Breve retrato de como é ser jornalista em Portugal: desde jovem até o jovem já ser velho
Se há algo bem familiar à minha geração é este sentimento de que temos de andar sempre contra algo, ou então, se andamos com as sapatilhas rotas, desgastadas, com o alcatrão da estrada esburacada quase a tocar no poliéster da meia, ainda temos de agradecer por isso porque, para começar, nem àquela estrada esburacada devíamos ter direito. Ora digam lá se há algo mais português? Para ser bem devíamos andar no meio de pedregulhos afiados ou, então, caso nos calhasse uma estrada de terra batida, andar sempre à chuva para nos sujarmos na lama e sabermos “o que faz bem à tosse”. As gerações mais velhas acham que esta asserção vem de uma pessoa mimada, eu sei, e têm a sua razão, tendo em conta o contexto da vida que levaram, e isso também precisa de ser respeitado.
Para começar, conheceram um país em que nem todos podiam ter as suas sapatilhas — se falarem sobre isto com os mais velhos, vão conhecer histórias de pessoas que tinham de ir para a escola primária literalmente descalças antes de 74, para não falar da “famosa” sardinha que tinha de dar para 5 ou 6 bocas famintas — e o resto é história. Portanto, eles sabem o que é ter bolhas e calos nos pés. Aqueles que tinham dinheiro para umas sapatilhas bem acolchoadas, fofinhas e à prova de lama permaneceram por cá e, mais deslize ou menos deslize, também não é que se possam queixar que não tenham dinheiro agora para calçado. Já os restantes emigraram e tiveram de se sujeitar aos “bidonvilles” da vida ou, então, ficaram por cá e tiveram de se agarrar ao que havia, maioritariamente à agricultura, nem que fosse de subsistência.
“No meio da crise mundial, europeia, e nacional, de 2008, os “millennials” foram os primeiros a entrar de supetão não só num mundo em crise, mas em completa revolução tecnológica e laboral em que tudo mudou e sim, nada foi fácil porque a estabilidade foi-nos tirada por debaixo dos nossos pés e ficámos sem chão.”
Houve também uma altura em que estava muito em voga mandar os “calões” para as obras, principalmente nos anos 90, e não é segredo nenhum que, nessa década, foram feitas grandes campanhas de sensibilização para se acabar com o trabalho infantil, uma vez que as estatísticas portuguesas nesse aspecto não nos eram muito abonatórias, principalmente no quadro da União Europeia. Mas meus caros, há que entender isto, a partir da chamada Geração X, o objectivo principal passou a ser a construção de um país além de modernizado, humano e aberto para lá da ruralização fechada dos tempos da ditadura. No meio da crise mundial, europeia, e nacional, de 2008, os “Millennials” foram os primeiros a entrar de supetão não só num mundo em crise, mas em completa revolução tecnológica e laboral em que tudo mudou e sim, nada foi fácil porque a estabilidade foi-nos tirada por debaixo dos nossos pés e ficámos sem chão.
Havia outros sonhos e não é que a agricultura esteja também de muita boa saúde como sabemos. Assim como se fizermos o exercício de ir pesquisar as notícias da época, também ficamos a saber que não era boa ideia mandar ir trabalhar para as obras porque o sector também não se recomendava. Por isso, de alguma forma, começámos a habituar-nos a esta ideia de resistir sempre a algo, ou a ter de avançar, de forma constante, em oposição a alguma coisa, o que pode trazer força, é verdade, ou desgaste e cansaço. “Mãe, Pai, vou para Humanidades!”, “Hum, de certeza que não queres ir para Cientifico Natural?”, “Mãe, Pai, vou para Ciências da Comunicação”, “Hum, então não será melhor seguires Publicidade ou Relações Públicas?”, “Mãe, Pai, vou para Jornalismo”, “De certeza que não queres ser youtuber ou influencer? Sempre podias ganhar com a publicidade extra e tal”, “Não”, “Hummm, olha ali aquela ponte que é tão bonita”.
E assim começámos a caminhar já com a certeza, de antemão, de que a estrada escolhida não era a ideal, de que não iria ser nada fácil e poderia atrasar o percurso normal da nossa vida, e que cada passo dado, principalmente no meio do turbilhão da crise, não iria abrir portas nem tão pouco janelas, pelo menos para quem ficasse dentro deste retângulo. Estávamos a aprender a caminhar num mundo novo e sim, os recursos que a “Geração Z” começou a utilizar já desde o início da adolescência, a geração Millennial aprendeu a utilizá-los já no fim ou, então, no início da vida adulta.
Mas o jornalista enquanto jovem ainda tem o mundo pela frente, pensa que o percurso ainda pode ser diferente, vai ser autor de artigos que vão mudar o mundo e está imbuído da certeza de que é estritamente necessário e que o que escreve tem de ser levado em conta. É então que leva a primeira bofetada de luva branca quando se entra pela primeira vez numa redacção praticamente desfeita, com quatro ou cinco pessoas na secção que se escolhe, e não é que se possa dizer que essas quatro ou cinco pessoas estejam sempre de muito bom humor para aturar quem chega pela primeira vez. Aliás, este é um dos principais problemas, estagiários sem a orientação devida ou sem orientação nenhuma, portanto, da próxima vez que virem um texto mal escrito pensem nisto.
“A instituição de ensino superior e o local onde se está pode ditar o futuro, caros estudantes de comunicação. Não só no jornalismo, mas de forma geral.”
Também é possível que haja quem oriente a sério, é verdade. Mas se for o caso, talvez seja melhor começar a poupar para um bom psicólogo e estar preparado para o embate de estar tudo péssimo por causa de uma gralha, ou esperem, pedir à família para pagar um porque é muito provável que nesta fase se trabalhe de graça e goste, porque pronto, é para o currículo. Caso se trate de um estagiário meliante sem um tusto e cuja família não tenha um cêntimo furado para um bom profissional de saúde mental, então mais vale deixar as lágrimas caírem sobre a fronha da almofada enquanto se passa a noite em claro a pensar no que correu mal — ao menos sempre tem o seu sentido poético e dramático, não é verdade? Para quê haver um entremeio quando se leu num estudo de 1820 que há, realmente, uma ligação efectiva entre o evoluir e melhorar e um berro: nunca falha e prepara para a vida. Não nos podemos esquecer é de agradecer depois.
Uma das terminologias usadas para descrever um jornalista é o chamado “jornalista canivete suíço”. É muito moderno e actual porque o jornalista que é jornalista tem de fazer tudo: escrever, gravar, editar vídeo, áudio, fazer o mortal invertido e o encarpado tudo junto enquanto se conta até vinte em mandarim e se dança o tango, e isto tudo sem a garantia de que o trabalho vai ser visto ou valorizado. Mas claro que é já nesta altura, quando o jornalista estagiário é promovido a “canivete suíço”, que se começa a notar a seguinte distinção: os canivetes suíços certificados, e os canivetes suíços “tarefeiros” de contrafacção com o plástico já a derreter. Geralmente, e há excepções, quem está em Lisboa ou no Porto será um canivete suíço com a oportunidade de ter acesso não só aos meios de comunicação principais, à elite da área, como ao que se passa. Terá condições para, pelo menos, fazer trabalhos que interessarão mais aos órgãos de comunicação principais, porque no país só Lisboa e Porto interessam.
Mesmo a pagar-se um rim por um arrendamento e a ser-se freelancer, sempre se pode ser visto e aparecer importa, são as prioridades que contam. Mas quem tirou o curso numa universidade do interior, já será um canivete suíço daqueles com o plástico a desfazer-se, relegado para um jornalismo regional sem meios, sem grande independência para chegar ao que interessa, e com a possibilidade de evolução e progressão comprometida. Sim, a instituição de ensino superior e o local onde se está pode ditar o futuro, caros estudantes de comunicação. Não só no jornalismo, mas de forma geral. Não foi ao acaso que os últimos censos em território português, em 2021, demostraram que mais de “65% do território nacional contém apenas 20% da população, relembrando que cerca de 50% dos residentes em Portugal estão em 31 dos 308 municípios, maioritariamente nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto”, segundo os dados do INE. Se fizermos uma ponte com a situação actual do ensino superior, os dados deste ano indicaram uma quebra de colocados (procura) nas instituições do interior, com maior foco nos Politécnicos de Bragança e da Guarda e na Universidade de Évora.
Mas vamos ao ponto principal: o jornalismo trata-se de uma classe completamente dividida e sem grande renovação social no que diz respeito a quem ocupa os lugares cimeiros, sem esquecer que vai beber a um grande pecado capital, o ego. Qualquer tipo de trabalho que dependa de publicação ou exposição pública lida com o ego e, no caso do jornalismo, o jornalista tem de aprender não só a lidar com o seu próprio ego, como tem de saber lidar com o ego, muitas vezes acompanhado de insegurança, das pessoas com quem fala, porque tem a responsabilidade de lidar com a imagem de terceiros e isso requer não só todo o cuidado, como o maior respeito. Ante a delicadeza necessária que esta questão em específico exige, há ainda o desafio de encontrar o equilíbrio entre esse mesmo respeito e a garantia de que a liberdade de imprensa não fica comprometida quando, por desconfiança, há assessores que querem ver as perguntas primeiro para depois se decidir se uma entrevista ou conversa é concedida. Muitas vezes o nosso trabalho é encarado como promoção e há que saber explicar que o objectivo não é, propriamente, esse. Tudo isto provoca não só noites mal dormidas, como uma preocupação constante que, por vezes, pode transformar-se num traço de personalidade nosso que, provavelmente, vai ser preciso aprender a domar.
O trabalho jornalístico não depende só, exclusivamente, do jornalista, ao contrário de uma qualquer outra profissão. Depende de contactos, de fontes, das respostas, de tempo, de disponibilidade e, por vezes, há bons trabalhos que são abortados porque as respostas não surgem ou demoram a surgir. Quem está numa posição de destaque conseguirá um melhor acesso às fontes e disponibilizará melhor informação, quem não está tem a vida dificultada. Há alturas em que se pode enviar cinco e-mails de seguida e são cinco respostas que não chegam. Isto faz crescer a ansiedade porque coloca o trabalho em causa como coloca uma maior pressão por cima dos nossos ombros. Mas temos de ter responsabilidade ética e, por isso mesmo, numa transcrição de uma entrevista, por exemplo, pode-se passar imenso tempo em torno de uma frase para se saber se está bem transcrita e corresponde à verdade, quando com os mecanismos de hoje (leia-se Inteligência Artificial) uma entrevista poderia estar transcrita de supetão em 30 minutos. Mas mesmo assim há sempre algo que pode falhar, nem que seja uma pequena troca, um pequeno lapso, uma pequena distracção que, na verdade, nunca é só isso. Quando chegamos ao fim do tratamento de uma entrevista de 40 minutos ou da revisão de uma reportagem de nove, dez ou mais páginas e, no meio de todo esse trabalho, é só essa falha que salta à vista pondo em causa a imagem do jornalista perante os seus leitores ou o seu profissionalismo, isso também pode destruir a auto-confiança, tendo em conta que um cérebro cansado falha mais e, de forma racional, é impossível contornar os erros que as partidas do nosso cérebro nos pregam quando se chega ao fim de um trabalho extenso. Não é ao acaso que o jornalismo, quer pelo trabalho em si, quer pela precariedade do ofício, quer pela consciência de que o seu trabalho vai ser público, é uma das profissões mais susceptíveis a problemas de saúde mental: sempre num estado de ansiedade, incerteza e cansaço que a curto e a longo prazo deixa mazelas.
Este é o retrato do jornalista quando jovem até o jovem já ser velho, sempre com a sensação iminente de que começou numa estrada que não deveria ser para si, a lutar sempre tal como Sísifo lutou com a sua pedra, para fazer o seu trabalho e aceder à informação. Não é um mundo propriamente fácil, mas fazemos os possíveis para endurecer a pele e, mesmo assim, dizer com todo o espírito de empenho: “estamos aqui e vamos continuar”.