“Histórias de Bondade”, de Yorgos Lanthimos, ou a incapacidade de não agradar a ninguém
Este artigo pode conter spoilers. “Histórias de Bondade” (“Kinds of Kindness”), de Yorgos Lanthimos, estreia nos cinemas portugueses a 4 de Julho.
Nem seis meses passados desde o lançamento em Portugal de “Pobres Criaturas”, ressaca sobre o filme e o seu frenesim sexual surrealista ainda a pairar, os seus estimados cineasta e protagonista, Yorgos Lanthimos e Emma Stone, desfilam pelo vermelho dos tapetes do Festival de Cannes para apresentar a sua nova e terceira longa-metragem juntos, “Histórias de Bondade” (“Kinds of Kindness”). Quatro óscares e 100 milhões de dólares na bilheteira mundial depois, afirmar que “Pobres Criaturas” fora um sucesso é uma subestimação tão fálica quanto o conteúdo do filme. O artista grego progressivamente próximo de ser o “Yorgos” mais reconhecido em detrimento do iogurte e Emma Stone cada vez mais isolada no topo do pódio entre as atrizes da sua geração. Logo, no âmbito do conteúdo da nova película em questão, é de uma característicamente chocante surpresa a antagónica viragem assumida em “Histórias de Bondade”.
Se “Pobres Criaturas” e o filme a esse prévio, “A Favorita”, representam uma aproximação do absurdismo satírico de Lanthimos a um apelo mais comercial e popular, “Histórias de Bondade” é uma reversão total e talvez aniquiladora desse caminho trilhado. Quinze anos antes de competir para a Palma de Ouro, estava o grego também em Cannes mas relegado a vencer a categoria dos novatos, Un Certain Regard, na sua derradeira apresentação ao mundo. Estabelecer paralelos sobre a vitoriosa película, “Canino”, retrato de três jovens totalmente isolados do mundo fora da propriedade da família desde nascença, é árdua tarefa. Reúne a brutalidade crítica de “Salò”, de Pier Paolo Pasolini, ou “Brincadeiras Perigosas”, de Michael Haneke, com o sentimento distópico e dadaísta de “A Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick, tudo sediado num expressionismo mecânico retirado do cinema de Robert Bresson. O seu mais recente filme representa um retorno a este minimalismo alienígena só que tripartido em narrativas distintas, com duração de quase três horas e a maior escala em guionismo da filmografia.
Premissa central comum nestes três contos de distopia contemporânea, “Histórias de Bondade” lida com sacrifício humano de tão radicais formas que fariam Mel Gibson e os mais ávidos fãs de “A Paixão de Cristo” corar em submissão. A necessidade por compreensão, pertença, carinho, calor, enfim… amor numa realidade desumanizada. Réstias de humanidade a operarem num contexto antagónico. Na interpretação das diferentes personagens repete-se o elenco composto por Emma Stone, Jesse Plemons, Willem Dafoe, Margaret Qualley, Joe Alwyn, Hong Chau e Mamadou Athie. A primeira história incide sobre a relação para além de paterna entre um empregado e o seu patrão, incrível laço que se vê sob ameaça face a um bizarro e perigoso recado do superior. De seguida, dá-se o retrato de um polícia que enfrenta um trágico e pesado luto sobre a sua esposa bióloga-marina que se perdera no mar, quando recebe à porta uma apaixonada mulher, idêntica em aparência e identidade, mas que não é bem a desejada ninfa. Por fim, a película termina em torno de um culto que acredita na contaminação universal da água corporal da população humana, seguindo uma devota membro em incessante busca por uma pessoa capaz de ressuscitar os mortos. Ainda, a única figura presente nos três contos é o misterioso R.M.F (Yorgos Stefanakos), sujeito que afigura nos títulos apesar de nem uma palavra ditar.
A ostentação visual e sonora de “Pobres Criaturas” passa por um total simplex, meticulosa restrição no recurso às ferramentas cinematográficas e estímulos sensoriais a principal bandeira técnica. Fotografia de planos rígidos, cerrados ao chão, e cenários maioritariamente fechados protagonizam uma claustrofóbica janela. A saturação nas cores da lente e cenários, carregadas de fulgor, auxiliam na atribuição de uma qualidade quase onírica à fria intimidade da atmosfera. A banda-sonora segue o mesmo austero padrão, com composição repetitiva e ausência de esforços melódicos, no geral. A montagem também não ultrapassa o embaraço coletivo, com foco apenas nos básicos da consistência e fluidez em torno de um ritmo desacelerado. Tal antipática apresentação técnica faz com que “Histórias de Bondade” seja à partida mais difícil de penetrar que os esforços recentes mais teatrais do cineasta. É feito do espectador nada mais que um voyeur. Porém, virtude máxima da abordagem, quando surge exceção à regra, um específico espaço para a música soltar sentimentos, as cores exibirem novos pigmentos ou a fotografia descongelar os seus membros e ganhar movimento, a fome por estímulos transforma simples exaltações em banquetes, a tela brilha. Esforço recompensado, uma pessoa vê-se totalmente entranhada, sob um feitiço de esfomeada hipnose.
Atuando sobre um minimalista palco sem expositivas feições que desvirtuem e banalizem significados, a substância consegue executar a sua dança sem tréguas sobre o público. Interpretação individual navega por uma maré abstrata em reflexão e emoções. Depois de se ter baseado nos guiões de Tony McNamara para “A Favorita” e “Pobres Criaturas”, Lanthimos volta à escrita juntamente com o seu parceiro de longa-data, Efthymis Filippou, dupla que dita logo à partida a ortodoxia do filme. Premissa, narrativas e caracterização que resultam pela crescente subversão das expectativas do espectador, num alucinante espectro cujos limites são rapidamente quebrados mas, ainda assim, a dose vai-se acumulando. A criatividade na bizarria é tal que torna-se difícil tapar ou até deslocar os olhos da tela por instantes que sejam, tal como com um nefasto acidente na autoestrada. A simplicidade mecânica, quase robótica do diálogo atribui acrescido fulgor ao caráter extraterrestre de tudo. Pegando no manual antiteatral bressoniano sobre atuações, o elenco executa com espontânea credibilidade as diferentes personagens mortas-vivas, desprovendo de emoção ou sequer reações naturais nos seus maneirismos, salvo nos cruciais momentos. Jesse Plemons e Emma Stone especialmente extraordinários nos limites que cumprem e credibilidade que garantem. No lugar do condutor, a direção do cineasta utiliza o minimalismo rígido para colocar combustível no tom áspero, gélido que quase queima, e na sensação forânea da atmosfera, perturbante até vibrar a espinha, enquanto de minucioso e fixante modo vai contando as suas histórias e com subtileza expondo as suas ideias. Tudo isto numa rebelde e singular mestria absurdista.
Observando à superfície, como “Histórias de Bondade” faz de tudo para não agradar a ninguém, atirando farpas ao espectador enquanto esconde o seu organismo, muitos apontarão que o filme não passa de uma obra vazia de mau-gosto. Porém, com a abertura e paciência devidas, encontrar-se-á a devida recompensa. É na peculiar forma como processa romance e ternura que a película obtém o seu significado. Dos simples momentos como o polícia que chora lágrimas de saudade enquanto visiona a sua esposa num vídeo caseiro de uma orgia com amigos, da cultista que entra à socapa na casa da sua família de que fugira para purificar a cama da sua querida filha, à beleza trágica dos atos conclusivos, é possível entrar em contacto com um envergonhado coração cinematográfico que bate e bombeia com fulgor e fúria. Neste filme vive um ser cínico e antissocial mas que, lá no fundo bem resguardado, conserva uma profunda paixão pelo pathos humano, a capacidade de amar e a necessidade em ser amado.
Fundamentalmente, no nosso contemporâneo da cultura do trabalho, do consumismo, da objetificação e atomização que nos vai arrastando e reduzindo às limitadas máquinas do filme, romance e raciocínio desencorajados, produzir e acumular como objetivos únicos, o espírito e expressão persistem. Mesmo num contexto desumanizado, apesar de enfraquecida e com brutais limites para navegar, a nossa alma, aquilo que nos faz humanos, continua a operar. No limite, “Histórias de Bondade” serve de emancipatório grito. Isso ou simplesmente goza com as nossas caras, o que também merecemos.