Imigrantes? Sim!
Como sabem, o propósito desta crónica é e continuará a ser a partilha, convosco leitores, de exemplos musicais diversificados, eleitos por critérios que correspondem à minha sensibilidade, não fosse eu o autor destes ensaios.
O que me motivou a iniciar este formato (nunca tinha escrito com tanta regularidade sobre música ou, para ser mais exacto, sobre músicas) foi o desejo e a oportunidade de expor alguns dos deslumbramentos que alimentam a minha paixão e mostrar perspectivas musicais provavelmente menos perceptíveis, algo que já fazia com os meus amigos e colegas, mas dentro de uma lógica privada.
Este diálogo determinado por impressões, algumas técnicas, outras estéticas e emocionais, tem vindo a ser feito através da sugestão, do convite à escuta de obras peculiares e estimulantes. Da revelação de pensamentos e conceitos musicais por vezes inacessíveis a um público, eventualmente, menos ligado a este tipo de processos. Por isso é que esta crónica é construída a partir da descoberta da música e não da limitação, da ocultação da mesma.
Por vezes, há acontecimentos exteriores à redacção destes textos que acabam por influenciar a sua direcção. Seja na eleição de um tema, ou na tipologia dos exemplos musicais sugeridos. Até este artigo, consegui resistir à tentação de interromper a celebração musical pretendida, para comentar certos fenómenos preocupantes que têm desenhado a discussão pública portuguesa.
Porém, pela primeira vez, uma série de episódios ruidosos, indecentes e violentos obrigam-me a desviar-me ligeiramente da intenção que inaugurou esta actividade.
Há um partido político em Portugal que assumiu, desde praticamente a sua formação, um posicionamento racista sobre várias etnias minoritárias.
Com a normalização do discurso xenófobo que invadiu o parlamento português, a vergonha alheia que impedia uma série de agressores de se manifestar com veemência, desapareceu, e, do nada, o espaço público ficou contaminado por caixas de comentários rancorosas e hostis. A vergonha alheia que impedia ignorantes de arrotar o seu preconceito e ressabiamento, esfumou-se.
Provocou-se a ilusão de que há um perigo com a emigração em Portugal. Lentamente, o equívoco espalhou-se manipulando as opiniões de muitos cidadãos, alguns deles jovens, alguns deles também migrantes.
Porém, o receio que este partido irresponsável incita, é irrealista. E a ideologia que sustenta a sua atitude está errada.
Trata-se de uma estratégia antiga, aplicada noutros países e noutros contextos históricos, nomeadamente pelo regime nazi: abusar de uma circunstância geral debilitada para semear a sensação de que o quotidiano é instável, caótico e inseguro, de que “eles” (as minorias) são os máximos culpados pela infelicidade de um povo, e de que é urgente a intervenção de um protagonista austero, de mão dura e forte, para endireitar as coisas.
Além das justificações objectivas (e há muitas), já expostas em inúmeras reportagens (ou em comentários, como o de Pedro Marques Lopes, numa edição recente de “O Eixo do Mal”), que explicam as vantagens da presença imigrante na engrenagem económica portuguesa, há uma outra razão essencial para ajudarmos o próximo estrangeiro que decida mudar-se para o nosso país: a nossa responsabilidade intrínseca, enquanto cidadãos do mundo que acreditam na civilização e na humanidade, de receber, conhecer e comunicar com o estranho e com aquele que, pelo menos numa fase de integração, está numa posição mais frágil. E, acima deste pretexto, há um outro ainda mais abrangente: a nossa obrigação ética de preservar e apoiar a vida de qualquer ser humano.
Tenho conhecido, nas peripécias de digressão, inúmeros portugueses que, infelizmente, foram seduzidos pelo partido em questão. Pessoas com passados diversos que sentem na pele o falhanço de um sistema que as deveria ajudar. Todas me explicaram que anseiam por um abanão na espuma dos dias. Todavia, a maioria disse-me que “não há nada mais importante do que a vida humana”.
Destas experiências, atrevo-me a concluir que uma das principais características do povo português é a crença absoluta de que não há nada efectivamente mais relevante do que a vida humana.
Então, para quê este ódio?
O debate deveria incidir sobre como melhorar a integração. Como usufruir e crescer, enquanto país, com a presença destas novas famílias que tal como as portuguesas, acalentam sonhos e esperanças legítimas e honestas. A preocupação deveria ser como tornar a experiência imigrante enriquecedora para todos os envolvidos na relação: os imigrantes e o país anfitrião.
Apresento-vos uma miríade de músicas e músicos imigrantes ou de descendência imigrante, talvez menos conhecidos ou visíveis, mas que estão a contribuir diariamente para o desenvolvimento cultural do nosso país.
O baterista e percussionista brasileiro Carlos César Motta, em duo com o violonista Henrique Neto.
Um belo tema do brasileiro Iury Matias, guitarrista, cantado pela portuguesa Laura Rui.
A voz de Diego El Gavi, cantor cigano de Lisboa.
Eldevina Materula, moçambicana, antiga oboísta solista da Orquestra da Casa da Música e agora Ministra da Cultura do seu país natal.
Parapente700, um duo de música folclórica constituído por Eva Parmenter (concertina) e pelo ucraniano Denys Stetsenko (violino).
Victor Gama, inventor de instrumentos, compositor, nascido em Angola.
Alice Neto de Sousa, acompanhada por uma peça original da violinista Edvânia Moreno.
Martín Sued, bandoneista argentino com a sua orquestra assintomática. Este é um dos projectos mais criativos e irreverentes da nossa cena musical contemporânea.
Katerina L’dokova, pianista e cantora bielorussa, fez um dos melhores discos de 2021.
Um país é um lugar onde um colectivo de imensas pessoas partilha uma ou mais línguas, uma ou mais culturas, uma ou mais histórias e um quotidiano. E o desenvolvimento de um país é provocado a partir de eixos de convergência e encontro que transformam organicamente essas línguas, essas culturas, essas histórias e o quotidiano. É a partilha e o contacto dialogante entre todos os habitantes de um país, independentemente da sua origem, orientação e destino, que assegura um progresso tranquilo e positivo da nossa sociedade, ou seja, do nosso colectivo.
A cultura portuguesa foi e é construída a partir da mistura. Independentemente dos momentos históricos, alguns terríveis, que provocaram esta mistura, nós, portugueses, somos o resultado da mistura.
Não desfrutar e apoiar a presença de imigrantes em Portugal, é como ter acesso a uma enorme biblioteca e decidir não folhear sequer um livro. É como ter acesso a um buffet com as iguarias mais saborosas e não provar um único prato. É como ter acesso à luz, mas optar pela escuridão.