de uma só arte bruta. Na exposição também se tornava perceptível a forma do corpo humano, o corpo feminino, a cara, a máscara, o retrato e auto-retrato, essencialmente, entre expressões técnicas mais depuradas ou mais simples, sem esquecer a geometria das formas, composições que se entrelaçam e conjungam quase como uma gestalt, tal como se vê no trabalho de Guo Fengyi, que também recorre à temática da mitologia e representação de seres mitológicos chineses, começando, também, de forma auto-didacta e espontânea.
Como relembra o psiquiatra Pedro Morgado no seu texto intitulado, “Existe uma arte bruta?”, “arte é arte. O trabalho daqueles que ao longo da História estimularam, descobriram e valorizaram as produções de artistas com experiência de doença mental grave e, em particular, daqueles que viveram (vivem) em unidades psiquiátricas de forma permanente deve ser destacado. Ainda que portadores da ideia de que se tratava de uma arte diferente, acabaram por trazê-la para a cena da arte (dita) convencional. É hoje muito claro que arte é arte. Isto significa que vale a pena continuarmos a refletir sobre a forma como apresentamos, mediamos e difundimos a arte (dita) Bruta. Ao colocar demasiada tónica na psicopatologia, talvez estejamos a perpetuar o estigma e a marginalização de artistas que são já fortemente marginalizados enquanto pessoas. Conhecedores da história que nos trouxe até aqui e conscientes do papel relevante dos artistas convencionais e dos colecionadores que, sob a capa da arte Bruta, protegeram estas obras, este é o tempo de as trazer aos museus, tratando os seus autores como grandes artistas que são.“
Mas o que é, afinal, arte Bruta? Poder-se-ia definir arte bruta como a arte que nos liga, de forma mais directa e automática às nossas emoções ou ao retrato delas. Há vertentes que a ligam a processos fenomenológicos e, em específico, à própria Op arte e arte concreta, estilos artísticos que, a priori, se pautam pela espontaneidade, pelas formas geométricas, o geometrismo, afastando-se, por isso mesmo, do retrato das formas da natureza, por se acreditar que estas trariam consigo uma contaminação social e ambiental que poderiam afectar a obra, perdendo-se assim o seu processo espontâneo. Por isso mesmo, por exemplo, dar-se-ia muito importância a mandalas, pela forma circular, ou a outro tipo de formas semelhantes. Isso explicaria o facto de pessoas sem educação artística prévia começarem a sua arte de forma espontânea, como uma espécie de necessidade de auto-regulação interna. Mas como arte é arte, esta exposição mostra, acima de tudo, como a arte (dita) bruta não se pode encerrar só nestes contextos, acabando por ser muito mais e albergando muitas formas, não deixando de se ver em todos as obras expressas um convite para esse retrato da alma, essa inquietação e expurgação emocional que a arte exige e tão humana e tão necessária à humanidade e ao ser humano.
Dia 11 de Outubro, o dia escolhido para visitarmos a exposição, o Museu Nacional Soares dos Reis assinalou o Dia Internacional da Saúde Mental com o ciclo de conversa sobre “Arte e Normalidade”, que contou com a participação do médico psiquiatra António Roma Torres, o antigo Diretor da Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar São João; Heitor Alvelos, investigador em Arte e Design e Presidente do Conselho Científico da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, com moderação de Hugo Barreira, docente na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigador do CITCEM (Centro de Investigação Transdisciplinar, Cultura, Espaço e Memória). A conversa era para acontecer por volta das 18 horas, mas houve um atraso devido a um dos intervenientes ter ficado preso, por largo tempo, no trânsito da cidade do Porto. Dia 18, foi a vez de Pedro Morgado ter moderado a conversa “Arte, Direitos Humanos e Saúde Mental – E os Museus?”, com Paula Távora, Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, e membro do Grupo de Trabalho de revisão da Lei de Saúde Mental, e António Ponte, o actual director do Museu Nacional Soares dos Reis.
Nunca é de mais salientar que mostras como estas são sempre bem-vindas e uma mais valia, tendo em conta que relembram isso mesmo, “arte é arte”, e auxiliam no reconhecimento e valorização destes artistas como, também, os trazem para o domínio público.