Entre a cara e os Apple Vision Pro
Em 2018, Steven Spielberg apresentou ao mundo o seu filme “Ready Player One”, baseado num livro com o mesmo nome escrito por Ernest Cline. A história gira à volta de Wade Watts, um jovem totalmente rendido às maravilhas do OASIS, um mundo digital onde milhões de pessoas escapam para uma outra realidade onde têm o seu avatar pronto a jogar e viver uma realidade virtual de ponta.
Acontece que o OASIS não é apenas um jogo, é um modo de vida. Milhões e milhões de pessoas renderam-se à realidade virtual porque o mundo à sua volta, como descreve Wade Watts, deixou de ter pessoas que tentassem resolver os problemas do planeta. Reality is a bummer, como diz a personagem principal. Pudera, o mundo que nos é apresentado por Spielberg mostra cidades feitas de sucata e lixo por todo o lado, quase como Lisboa num dia normal. A realidade já não é sequer um palco para o digital, é uma peça de teatro irrelevante cujo bilhete ninguém quer comprar. O que interessa, a vida, passa-se no virtual, no que aparece diante dos óculos que dão acesso ao OASIS.
A metáfora é óbvia: o OASIS, no filme, tal como na vida real, representa a salvação, a água no meio do deserto, o verde e belo por oposição ao seco e árido — a diversão digital que chuta para canto um planeta a morrer.
O furor que se sente com os novos Apple Vision Pro pode ser sinal de que Margareth Atwood estava certa quando avançou com a proposta de utilizar o termo “ficção especulativa” em vez “ficção cientítica”. Quem tiver oportunidade de assistir o filme perceberá que os vídeos que estavamos a ver de pessoas a usar estes óculos na rua estão a um passo de terem feito parte de um filme do Spielberg. Não por estas pessoas serem ET´s mas por caminharem no limbo entre real e digital enquanto estão a passar uma passadeira.
Receio que o contexto em que estes óculos foram lançados possa permitir um desecanto ainda maior com o que nos rodeia: alterações climáticas, governos autoritários em ascensão, desigualdade social e racial, habitação inacessível.
Durante a pandemia, sentimos a falta de ver na totalidade a cara das pessoas com quem falávamos por causa de uma máscara que nos salvava. Agora, corremos o risco de ter a cara demasiado ocupada com uns óculos gigantes que não nos permitem olhar o outro nos olhos apenas porque é moda. Lembro-me de quando usar óculos era motivo de bullying na escola. “Caixa de óculos”, gritaria algum colega pouco original. Agora é cool e chegará o dia em que não usar óculos será sim motivo de chacota.
Sou da opinião que os avanços tecnológicos fazem parte do progresso e devemos abraçá-los, de modo até a prevenir que o sentimento proibitivo alimente utilizações indevidas. Contudo, sou também da opinião que a atenção é dos bens mais valiosos da nossa época. Todas as empresas big tech lutam com unhas e dentes por migalhas da nossa atenção seja no que for: redes sociais, plataformas de streaming, notícias, jogos. Receio que ter uma bugiganga caríssima na cara a toda a hora possa consumir totalmente esse bem valioso para a nossa vida. A notificação do telemóvel deixou de ser a maçã irresistível cuja vontade de comer temos de mitigar para conseguir trabalhar ou ter uma conversa com amigos sem olhar para um ecrã. Agora, há quem viva já de ecrã colado à cara. A expressão “entre a espada e a parede” pode muito bem ser substituída por “entre a cara e os Apple Vision Pro”. Não há escapatória possível.
A natureza nunca conseguirá competir com os ritmos frenéticos dos algoritmos. A política bem tenta mas sem sucesso. O desporto também não me parece que para aí caminhe. Diria mesmo que nem Usain Bolt ganharia a um algoritmo numa corrida dos 100 metros. “Não consegues vencê-los, junta-te a eles”, dizem os cínicios. Não sei é se conseguimos convencer o planeta a dar os seus passeios à volta do sol mais rápido, a troca de ideias entre adversários polícos passar a ter sempre velocidade 1.5X que nem um áudio de Whatsapp ou o Neymar a de uma vez por todas correr. Simplesmente correr.
Lutar contra o progresso é uma causa perdida e ainda bem. Para a frente é que é caminho. Temos é de ter cuidado para ver se não colocamos o pé no buraco.