Entrevista. Lars Von Trier: “a expressão ‘persona non grata’ fica-me bem”
Esta é a reprodução integral da entrevista que Lars von Trier nos concedeu, no dia em que foi considerado banido do festival de Cannes pelas declarações sobejamente conhecidas e comentadas. Uma entrevista inicialmente publicada no Jornal Sol e posteriormente reproduzida no site c7nema, em 2011. Numa altura em que Von Trier prepara as malas para regressar à Croisette fazemos a actualização dessa entrevistas onde nos disse: “provavelmente nunca mais cá venho”. Felizmente, não será assim.
A entrevista reveladora de Lars von Trier executada ainda a ‘quente’ depois da polémica instalada após declarações do cineasta em Cannes.
“A expressão ‘persona non grata’ fica-me bem”
Lars von Trier apresentou em Cannes Melancolia, um filme sobre o fim do Mundo. Mas logo na conferência de imprensa que sucedeu à apresentação da imprensa caiu na esparrela por declarar “simpatizar com Hitler”. Afinal foi mesmo o céu que lhe caiu na cabeça, a culminar com a expulsão do festival que o declarou ‘persona non grata’. Horas de depois, o frágil e nervoso dinamarquês explicava o alcance das suas palavras, mas também como o filme foi uma forma dele próprio lidar com a sua própria depressão. É difícil avaliar a ingenuidade infantil das suas palavras, que parece aliada a uma fragilidade quase ternurenta. Talvez a resposta seja como sucede nos seus filmes, em que natureza crua parece alimentar-se de uma necessidade quase irreprimível de chocar. Afinal de contas, um desequilíbrio controlado pelo homem que se diz muito satisfeito por ter tatuado a palavra ‘fuck’ nos dedos da mão direita e que está determinado a fazer um filme pornográfico.
Aquele estava a ser um longo dia para o dinamarquês irascível. A apreensão inicial sobre a realização ou não da entrevista dissipou-se ao chegar ao bucólico hotel Le Mas Candille, em Mougins, no monte sobranceiro a Cannes, quando a publicista confirmou que Lars estava bem disposto e faria as entrevistas. Oportunidade então para ouvir a versão dele. Bem disposto estava ele, gracejando com o assistente que o maquilhava. “Não, não vamos filmar nada; ele é que me quer tocar, porque é homossexual”. Liz, diligente a publicista, ia ponto água na fervura: “Lars, já temos problemas que cheguem…”. Mas ele não largava. “Alguns dos meus melhores amigos são homossexuais”. E acrescentava. “E judeus”… Estava a pedi-las não? Na verdade, era difícil de não encarar von Trier como um ‘velho amigo’, pois estava ainda bem presente a entrevista relevadora que nos dera dois anos antes, a propósito de Anticristo, onde o próprio nos desarmou diante a forma aberta e frágil – quase em jeito de terapia – com que abordou a sua depressão, os problemas de álcool e outras dependências. Já no final, quando Liz o tentava parar, Lars insistia: “Mas eu já fiquei amigo dele...” Amigos, amigos…
Não deixa de ser um dia estranho para este encontro. Está de certa forma arrependido do que se passou?
Na verdade, acho que teria sido mais sério se tivesse sucedido com o Mel Gibson, pois não tenho a menor dúvida que ele sim, tem problemas com os judeus…
(risos) mas excedeu-se um pouco, convenhamos…
Foi apenas o local errado para fazer estes sarcasmos. Foi ridículo. E mal interpretado. Claro que não simpatizo com o Hitler. É claro que consigo ver nele o ser humano, que até consigo perceber. Mas detesto o que ele fez ao mundo. O Holocausto, como todos sabemos, foi um dos crimes mais bárbaros cometidos contra a Humanidade durante muitos e muitos anos. Que não subsistam dúvidas quanto a isso. Se eu tivesse dito estes sarcasmos na companhia de amigos meus, a reacção teria sido completamente diferente. A única coisa que posso dizer é que tenho um pouco de receio de conflitos (risos). No sentido de que quando estou numa conferência de imprensa, em que ninguém parece ter nada de novo a dizer, eu começo a fazer uma performance.
Como avalia a decisão do festival o declarar ‘persona non grata’?
É uma pena, porque sou amigo do Gilles (Jacob, o Presidente do festival) e do Thierry (Fremont, o delegado-geral). São bons amigos e fico com pena por isso. No entanto, acho que a expressão ‘persona non grata’ fica-me extremamente bem (risos). Fico muito contente por isso. Vejo-a quase como um título. A parte da minha família que não gosta dos meus filmes e do meu comportamento, ficará muito contente com este título.
Mas o qual acha que vai ser o seu futuro aqui em Cannes?
Acho que nunca mais cá venho. Se vier acho que terei de ficar uns 100 metros de distância do Palais (risos). Acho que não terá mais utilidade vir a Cannes.
Calculo que haverá concerteza outros festivais que gostarão de o receber…
Sim, há outros festivais. Se calhar até posso obter um ‘non grata’ de todos eles. Mas o ‘non grata’ teria sido propositado se tivesse sido por uma provocação. Foi apenas por me deixar ir com as palavras…
Acha que esta expulsão poderá afectar a distribuição do seu filme?
Provavelmente.
Um boicote nos Estados Unidos não seria bom para si…
Pois, isso poderá acontecer, mas eu não sou político nem estadista. É assim: ou eu falo com vocês ou não falo! Porque quando falo com a imprensa, digo o que sinto. Isso poderá ser extremamente ingénuo da minha parte, mas é também assim que eu trabalho.
Já agora, explique melhor a sua relação com a Susanne Bier, que parece ter ficado afectada com as suas declarações.
Frequentámos juntos a escola de cinema. E costumava trabalhar na minha companhia, a Zentropa, até que se despediu. Mas eu acho que ela sempre foi bem tratada, mais até do que eu. Acho que toda a gente tem medo da Susanne Bier, o que não deixa de ser justo. Mas isso não tem nada a ver com o facto dela ser de origem judaica. Todos os meus filhos têm nomes judeus. Só tenho a lamentar que muita gente tenha compreendido essas declarações de uma forma errada. Sobretudo porque fui suficientemente estúpido ao falar assim para o mundo, como se falasse com o meu melhor amigo.
Quando conversámos, há dois anos atrás, a propósito de Anticristo – perdoe-me dizê-lo -, não parecia estar muito bem do ponto de vista psíquico. Estava um pouco deprimido. Mas agora parece o oposto, muito mais confiante…
Sim, o problema é que nessa altura estava a beber muito e não tinha muita energia. Agora não estou a beber e tenho saúde. Talvez seja por isso que acontecem estas coisas. Siga o meu conselho: nunca deixe de beber, por favor. Pode ser perigoso…
(risos)… a escolha de Kirsten Dunst para Melancolia é interessante, porque, aparentemente, também ela teve a sua depressão há alguns anos.
Sim é verdade, eu sei.
Isso teve alguma influência na sua escolha para este filme?
Não, na altura eu não sabia disso. Ela só me contou depois. O que acabou por facilitar as nossas discussões sobre o filme. Acho que ela acabou por incorporar muita dessa aprendizagem no filme.
Pode elaborar um pouco o caminho que percorreu de Anticristo até Melancolia? Acha que poderemos encontrar aí alguma relação, uma continuidade?
Alguém me disse que eu era um realizador muito experimental, porque ninguém era capaz de colocar um screen saver do Windows no meio de um filme (refere-se à imagem do planeta gigantesco a aproximar-se).
Pois, isso também foi dito a propósito do filme do Terrence Malick (A Árvore da Vida) que parecia um screen saver… (risos)
Sim, se calhar usámos o mesmo screen saver (risos)…
Enquanto realizador, como vê este filme? É um bom filme ou mais uma provocação?
Note, porém, que as provocações têm sempre um pouco de verdade. Quando escrevo um depoimento enquanto realizador, se tiver alguma dúvida deverei inclui-la. Já vi o filme várias vezes e tenho a vergonha de dizer que me parece um pouquinho comercial… (risos)…
Eu gosto deste conceito, mas nunca pensei que fosse fazer alguma coisa nesse sentido. Normalmente fico muito contente com o que faço, depois é que me começam a surgir dúvidas…
Sempre é verdade que vai fazer um filme pornográfico? Ou é uma outra provocação?
Não, não, vou mesmo fazer um filme porno.
E como se irá chamar?
O meu próximo filme vai chamar-se The Nymphomaniac. Vai ter uma versão softcore e outra hardcore, para efeitos de financiamento. E vai ser extremamente longo.
A versão hardcore?
Vão ser ambas longas, porque haverá longas conversas pelo meio, como nos clássicos franceses (risos). Mas não será apenas um filme porno. Será um filme metade porno e metade filosofia.
Mas está a contar com a Kirsten Dunst como disse na conferência de imprensa?…
Oh não, com ela não, mas com a Charlotte (Gainsbourg) tenho a certeza que sim. Tenho quase a certeza que a Charlotte participará. E o Willem Dafoe também. Aliás, já me ligou a dizer que queria estar no meu filme porno.
Em todo o caso, o Lars não é alheio à pornografia, pois já no filme Idiotas existiam cenas de sexo explícito…
Sim, é verdade, mas neste caso será um filme sobre a descoberta erótica de uma mulher ao longo de 50 anos.
Não posso deixar de reparar na tatuagem que tem no punho (com as letras ‘fuck’ tatuadas nos dedos). Acha que falta alguma inscrição na outra mão?
Não vou colocar nada na outra mão, pois não é nenhuma referência a A Noite do Caçador (em que Robert Mitchum tem tatuado nos dedos as palavras love e hate). Esta é retirada de Indian Runner (União de Sangue, de 1991).
Ah, sim a estreia de Sean Penn na realização…
Por acaso, liguei ao Sean Penn a perguntar-lhe o significado da tatuagem, mas ele disse-me que tinha sido algo que o Viggo (Mortensen) tinha encontrado.
Está contente com ela?
Estou muito contente por a ter feito. É claro que os meus filhos estão muito envergonhados com isto.
Quando decidiu fazê-la? Foi em alguma noite de loucura?
Não, não, nada disso. Há muito tempo que pensava em fazer algo exactamente assim. É estúpido fazer uma tatuagem onde não a podemos ver.
Não deixa de ser curioso ver essa tatuagem depois de Anticristo….
Sim, mas eu tive uma discussão com o Gilles Jacob, antes de tudo isto acontecer. E por ele ter escrito no seu livro que eu já não era um rebelde. Então mostrei-lhe o meu punho. Acho que estava a tornar-me numa pessoa demasiado normal…
Sim, mas neste filme quer destruir o mundo…
É verdade, mas isso não é o suficiente. Para mim, não é tanto um filme sobre o fim do mundo; é mais um filme sobre um estado de espírito. Eu tenho passado por alguns estados de melancolia na minha vida.
Uma conferência de imprensa para a História
Hoje em dia, quando se ‘googla’ o nome de Lars von Trier e se abre o respectivo link da Wikipedia, já vem actualizada a ‘barraca’ que o próprio montou no Festival de Cannes. Foi assim que tudo se passou: ao ser questionado por uma jornalista do The Times sobre a sua herança alemã, o aspecto gótico do filme e um certo interesse pela estética nazi, o dinamarquês nunca mais se calou. Foi exactamente isto o que ele disse:
“O que posso dizer é que durante muito tempo achei que era judeu e era muito feliz sendo judeu. Depois apareceu a Susanne Bier e, de repente, já não era judeu. Ou se fosse, seria de segunda linha, pois há uma espécie de hierarquia entre os judeus. Seja como for, eu queria ser um judeu, mas descobri que afinal era um nazi. Isto porque a minha família era alemã, o que também me deu algum prazer (risos). O que posso dizer… Eu entendo o Hitler. Acho que ele fez coisas erradas, sem dúvida. Mas consigo vê-lo no final sentado no seu bunker… Quero apenas dizer que compreendo o homem. Não é o que poderemos chamar um tipo bom, mas compreendo-o bastante bem. E até simpatizo um pouco com ele. Mas, atenção, não sou a favor da 2ª Guerra Mundial! E não sou contra os judeus, nem mesmo contra a Susanne Bier. Isso também era uma piada (risos)… Sou até muito a favor dos judeus – quer dizer, nem tanto, porque Israel “is a pain in the ass!” Mas…. como é que consigo sair desta frase?… Quero apenas dizer sobre arte do filme. Gosto muito do Albert Speer. Ele foi um dos bons filhos de Deus… Mas tinha talento, que poderia ter usado durante… Ok, sou um nazi!”
Entrevista de Paulo Portugal em parceria com Insider.pt