‘Aparição’: filmar o infilmável Vergílio Ferreira a viver intensamente até à última gota
Precisamos do cinema de Fernado Vendrell, mas ele também precisa de nos dar o seu cinema. É uma ideia que fica clara depois de vermos Aparição, a sua última entrega após mais de uma década – o seu último filme foi Pele, em 2006 -, seguramente pelos diversos compromissos como produtor e realizador de televisão. Assume agora o risco de adaptar Aparição, do existencialista Vergílio Ferreira, um autor considerado por muitos como ‘infilmável’, depois de um cinema marcado por uma profunda ligação africana – desde logo, abraçada na sua estreia em 1999, em Fintar o Destino, e prolongada por O Gotejar da Luz, de 2002, e Pele.
Aparição é um filme que seduz, mas que também nos deixa água na boca. Percebe-se que Vendrell sabe por onde vai e conhece bem o seu caminho. Se bem que acabe um pouco traído pelo lado mais austero e filosófico do tema. Aqui se narra a chegada de um professor de Língua Portuguesa a um liceu de Évora em plenos anos 50, afinal de contas o percurso do autor quando escreveu o romance Aparição. De resto, essa componente de personagem e autor está bem desenhada nesta trama em que o docente António Soares, numa composição talvez demasiado estóica de Jaime Freitas (em prestação bem diversa da evidenciada em Amor Amor, de Jorge Cramez), embora provavelmente a requerida para este filme. Ele que procura induzir aos seus alunos formatados pelo ensino tradicional do Estado Novo, um pouco talvez na linha de O Clube dos Poetas Mortos, talvez porque que se queria assumir como “despertador para as letras” e acordar da ignorância literária de eventuais “bons selvagens” intimados a “viver intensamente até à ultima gota”.
A seu lado beneficiamos da presença soberana de Victória Guerra, uma atriz cada vez mais indispensável no nosso cinema, igualmente saída do pequeno ecrã mas já bastante amadurecida sobretudo pelo excelente Amor Impossível, com a missão de trocar as voltas e introduzir o elemento do acaso no mundo deste professor demasiado empenhado no valor do conhecimento. O filme está igualmente bem defendido por um naipe de atores secundários de altíssimo nível, como o sempre seguro e avassalador Ricardo Aibéo (também entrou em Amor Amor) ou Rui Morrison, cuja costumeira classe dispensa apresentações. E há até o jovem João Cachola, aqui na segunda prestação no cinema depois de uma participação em As Mil a Uma Noites, de Miguel Gomes.
Para além de todos estes elementos de produção, rigorosamente trabalhados, tal como todo o setting natural da cidade de Évora, afirmada como personagem pelas ruas desertas de pedra e as paredes que conhecem todos os segredos, e captada com dignidade pela fotografia notável de Mário Castanheira, impõe-se naturalmente a narrativa de Vergílio Ferreira. É aqui que os desafios se tornam mais difíceis de superar. No entanto, Vendrell parece optar por um caminho curioso, e que diremos conseguido, trabalhando as personagens de modo a ilustrar o que o verdadeiro autor sentia, no fundo essa “aparição”, a tal personagem que estava dentro dele e que queria dali sair, “a sensação de ter alguém vivo e que era eu”, como terá dito. Talvez por isso, diz a certa altura a personagem de Victória, Acha que eu dava uma boa personagem para uma história, ao que a de Jaime Freitas responde, tínhamos de arranjar uma ação interessante para por tudo em movimento.
É Aparição um filme de produtor? Certamente. Tal como Aparição é um livro de escritor, trabalhado durante a vivência de Vergílio em Évora. No final ouvimos mesmo um Olá Vergílio, quando a personagem abandona Évora e se transforma de novo em escritor. E por isso mesmo dizemos, precisamos mais de Fernando Vendrell, o cineasta.
Artigo escrito por Paulo Portugal em parceria com Insider.pt