“Na Medida do Impossível”, de Tiago Rodrigues: a war, is a war, is a war
“Na Medida do Impossível”, espetáculo estreado dia 1 de fevereiro de 2022 na Comédie de Genève, é escrito e encenado por Tiago Rodrigues e interpretado por Adrien Barazzoe, Beatriz Brás, Baptiste Coustenoble, Natacha Koutchoumov e Gabriel Ferrandini e faz a sua estreia nacional este mês na Culturgest.
Há coisas que não precisam de nome. Outras têm de ser nomeadas, para que não se esqueçam ou para que possam ser encontradas. Aquilo de que este espetáculo fala não consegue ocupar um nome. Por isso chamaram-lhe “Impossível”. Um lugar de guerra, morte, violência, ruína e aleatoriedade. Hoje ali, amanhã mais perto. Sempre a um “im” de distância do lugar possível onde vivemos, sempre presente nalgum ponto do mundo, mostrando como “o possível se torna impossível tão facilmente”. Partindo de relatos de trabalhadores humanitários contados a quatro vozes, Tiago Rodrigues faz-nos chegar um lado do mundo onde nunca entrámos, mas deixando claro que a fronteira entre o sítio de onde vemos e aquele onde o impossível acontece é instável, movediça, líquida. Essa ambiguidade domina desde logo o tom da encenação, que abre com os atores diretamente de frente para o público, respondendo a perguntas que não se ouvem, mas se deixam adivinhar. Convivem em palco os tempos de entrevistas que já foram feitas, de respostas que foram dadas, do texto que a partir daí se escreveu, do espetáculo que se criou, e de novo o da entrevista. Quando percebemos o percurso das palavras que nos chegam, entramos num ciclo onde início e fim existem sob uma luz difusa. Entrar no Impossível é um mergulho e vir à superfície buscar ar pode acontecer sob a forma de um jardim de hortelã guardado no bolso para que “não se perca tudo e um dia se possa começar noutro sítio”.
As histórias que nos são contadas partilham entre si a distância que criam entre quem conta e quem ouve. Somos empurrados para o fundo da nossa cadeira pelo peso daquilo que não vivemos, mas de algum modo, a encenação poupa-nos a compulsões voyeurísticas, reservando-nos uma violência que pede a nossa presença, pede que lhe entreguemos parte do que é só nosso. Para compreender a dor de uma mãe que perde o filho e se ocupa da bata da mulher que a ajuda, é primeiro preciso entender que não compreendemos. Que o mais perto que estaremos dessa mulher que não está em palco, cuja voz não ouvimos, a cara não vemos, cujas lágrimas somos deixados a compor ao nosso cuidado, cujas mãos habitam apenas em nós e no modo como lhes damos presença, é através da violência própria de cada um, do luto que cada um de nós carrega também por aquilo que não nos aconteceu.
“Uma história? Têm a certeza?” Talvez não. O avançar da peça deixa claro que aquilo que ouvimos não são histórias inventadas para ocupar as duas horas que compõem o espetáculo. São relatos emprestados ao palco, amparados por um pano creme que, modulado por cabos que o suspendem em diversos pontos de tensão e embalado pelas palavras de cada momento, assume a forma de uma tenda com a mesma facilidade com que se revela uma cordilheira de montanhas. Com o avançar do espetáculo, por diversos momentos os atores deslocam-se às laterais do palco para manobrar mecanismos de elevação, descobrindo um percussionista (Gabriel Ferrandini) cujos sons parecem marcar não o tempo de cada história, mas um tempo universal, cuja presença por vezes ignoramos ou esquecemos, mas que não deixa nunca de se fazer lembrar. O bater de um coração? Uma guerra que se trava ao longe? Um metrónomo? No arranjo de precursão inclui-se um gongo que, sem nunca ser manipulado diretamente, emite som pelo contágio sonoro do restante conjunto. As ações reverberam. Com a mesma inevitabilidade com que o gongo é ativado pelo som da bateria, os trabalhadores humanitários reagem à aleatoriedade violenta que habita o “Impossível”. Com isto não conseguirão nunca dar-lhe um fim, esticar as mãos fundo o suficiente para que tudo pare mais do que uns segundos de cada vez. Não mais do que o gongo alguma vez conseguirá impedir o percussionista de tocar.
O marcar de tempo que nos acompanha é por vezes substituído por solos de bateria, alternados com os relatos, que parecem fazer-se ouvir quando as palavras deixam de conseguir dar voz ao insuportável. Será assim que o espetáculo termina, deixando-nos entregues a nós mesmos durante um solo de dez minutos. E do mesmo modo que os atores e a cenografia orbitam em torno de Ferrandini é precisamente nas margens do insuportável que Tiago Rodrigues nos coloca. É esse o centro de gravidade do espetáculo. A força desse centro distorce o tempo que o rodeia, desfiando duas horas em vários dias, em vários anos.
E quando finalmente se grita, é um grito emprestado. Um homem que grita pela vez de um outro na voz que lhe deu numa carta que lhe escreveu. A quem pertence esse grito? Apesar do horror com que tivemos de conviver, só se faz ouvir já a meio do espetáculo, envolto em tantas camadas de atribuição, podemos muito bem reclamá-lo para nós.
Este espetáculo foi assistido em formato online através da plataforma RTP Palco, a 19 de abril de 2023, e esta crítica foi originalmente publicada na revista Sinais de Cena, sendo aqui publicada com a devida autorização da autora.