Entrevista. Alexandre Quintanilha: “O conhecimento é o grande pilar da democracia”

por José Malta,    8 Agosto, 2024
Entrevista. Alexandre Quintanilha: “O conhecimento é o grande pilar da democracia”
Alexandre Quintanilha / Fotografia de Rui André Soares – CCA
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Alexandre Quintanilha é um dos cientistas de maior renome em Portugal. Nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo, Moçambique, licenciou-se em Física Teórica em 1968 na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul, onde também se doutorou em Física do Estado Sólido em 1972. Físico de formação, foi na área da Biologia onde consumou grande parte da sua carreira de investigação. Trabalhou durante quase duas décadas na Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos onde foi professor de fisiologia e biofísica. Entre 1983 e 1990, foi director assistente no Laboratório Nacional Lawrence, na Divisão de Energia e Ambiente, e entre 1987 e 1990 dirigiu o Centro dos Impactos da Tecnologia na Atmosfera e Biosfera. 

Vive no Porto desde 1990 e é professor catedrático jubilado do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS). Fundou e dirigiu o Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC), e foi presidente do Instituto Nacional de Engenharia Biomédica (INEB). Após a sua jubilação, em 2015, foi eleito deputado à Assembleia da República pelo círculo eleitoral do Porto, na XIII, XIV e XV legislaturas, como independente pelo Partido Socialista. Presidiu também ao grupo responsável pela implementação do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) da Universidade do Porto, onde nos recebeu no passado dia 19 de Julho.

Começou por estudar Engenharia Civil, licenciou-se e doutorou-se em Física, passou ainda pela Filosofia e pela Literatura Francesa e Alemã, mas foi na Biologia onde encontrou a sua grande paixão. Esta interdisciplinaridade entre diversas áreas, que culminou com a Biologia Molecular, foi um mero acaso ou teve alguma influência do seu pai, Aurélio Quintanilha, ter sido um dos mais influentes botânicos e geneticistas em Portugal no século XX?

Não sei se consigo responder de uma forma muito exacta à pergunta. Acho que o meu pai teve muita influência sobre quem eu sou, mas a minha mãe também. A minha mãe era uma pessoa que não tinha uma educação universitária, mas era muito pragmática. Viveu a adolescência nos anos 20 do século passado em Berlim, onde nasceu e cresceu. Berlim era a capital do mundo, culturalmente, cientificamente e socialmente. Era uma república depois da Primeira Guerra Mundial e antes de chegar o Senhor do Bigodinho Fininho [Adolf Hitler]. Berlim era também o centro das atenções em vários domínios das artes. O expressionismo alemão, a arquitetura com a Bauhaus, o teatro de Brecht, e tudo o resto. Era uma cidade com uma enorme dinâmica e a minha mãe cresceu e fez toda sua juventude nesse Berlim. Isso teve uma importância enorme para a forma dela olhar para o mundo. Desejou para mim aquilo que ela teve também para ela. Uma grande liberdade e um grande estímulo pela curiosidade de conhecer o mundo, de conhecer as pessoas, de se conhecer a si própria, de explorar. A minha mãe teve esse impacto. 

O meu pai teve um impacto complementar. As primeiras memórias que tenho do meu pai era ele a ler-me poesia pois ele adorava poesia. Ainda me lembro de versos que ele me lia e de me levar para a praia para observar as estrelas e os planetas e reconhecer as constelações. Também me lembro de trazermos um bocadinho de água de uma poça no jardim e levar ao microscópio para vermos as diatomáceas. A parte da curiosidade pela ciência, pelo conhecimento científico, acho que veio dele. Mas eu fui um mau aluno até o quinto ano, que corresponde agora ao nono ano. Passava sempre com 10 e só estudava aquilo que me interessava. No quinto ano tive um professor de Biologia, que também era um refugiado político de Portugal e de Coimbra, e de repente eu comecei a estudar. Não me perguntem porquê, talvez por nos ter levado a conhecer os mangais e as barreiras de coral da Inhaca, mas no primeiro trimestre tive 10, que era a minha nota normal, no segundo trimestre tive 14 e no último trimestre tive 19. E o meu pai até foi ver a pauta porque não acreditava que tivesse um 19. Naquela altura não se dava um 19 com a facilidade que se dá hoje [risos]. 

Acho que foi isso. A influência do meu pai foi grande, assim como da minha mãe. Depois houve uma série de professores. E não foi só de Biologia, o professor de Física que era completamente despassarado, que caía do estrado, que escrevia as equações todas umas sobre as outras, no mesmo sítio. Era mau professor, porque não era claro, mas aumentava a curiosidade que eu tinha pela Física. Porque é que eu escolhi a Engenharia Civil? Porque, gostava muito de Geometria Descritiva, foi a nota mais alta que eu tive no exame do sétimo ano, último ano do liceu na altura. Tive 20 de Geometria Descritiva, que eu adorava. E também gostava de Matemática e de Física, tinha muita curiosidade pela Física e achei que a Engenharia Civil tinha a teoria e tinha também a prática. Fiz o primeiro ano de Engenharia Civil em Joanesburgo, mas quando entrei na primeira aula do segundo ano a turma tinha à volta de 100 alunos e não havia uma única mulher. Eram todos homens, a esmagadora maioria adorava Rugby, eu gostava de Natação. O divertimento deles era beberem cerveja ao fim de semana. Eram duas coisas às quais eu não tinha empatia absolutamente nenhuma, e o facto de não haver uma única mulher naquela turma fez-me pensar que eu tinha de ir para outro curso. 

Escolhi a licenciatura em Física e Matemática, que era uma licenciatura considerada difícil. Tinha perto de 20 alunos, não mais do que isso. Metade eram raparigas e metade eram rapazes, quase cada um era de uma nacionalidade diferente. Há muita gente que não sabe, mas naquela altura Joanesburgo era uma cidade muito cosmopolita. Era uma espécie de mini Nova Iorque. Esta turma que eu acompanhei, equivalente a uma licenciatura em Física e Matemática, foi uma experiência muito importante para mim. Depois também tive muitas ligações com grupos underground que lutavam contra o Apartheid na África do Sul. Tinha muitos amigos que estavam muito activamente, alguns até quase de forma “terrorista”, a lutar contra o Apartheid na África do Sul. Uma vez um aluno meu disse-me, no fim de uma viagem de carro que eu fiz com ele dentro de Joanesburgo, que trazia na mochila meio litro de nitroglicerina. O que é uma estupidez total! E nós, ainda por em cima, estávamos a ser vigiados pela polícia. Se a polícia tivesse descoberto, estávamos os dois em interrogatório e nem sequer imaginaríamos como é que seria.

A minha experiência sul-africana foi uma experiência muito rica. A meio do curso, tirei um ano inteiro para fazer Filosofia, Literatura Francesa e Alemã. Um ano antes de chegar ao fim do meu doutoramento, conheci um homem que me marcou muito, o Sydney Brenner, que muitos anos mais tarde veio a receber o Prémio Nobel [em Fisiologia ou Medicina, em 2002]. Foi ele que, entre muitas outras coisas, descobriu as funções do RNA [Ácido Ribonucleico] e era de Joanesburgo, fez o curso todo lá. Quando veio a Joanesburgo receber o doutoramento  Honoris Causa, eu fui indigitado para ser uma espécie de chaperone do senhor. Ele iria estar em Joanesburgo durante três dias, e eu tinha de o ajudar a ir onde ele quisesse. Era um homem fascinante, pequenino, com uns olhos muito azuis, lindíssimos, e depois umas sobrancelhas cheias de pelos e pelos a sair do nariz e dos ouvidos. Era um indivíduo fabuloso e eu andei quase três dias com ele. No fim eu disse-lhe que tinha gostado muito do doutoramento, mas que agora queria, se calhar, dirigir-me mais para a Biologia, e não sabia muito bem como. 

Estava a pensar em ir para Berkeley, porque eu queria ir para São Francisco e para a área da Baía, que também era o Berlim dos anos 70, onde tudo estava a acontecer. Tinha a parte científica, a parte cultural e a parte social. Ele olhou para mim e disse-me “Mas se tu queres fazer, porque é que não fazes? Faz!”. E eu disse-lhe, “Mas não vai ser difícil?”. E ele disse-me “Pois é capaz de ser difícil, mas se é aquilo que tu queres fazer, faz!”. Acho que esta resposta muito simples deu-me coragem, porque eu só tinha dinheiro para comprar um bilhete de ida e fui para Berkeley. Estive durante seis meses a trabalhar como técnico de laboratório, porque eu tinha um doutoramento em Física que não servia para muito. Fiquei este tempo a matar ratos e a preparar mitocôndrias para estudar os mecanismos de transferência de energia nas mitocôndrias. Depois deram-me um lugar a 50% como pós-doc, onde estive mais dois ou três anos. E depois fiquei lá vinte anos. Abriram lugares, e eu fui preenchendo.

A minha área não foi tanto Biologia Molecular, mas foi mais Bioquímica, Biofísica e Fisiologia do stress. Havia uma parte que também era Biologia Molecular, mas era muito mais tentar perceber os mecanismos de adaptação ao stress oxidativo e os mecanismos de defesa e de reparação. Trabalhei muito na área dos efeitos do exercício físico intenso sobre as nossas defesas anti-oxidativas. Aquela coisa muito simples de que o oxigénio é tóxico, o oxigénio oxida. É uma chatice, mas oxida. Enferruja o ferro, estraga o leite, estraga a manteiga, a borracha fica dura, passado uns tempos, porque oxida. Nós também somos sujeitos à oxidação. Certas manchas de cor que aparecem na nossa pele são lixo oxidativo que se vai acumulando e que nós já não conseguimos limpar. Toda a minha área de interesse foi curiosamente, e voltando novamente à Física, perceber o papel dos eletrões desemparelhados. Não só na superconductividade, na Física, como também na Química e na Bioquímica. O facto dos radicais de oxigénio serem reactivos e de oxidarem e estragarem os materiais. Quase tudo o que eu fiz em Biologia teve a ver com mecanismos de transferência de eletrões e de protões. Eu acho piada porque, olhando para trás, continuo a ser físico. Interessa-me onde é que estão os eletrões, porque é que eles ficam desemparelhados, o que é que acontece para se desemparelharem, o que é que acontece aos gradientes de protões entre as membranas e por aí fora. 

Voltando à pergunta inicial, o meu pai teve influência? Se calhar teve, mas eu acho que houve muitas pessoas ao longo do caminho que, direta ou indiretamente, me deram confiança. A autoconfiança é muito difícil de construir, mas fundamental para termos a coragem de arriscar. Os meus primeiros dois anos em Berkeley foram muito difíceis. Todos os meus amigos e todas as minhas relações estavam nos antípodas. Berkeley e Lourenço Marques são cidades quase nas antípodas, são 11 ou 12 horas de diferença horária e os telefones não funcionavam. Quando eu falava, os meus pais tinham de estar calados para depois falarem a seguir. Eu não tinha bem a certeza de ter feito uma boa decisão, porque tinha um salário quase mínimo e não sabia se isto ia funcionar. A América não era a mesma coisa do que as colónias portuguesas ou a África do Sul que eu conhecia. Não foi fácil, mas olhando para trás acho que foi provavelmente a decisão mais inteligente que tive, onde aprendi mais. E não foi só cientificamente. Aprendi também sobre mim próprio, o que é que eu sou. Nós nunca chegamos a saber muito bem [risos]. Mas vai havendo umas luzes que se vão abrindo no processo, e é óbvio que também temos de perceber. Percebi quem eram as pessoas por quem eu era atraído, as pessoas que me tocavam emocionalmente. Também me ajudou a ter a liberdade de escolher, tive várias namoradas e namorados ao longo de vários anos. E no fim escolhi o Richard [Zimler], com quem estou há 46 anos. No início também não foi fácil, mas se calhar foi a coisa melhor que até agora me aconteceu [risos].

Alexandre Quintanilha / Fotografia de Rui André Soares – CCA

O Apartheid foi um período extremamente conturbado na África do Sul, mas quando vai para os Estados Unidos também apanha um período algo tenso, com os resquícios da Contracultura Americana dos anos 60, com os protestos contra a Guerra do Vietname, e depois com o escândalo do Watergate que levaria à admissão do Presidente Richard Nixon. Estes momentos altamente tensos acabaram também por deixar uma forte marca naquele que foi o seu percurso académico?

Acho que sim. Isto vai parecer um bocadinho agressivo demais, mas deram-me a “raiva” de tentar fazer tudo aquilo dentro da minha capacidade. Não sou uma pessoa agressiva, não sou uma pessoa conflituosa. Não sou uma pessoa que entra em disputas físicas ou até mesmo intelectuais. Aliás, as discussões no Parlamento muitas vezes pareciam pessoas a ladrar, às vezes com pouco conteúdo [risos]. Mas deu-me a “raiva” e isso também vem do meu pai e da minha mãe. O meu pai foi posto na rua pelo Salazar e também teve uma vida muito difícil a seguir a 1935, ano em que foi excluído do laboratório onde estava a trabalhar em Coimbra, já como professor catedrático. Depois o governo inglês, que já o conhecia como como geneticista de fungos, deu-lhe uma bolsa para ele poder ir trabalhar onde quisesse. Há uma história dentro da minha família, do meu o pai e da minha mãe, que também me deram força. Na África do Sul muitas vezes participei em experiências como dar aulas à noite a negros que ficavam na cidade e que não tinham que voltar para as townships [bairros de lata], onde eles tinham que viver. Ficavam na cidade como empregados das casas a trabalhar e depois tinham aulas à noite de Física, de Matemática e de várias outras matérias. Estive muitas vezes envolvido nessas aulas na Universidade, muito provavelmente vigiado pela polícia. E também havia coisas absurdas. Por exemplo, se alguém convidasse amigos negros para jantar em sua casa, podia oferecer o jantar mas não podia oferecer álcool. Se eles quisessem beber uma bebida alcoólica tinham que eles próprios trazer o vinho ou a cerveja. Tínhamos de ter as coisas muito bem organizadas porque se a polícia viesse podíamos ir todos a interrogatório se não obedecemos às regras. 

Nessa altura havia também grupos de teatro muito activos. O Barney Simon ou o Athol Fugard, escreviam peças de teatro que às vezes eram representadas nas garagens das pessoas. Foi a primeira vez que por exemplo eu vi “A Morte de Bessie Smith” [de Edward Albee], que é uma peça muito famosa americana. A Bessie Smith, era uma cantora negra, morreu porque foi a um hospital de brancos e não é aceite, e teve de ir para outros hospitais onde não chegou a tempo de ser salva. A primeira vez que eu vi essa peça foi numa garagem em Joanesburgo. As discotecas à noite, também eram todas no underground, também tinham muita gente de todas as cores e de todos os géneros que iam. Eu estava muito envolvido em mecanismos que não eram bem terroristas, eram terroristas low key [risos]. Também, naquela altura, muitos jovens estavam a experimentar a grande variedade de drogas acessíveis, quase toda a gente fumava. Não tenho orgulho nenhum, mas também não tenho vergonha nenhuma, nunca experimentei. Tive muita curiosidade pelo LSD, e não experimentei porque também um aluno meu entrou no meu gabinete, que era no segundo andar do departamento de Física, e quis sair pela janela a voar. Eu apanhei um susto muito grande e nunca experimentei o LSD. Em Lourenço Marques tudo isto não se notava tanto. Eu tive uma juventude muito privilegiada. Eu era branco, numa sociedade branca, em que tínhamos empregados em casa. Quando era muito miúdo o nosso cozinheiro, que se chamava Salvador Dias Mondjane, contava-me histórias sobre personagens à volta da corte do Gungunhana, que foi preso pelos portugueses e depois levado para os Açores. Aprendi um bocadinho dessa história. Muitas das noites o meu pai dava aulas em casa ao empregado que nós tínhamos, para ele ir passando os exames do segundo ano, do quinto ano, e por aí fora. Tenho também essa história por detrás. 

Quando chego a Berkeley, a grande revolta era contra o Ronald Reagan que era governador da Califórnia. Tinha ordenado a invasão do campus de Berkeley com a Polícia Federal para desbandar as manifestações contra a Guerra do Vietname. E mais, porque havia no campus de Berkeley uma instituição (Reserve Officers Training Corps) que aliciava  jovens para irem para o Exército. Havia em muitos campus universitários, ou à sua beira, instituições dessas que tentavam contratar pessoas. Aquilo tinha algumas vantagens porque pagavam-lhes um salário, e davam-lhes um certo treino profissional. Como Berkeley não era uma universidade privada, mas pública, muitos alunos tinham dificuldades económicas e por isso aceitavam o convite. Depois havia também a memória de muitos acontecimentos recentes. O choque do assassinato do Martin Luther King Jr. no fim dos anos 60 e também do Robert Kennedy na mesma altura. Tínhamos os movimentos do Black Power e do Grey Power. As pessoas não se lembram, mas o Grey Power era a revolta contra o idadismo enquanto que o Black Power era contra o racismo. E o movimento de consegração do Equal Rights Amendment, submetido ao Congresso Americano em 1972 e que requeria a subscrição de três quartos de todos os estados da união e que nunca chegou a ser aprovada. Ainda hoje estão a pensar avançar novamente com o Equal Rights Amendment. Não sei se será a melhor altura porque aquele Senhor dos Cabelos de Cor de Laranja [Donald Trump] é capaz de voltar à Casa Branca [risos]. Mas o Equal Rights Amendment, que era apenas e só para dar os mesmos direitos aos homens e às mulheres, nunca foi incluído na Constituição Americana. Houve também a grande alteração, logo quando cheguei, da Associação Americana de Psiquiatria que retirou a homossexualidade como doença mental. O movimento do free speech, começou também em Berkeley e muitos acham que foi inspiradora do Maio de 68 em Paris. Berkeley era considerado uma ilha. Havia uma lei, por exemplo, que não pode passar nada por Berkeley, nem de comboio, nem de camião, com resíduos radioactivos. 

Costumava ir várias vezes por semana às discotecas em São Francisco para dançar, porque lá as discotecas abrem às nove da noite. Não é às duas da manhã, como é em Portugal [risos]. Eu dançava até às onze horas e depois ia para casa. Em São Francisco a Beat Generation, tinha um enorme impacto. Poetas como Ginsberg, Corso e Ferlinghetti tinham uma presença marcante. Tínhamos os hippies que já estavam em declínio e o princípio da Stand-up Comedy. Tinha uma amiga que era óptima no palco! Muitas coisas começaram lá, If you go to San Francisco be sure to wear some flowers in your hair [canção de Scott McKenzie]. E eu acho que isso também influenciou o sítio para onde eu queria ir [risos]. Os meus primeiros anos na Bay Area foram anos de descoberta porque estava numa nova área científica. Mas comecei a ler literatura americana que eu conhecia muito pouco. Conhecia muito a literatura francesa que era a nossa segunda língua em Portugal. E depois, no fim dos anos do liceu, eu comecei a ler alemão porque eu disse à minha mãe que achava uma vergonha, tendo uma mãe alemã, não saber falar alemão. Os meus pais falavam alemão quando queriam que eu não percebesse nada [risos]. Por isso, durante três férias de verão consecutivas mandaram-me ficar com famílias alemãs na Alemanha em que não falavam outra língua senão o alemão e tive mesmo de aprender. Conhecia um pouco da literatura portuguesa, francesa e alemã. Já lia alguma literatura inglesa mas nos Estados Unidos foi onde eu comecei a ler William Faulkner, John Steinbeck, Arthur Miller, Tennesse Williams, os grandes nomes da literatura americana. Li muito por influência de amigos que eram de áreas fora da ciência. Muitos da área da literatura e da arquitetura. Eu até tive um fascínio pela arquitetura. Durante muitos anos achava que ia fazer um curso de arquitetura quando me reformasse, não sei se ainda será possível [risos].

Alexandre Quintanilha / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Vive no Porto desde 1990, após ter estado durante 18 anos num dos mais bem-reputados laboratórios de todo o mundo. O que é que o levou a escolher o Porto como a sua nova casa? Este foi um choque entre realidades distintas?

Foi um choque enorme, um choque enorme! Acho que se calhar houve dois fenómenos, duas coisas que aconteceram mais ou menos no fim da década de 80 que me levaram a mim e ao Richard decidir que tínhamos que ir para um sítio diferente. Uma teve a ver com uma tragédia social devastadora que foi o HIV e a SIDA, que afetaram a área da Baía de São Francisco e a área de Nova Iorque de uma forma desproporcionada. No fim dos anos 80 não era possível ir a um almoço ou um jantar com pessoas conhecidas ou não conhecidas, jantares da faculdade, jantares de amigos, em que o tema não viesse sempre à baila. Havia sempre alguém no jantar ou no almoço que conhecia ou tinha alguém de família que tinha sido infectado com HIV. Nos anos 80 não havia qualquer tratamento. O diagnóstico de HIV significava que a pessoa tinha uns meses, uns anos de vida, e morria.

Em 1989 o irmão dois anos mais velho do Richard, também foi infectado com HIV e morreu. Vivia em Nova Iorque e estava de relações mais ou menos cortadas com a família, porque tinha-se convertido a pouco e pouco ao anglicanismo e depois ao catolicismo e tinha-se afastado da família. A família era judaica, mas era uma família completamente não religiosa, e o filho afastou-se. Houve uma altura em que o Richard ia de duas em duas semanas de São Francisco a Nova Iorque para estar com o irmão, para estar com os médicos e com os amigos. Isto foi muito pesado, foi muito difícil acompanhar a morte do irmão. No meu centro de investigação, na mesma semana em 1989 dois jovens, uma jovem que eu acho que era australiana e um jovem de Boston, vieram ao meu gabinete dizer-me que estavam infectados com HIV. Eram dois jovens que tinham sido escolhidos entre 100 ou 200 candidaturas. Eram duas pessoas absolutamente fora de série e que me vieram dizer que tinham HIV. Queriam que eu mantivesse em sigilo, mas que sabiam que não tinham muito mais tempo para viver. Isto afetou-me muito, tanto a mim como ao Richard. Às vezes conto a história que, quando eu cheguei a São Francisco, a área da Baía era cheia de cor e cheia de vida. À medida que os anos 80 foram avançando aquilo tornou-se tudo muito mais cinzento. A pandemia do HIV estava afetar a nossa vida diária. Estávamos com vontade de ir para outro sítio onde o tema não fosse quase que exclusivamente aquele. Não é que pudéssemos esquecer, mas não queríamos que o tema fosse um tema diário, de conversa diária. 

Acontece que, já nos anos 70 e depois do 25 de Abril, eu tive um convite do Carvalho Guerra que era professor aqui no Porto, e cuja mulher, a Cila, dizia que tinha andado comigo ao colo em Moçambique. Não sei se é verdade ou não, é algo que não me lembro [risos]! Havia umas conferências da NATO, que se organizavam por todo o mundo, e ele organizou uma conferência da NATO sobre biomembranas em Espinho. Acho que eu devia de ser o único português que estava lá fora a trabalhar em biomembranas. Fui convidado a vir, teria sido em 1974 ou 1975, logo a seguir ao 25 de Abril. Nessa reunião conheci o Corino de Andrade, que foi quem descobriu a doença dos pezinhos em Portugal, e que me veio contar uma história muito curiosa. Ele tinha passado um tempo acho que em Estrasburgo, onde tinha sido aluno de um professor, que por sua vez tinha sido aluno ou colega do meu pai em Berlim. Ele conhecia o nome Quintanilha, embora nunca tivesse conhecido o meu pai. Mas conhecia o nome e convidou-me para vir como professor para o ICBAS, que estava a ser criado naquela altura. Disse ao Corino, “Não tenho nada para ensinar. Estou a aprender a matar ratos e a preparar mitocôndrias, e cloroplastos com espinafres” [risos]. Mas disse-lhe também que não me importava de vir cá durante uma ou duas semanas por ano dar aulas sobre biomembranas, mas … que estava construir a minha vida lá. No fim dos anos 80, quinze anos depois deste primeiro contacto, passei a vir cá ao Porto com alguma regularidade. Vinha dar aulas durante uma ou duas semanas, e às vezes um mês inteiro.

Outra coisa muito curiosa, no contrato que eu tinha com a Universidade de Berkeley, com o Lawrence, o laboratório federal, eu tinha uma cláusula que dizia que durante um mês inteiro do ano eu não tinha salário. Mas durante esse mês podia fazer o que me apetecesse. Primeiro que me dessem isto, foi muito difícil. Mas queria ter um mês, porque o número de dias de férias que temos nos Estados Unidos depende do número de anos de trabalho em que se está lá. Passados os primeiros 5 anos, só se tem 10 dias de férias por ano, e depois passados 15 anos, 15 dias, e depois só passados 30 anos, é que se tem 4 semanas. E eu queria ter um mês inteiro para fazer o que quisesse. Por isso, já vinha cá ao Porto com frequência. Em 1990, eu disse ao Richard “Porque é não experimentamos? Temos um convite para ir, mas tens que arranjar qualquer coisa para fazer”. Ele depois conseguiu arranjar um lugar para dar aulas na Escola Superior de Jornalismo.

Nós viemos, e foi muito difícil os primeiros dois, três anos. Muito difícil porque não tem nada a ver. Aliás, o Porto naquela altura era uma cidade cinzenta, era uma cidade do quarto mundo. Não era do terceiro mundo, Lisboa era do terceiro e o Porto era do quarto [risos]. Foi muito difícil, mas também percebi que havia uma energia em Portugal. Toda a gente queria fazer coisas. Havia também outra coisa muito importante. Acho que o 25 de Abril deu liberdade política a toda a gente, mas deu muito mais liberdade às mulheres. Acho que as mulheres empowered themselves [capacitam-se] mais do que os homens e isso nota-se ainda hoje. A penetração das mulheres nos vários mundos é muito mais assertiva. Não sei se está a mudar agora ou não, mas para mim isso foi fascinante. Ver como é que um país católico, não muito desenvolvido, com imenso analfabetismo, tinha esta vontade de mudar, de crescer e de se desenvolver. Isso foi o que me deu mais garra. Ver jovens que queriam fazer coisas, ver pessoas que se queriam juntar. Portugal tem muita dificuldade em juntar pessoas. Ainda hoje tem. As pessoas isolam-se muito, colaboram pouco, não falam de disciplina para disciplina. É mais fácil colaborar com pessoas fora de Portugal do que com pessoas do laboratório ao lado. Porque cada um quer ter o seu currículo para ser mais competitivo nas promoções ou nos concursos. É obviamente sempre mais difícil avaliar trabalhos de grupo. Mas vi uma energia muito grande e senti isso durante muito tempo.

Eu disse isso uma vez ao Jorge Sampaio e ele achou piada porque nunca tinha pensado nisso, mas concordou. As mulheres ganharam muito mais com o 25 de Abril do que os homens … de longe, em todos os domínios. A liberdade de se casarem se quiserem, de terem filhos casadas ou não casadas, de deixarem de pensar que a reprodução é a sua função mais importante. Mais tarde houve uma infecção dos homens, eles também começaram a evoluir [risos]. Isto agora que vou dizer é psicologia muito barata, mas eu acho que as famílias (em Portugal, mas não só) nunca trataram os filhos e as filhas da mesma maneira. Pedia-se muito mais às filhas do que aos filhos. E, portanto, os filhos habituaram-se, muitos deles vão à procura de uma substituição para a mãe, que trate da roupa, que trate da comida, que trate disto e daquilo. Presenciei cenas que eu julguei que não existissem já [risos]. A mulher a preparar a roupa para o marido vestir de manhã. Penso que isso já mudou, mas foi muito importante perceber isso. Mesmo muito importante.

Falou da boa energia que havia aqui em Portugal nessa altura, e conseguiu aproveitar essa energia ao ajudar na criação de três centros de investigação aqui no Porto, que hoje são unidades de investigação de excelência não só a nível nacional, mas também a nível internacional. Já existe algum tempo de comparação entre a investigação que é feita em Portugal e alguma de investigação com aquela que foi feita nos sítios de topo por onde passou?

Primeiro é muito importante perceber que a minha participação em Portugal foi, claramente, na criação do IBMC. O INEB, o Instituto Nacional de Engenharia Biomédica, já existia e foi criado e pensado pelo Mário Barbosa. Depois o que aconteceu é que o Mário teve a confiança necessária para que nós pudéssemos juntar essas duas instituições e criar um dos primeiros laboratórios associados, que foi o IBMC.INEB. Passado algum tempo, passei a presidir às duas, ao IBMC e ao INEB, e também ao IBMC.INEB como laboratório associado. Uns anos mais tarde achei que fazia todo sentido também juntar o IPATIMUP [Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto], que era um instituto que tinha sido criado pelo Manuel Sobrinho Simões. Fazia sentido tentar juntar as três instituições e ir à procura da complementaridade entre elas. Levou o seu tempo. Agora existe o i3S, mas as outras instituições ainda existem como instituições de direito próprio. Têm as suas associações e têm os seus estatutos.

Quando falamos em ciência temos sempre a noção errada de que estamos a falar das ciências naturais. Prefiro falar em conhecimento porque acho que o conhecimento envolve as ciências sociais, envolve as humanidades, e eu acho que tem havido uma evolução muito grande em todas elas. Já há muito tempo que acho que a melhor investigação que está a ser feita em Portugal se compara com a melhor investigação que é feita em qualquer parte do mundo. Qual é a diferença que ainda existe? É que em muitos outros sítios o financiamento existente para chegar às mais modernas tecnologias é mais fácil lá do que cá. Muitas vezes o que nós temos é uma competição a nível dos equipamentos e das tecnologias mais recentes que estão a ser desenvolvidas. Cada ano aparece uma coisa nova, com lasers aqui, com fotões ali… Em Harvard ou em Princeton há um financiamento que é quase ilimitado. Em Portugal ainda estamos muito longe disso. A Champalimaud que tem algum investimento privado também vem buscar muito financiamento ao Estado, porque também não é suficiente. A Gulbenkian também tinha uma instituição, mas com financiamentoreduzido. Aquilo que faz a diferença é o acesso a tecnologias de ponta e formas de estimular a interdisciplinaridade. Em Portugal ainda estamos longe dessa situação.

As pessoas têm dificuldade em falar com outros domínios, porque não dominam a linguagem. Em todas as áreas do conhecimento existem palavras específicas. Eu gosto muito de dar como exemplo a entropia. Toda a gente usa entropia, mas ninguém sabe o que é entropia, nem os físicos! Alguns sabem, mas são poucos [risos]. Mas entropia é uma palavra bonita, já esteve na moda. Agora o que está na moda é inovação. Toda a gente faz inovação, não há ninguém que não faça inovação. É uma coisa assustadora, é feita em tudo! É no parlamento, é nas universidades, é na tecnologia. Tudo tem que ser inovador. Isto às vezes dá vontade de rir porque é um bocadinho infantil. Inovação fazemos todos, toda a ciência é inovação. Fazer perguntas novas não é uma coisa de agora. Fazer perguntas fora da caixa não é uma coisa de agora. E há perguntas que são fora da caixa e outras que não são fora da caixa. As que são fora da caixa são mais importantes do que as de dentro da caixa? Não! Se há problemas temos que os resolver. E depois continua a haver aquela ideia de que há ciência pura e a ciência aplicada, que acho um disparate total. Se for ciência pura muito boa, temos as aplicações todas passadas muito pouco tempo. E se estivermos a fazer ciência aplicada muito boa, há montes de perguntas que só a ciência fundamental responde. Mas isto não é só nas ciências naturais. É nas ciências sociais, e nas humanidades também.

A inovação nas humanidades é o [Samuel] Beckett, À Espera de Godot que é uma peça extraordinária. E a literatura está cheia de inovação. O Ulysses do James Joyce só conseguiu ter a sua primeira edição em França. Já o Finnegans Wake ninguém lê porque aquilo tem uma linguagem que ninguém percebe. Inovação é isto! O teatro do Shakespeare, o romantismo alemão, o realismo americano, tudo isto é inovação! As Vinhas da Ira [de John Steinbeck] que já ninguém lê ou vê o filme, é uma coisa absolutamente deslumbrante. E o fim é chocante e lindo, é maravilhoso! O Homem sem Qualidades [de Robert Musil] é outro exemplo magnífico. Mas também a Menina e Moça [de Bernardim Ribeiro]. Acho que isto faz parte da história da evolução do conhecimento durante toda a nossa existência. Aparecem volta e meia pessoas extraordinárias. A teoria geral da relatividade [de Albert Einstein] deve haver 5% dos físicos que percebem. Eu não percebo. Acho que tenho umas ideias, mas não percebo [risos]. 

Alexandre Quintanilha / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Após este seu brilhante contributo na investigação, jubilou-se em 2015 e aceitou o convite para ser cabeça-de-lista do Partido Socialista (PS) pelo círculo eleitoral do Porto à Assembleia da República. Foi eleito em três legislaturas. Entende que os cientistas deveriam ter uma maior participação na actividade política e que conseguem ter uma visão diferente da realidade em comparação ao político comum?

Gostava primeiro de dizer que não são só os cientistas, mas sim as pessoas que apostam e que passam a sua vida a avançar o conhecimento. Podem ser engenheiros, podem ser homens do teatro, médicos, carpinteiros, o que for. O conhecimento é o grande pilar da democracia, como costumo dizer. Acho que essas pessoas deviam ter uma participação política muito maior. Muitas vezes é frustrante, porque os debates políticos têm mais a ver com quem é mais esperto do que quem transmite propriamente algum conteúdo. Quem é que consegue esmagar o outro, fazer com que se riam da opinião do outro, Muito do debate político é um debate que não tem tanto a ver com o conteúdo, tem mais a ver com a forma. Quem fala muito bem e quem consegue ridicularizar o outro é que é valorizado. E depois quem consegue ser mais “espertalhote” é que é conhecido. Mas isso também é um problema da nossa sociedade, nós também somos deslumbrados por este tipo de acção quando devíamos era ser mais críticos.

Estive envolvido nestes nove anos que lá passei em dois projetos em particular que me marcaram muito. Estive muito envolvido na Lei de Bases do Clima que, muito curiosamente, é uma lei que foi buscar oito propostas de lei. Houve seis partidos e duas deputadas independentes, que apresentaram propostas para a Lei de Bases do Clima. Havia oito textos e foi o PSD, pela Regra de Hondt, que tinha a responsabilidade de liderar o processo. Mas foi o PSD que sugeriu que eu, deputado do PS, fosse o relator. Isto foi inédito! Acho que nunca tinha acontecido, ou pelo menos nunca tinha acontecido recentemente. Fiquei muito satisfeito, porque isto levou-me àquilo que eu estava a fazer em Berkeley. No Lawrence, a grande área em que eu estava à frente eram centros de todo o ambiente. Eu tinha conhecido todos os grandes monstros das alterações climáticas, o [Charles David] Keeling, o [Roger] Revelle, o [Bert] Bolin, os primeiros que começaram a falar do CO[dióxido de carbono] como gás de efeito de estufa e suas consequências. Convidei-os todos a vir falar em Berkeley e conheci-os pessoalmente. Pegar neste tema e voltar às minhas origens deu-me um gozo enorme. O ter de falar com todos os partidos e tentar criar um único documento, que não é perfeito, mas que foi o que foi possível fazer para atingir consensos. Acabou por ser aprovado por todos, excepto a Iniciativa Liberal em que o único deputado votou contra, e o Partido Comunista que se absteve por razões diferentes. O Partido Comunista achava que não ia suficientemente longe, a Iniciativa Liberal achava que ia longe demais, era controlador demais. Ter 97% dos deputados da Assembleia a votarem a favor de um documento que levou dois anos a construir, deu-me muito prazer. Não é um documento perfeito, tem montes de falhas. Se tivesse sido eu a escrever, era outro documento, era uma coisa diferente. Mas foi aquilo que foi possível.

O outro foi a batalha toda da eutanásia, em que eu estive muito presente. Não fui eu que comecei, mas estive muito presente. O meu grande desgosto é que nunca tenha sido regulamentada. A lei existe e foi aprovada. O Chega já disse que quando chegasse ao poder ia prescindir da lei, mas nunca foi regulamentada. Podia ter sido regulamentada, houve tempo para isso e não foi. Depois houve montes de coisas que tiveram a ver com questões da educação, e na área da investigação. Foi muito interessante. Fui presidente da Comissão de Educação e Ciência por duas vezes. Na primeira legislatura, e depois na última novamente. Na segunda fui presidente da Comissão de Cultura. Acho que o que percebemos como presidente de uma comissão é a fragilidade das democracias.

No livro do David Runciman, que se chama How Democracy Ends, ele dá duas razões principais. A primeira é que os assuntos hoje em dia são tão complexos que a maior parte das pessoas têm dificuldade em perceber e delegam as suas decisões para os técnicos. Por isso, a possibilidade de uma democracia se transformar numa tecnocracia é muito grande e é o que está a acontecer em todo o lado. A segunda é ainda mais interessante. É que hoje em dia cada um acha que a sua área é mais importante de todas as outras. É o me first. Quando nós tínhamos os professores do público a virem exigir mais, é porque o que eles faziam era muito mais importante do que tudo o resto que existia. Os do privado era a mesma coisa. Os engenheiros eram muito mais importantes do que os médicos. E dentro dos médicos, os cirurgiões eram mais importantes do que os anestesistas. Portanto, todas as pessoas que vinham ao parlamento eram para defender o me. Esta coisa do me first não ajuda a dialogar. Entre os partidos políticos, isto é ainda mais evidente. “O meu partido é que sabe como é que se deve fazer as coisas. Tu és uma besta, não sabes” [risos]. No primeiro caso, as pessoas não percebem a linguagem e por isso delegam. No segundo, não estão interessadas em dialogar. Eu percebi isso. Estou a exagerar um pouco, mas não muito.

O Parlamento dos Jovens foi outra das iniciativas que, todos os anos, me dava imenso prazer em participar. Jovens apaixonados e dedicados, cheios de curiosidade. Foi muito útil estar na Assembleia da República, gostei muito. Acho que não foi tempo perdido. Saía muitas vezes frustrado. Quando certas pessoas começavam a falar, eu tinha que sair. Aliás, já era conhecido. Quando me viam nos corredores, já sabiam quem é que estava a falar [risos]. Mas gostei muito e aprendi imenso. Acho que Portugal, felizmente, ainda tem uma democracia funcional. Tudo podia ser melhor, não tenho dúvidas nenhumas. Mas olhando para o que está a acontecer na maioria dos países do mundo, eu estou muito grato por poder viver em Portugal. Estive agora dez dias em Nova Iorque e gostei imenso. Nova Iorque é uma cidade fabulosa, mas eu não queria viver lá. Mesmo que me oferecessem dez vezes o salário, eu não ia viver para lá. E São Francisco também. São Francisco é uma cidade cheia de gente sem abrigo. É uma das cidades mais caras do mundo e a cidade com maior concentração de multibilionários. Eu e o Richard estivemos lá há 5 anos, São Francisco já não é o que era. Eu também não gosto muito de voltar aos sítios onde estive porque nunca vamos encontrar aquilo que deixámos. Mas quando nós saímos, pensámos que também não queríamos voltar mais a São Francisco. E não é preciso ir a São Francisco, basta ir à Rússia, basta ir à China. Há muito pouca crítica à China, porque a China compra toda a gente. Aquele senhor [Xi Jinping] é muito mais perigoso para mim do que o Senhor dos Cabelos Cor De Laranja.

Há muita coisa que podia estar muito melhor em Portugal. Os investigadores queixam-se muito de falta de investimento, da precariedade. Há uma parte da precariedade que eu percebo e que é chocante. Há outra que eu não percebo muito bem. Uma pessoa que fica no mesmo sítio, durante tanto tempo, à espera que alguém o reconheça. Eu não era capaz. Eu passado dois ou três anos dizia: tchau, bye bye, baby, vou para outro sítio [risos]! É fácil dizer isto quando não se tem filhos, quando não se tem uma família. Tudo isso é verdade. Mas há um bocadinho de masoquismo, em ficar no mesmo sítio tanto tempo à espera de ser reconhecido. Eu não digo isto muito abertamente, porque é um pouco violento. Mas há uma parte de verdade nisto também. A área do conhecimento é bastante prestigiada. Quem está na área do conhecimento está a fazer aquilo de que gosta. Não há muita gente a fazer só aquilo de que gosta. Também acho que muitos de nós já começaram a perceber que aquilo que aprendeu não vai servir para toda a vida. Vai ser útil, mas não vai ser a garantia de emprego naquela área. Está tudo em grande fluidez, as coisas estão a alterar-se rapidamente. Ainda por cima agora com a Inteligência Artificial anda toda a gente cheia de medo que o emprego vá desaparecer. O que é uma estupidez porque a Inteligência Artificial é uma ferramenta. Não é mais do que isso. Podemos usar uma ferramenta para fazer coisas úteis ou para fazer coisas horríveis. Eu gosto muito de dar o exemplo da impressão. Foi o [Johannes] Gutenberg que a inventou no século XV na Europa. Passado muito pouco tempo o que é que aconteceu? As guerras da Reforma e da Contra-Reforma. Porquê? Porque as pessoas começaram a ler a Bíblia. Já não era interpretada e podiam ler. O livro estava lá, em alemão, em francês, em português. Em vez de ter alguém a dizer o que estava ali, eles podiam ler. Podiam dizer “aquilo que aquele sujeito está a dizer é mentira. Não é verdade”. E por isso surge a Reforma do Martinho Lutero, que também não era pêra doce. Ele queixava-se do Papa mas ele também era muito parecido [risos]. Temos assim as guerras da Reforma e da Contra-Reforma que mataram milhões “por causa” do Gutenberg. Porque o livro passou a ser uma ferramenta.

Com a Inteligência Artificial eu espero que não se faça a mesma coisa. Já tivemos a revolução industrial que foi uma coisa dramática. Crianças a trabalharem aos oito anos de idade. As reformas todas do emprego que foram feitas durante a revolução industrial em Portugal. Há coisas que estão a mudar, leva um tempo e às vezes não são fáceis. Mas eu ir para São Francisco também não foi fácil. A primeira vez que eu matei um rato veio o laboratório todo a ver como é que se fazia. E gozaram por ver como é que um físico teórico matava um rato. Naquela altura nós matávamos o rato pegando pelo rabo, batendo com a cabeça na mesa e depois deslocando o pescoço. A primeira vez que eu fiz isto, congelei! Aquele animal quentinho, simpático, com aquele pelo todo bonitinho, eu estava a matá-lo. Depois de o fazer não fui capaz de fazer mais nada. E todo o laboratório gozou! Hoje em dia acho que já não se faz assim. Os ratos são muito mais bem tratados. Não sei se dão qualquer coisa para o anestesiar. Confesso que a primeira vez que eu matei, congelei. Mas passado três semanas estava a matar com a maior das facilidades [risos].

Alexandre Quintanilha / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Estava a falar em conhecimento e uma das coisas que aconteceu muito recentemente foi uma pandemia provocada por um vírus pouco conhecido. Foi necessário tempo para se compreender o comportamento do vírus e para se chegar a uma vacina. Portugal foi dos países em que foi um exemplo no que toca à adesão das populações à vacinação. Os últimos dados do Eurobarómetro mostram que o povo português é o povo da Europa que mais confia na ciência. Isso tem a ver também um pouco com o investimento que é feito nos Centros de Ciência Viva, com quem tem também colaborado, e em actividades que pretendem levar a ciência às populações e ao público mais leigo?

Acho que sim. Acho que o Ciência Viva foi talvez a coisa mais importante que o Mariano Gago fez. Não era inovador, porque já havia coisas parecidas por exemplo em São Francisco. Mas fazer isso em Portugal era muito importante. Aliás, quando assinei o contracto de laboratório associado do IBMC.INEB, havia uma cláusula que dizia que até 3% do budget tinha que ser usado na transmissão do conhecimento para a sociedade. Lembro-me, como se fosse ontem, que a maioria dos investigadores seniores em Portugal achavam isso uma estupidez total. Eram contra. No IBMC.INEB, muitos dos seniores não queriam que eu gastasse nem sequer 0,1%. Foi uma luta dura e hoje não há nenhuma instituição que não tenha um gabinete de comunicação de ciência. Isto levou muitos anos a criar e a ter um impacto grande. A pandemia é um bom exemplo, com coisas muito curiosas. Ainda me lembro de muita gente inteligente que criticava, e continua a criticar, ridicularizando aquelas reuniões no Infarmed em que estava o Primeiro-Ministro e às vezes o Presidente da República, o Presidente da Assembleia, os líderes parlamentares, os médicos, etc. Conheço muita gente hoje que ainda diz “aquilo foi uma coisa que foi só para inglês ver, foi só para nos aldrabar a todos, aquilo não teve impacto absolutamente nenhum”. Eu acho que teve. Como aquilo apareceu na televisão, as pessoas perceberam uma coisa muito importante, que às vezes tem que se tomar decisões sem ter a informação toda. A informação leva muito tempo e a política não tem esse luxo. À política exige-se que se tomem decisões. As decisões às vezes têm que ser tomadas sem haver o conhecimento todo. Ainda hoje, há 7 milhões de americanos a sofrer de efeitos de longo prazo da COVID e não se sabe bem o que é. Ainda não conhecemos todos os efeitos a longo prazo daquela pandemia.

Aquilo que começou a ser feito com o Mariano Gago na criação do Ciência Viva e na estipulação de que as instituições deviam de ter gabinetes de comunicação de ciência à sociedade, acho que foi um dos momentos mais importantes para conseguirmos estar hoje na situação em que estamos. Havia negacionistas da pandemia na altura, e que tinham alguma visibilidade nos meios de comunicação. Alguns deles eram médicos e tinham mais visibilidade do que aqueles que alertavam o perigo do vírus. Imunologistas que diziam coisas disparatadas, que se deveria deixar toda a gente ficar infectada e que isso era a melhor maneira de solucionar. Passado pouco tempo esses negacionistas já não tinham voz. Já não apareciam nos meios de comunicação. E nós somos dos países que temos a maior percentagem de pessoas vacinadas três vezes. Não é só duas, três vezes! Isso não se constrói de um dia para o outro. É importante reconhecer o papel da Graça Freitas nesta luta. Leva tempo, e o conhecimento leva muito tempo. É muito importante que as pessoas percebam que a política não tem o luxo do tempo. É uma chatice. E se a pessoa não toma a decisão, já não é reeleita. Às vezes criticamos algumas decisões que se calhar são erradas ou nem sempre são certas. Mas muitas vezes têm que ser tomadas porque as circunstâncias assim o exigem. Quando não se tem o conhecimento todo é uma chatice. 

A questão climática é uma questão clara. Nós há 29 anos que temos as COPs [Conferência das Partes] em que quase todos os países se reúnem para discutir o que é que vão fazer. Hoje o CO2 não só continua a crescer mas continua a crescer a uma velocidade três vezes superior à que crescia há 30 anos. Quem descobriu precisamente que era um gás de efeito de estufa foi uma mulher [Eunice Newton Foote] no século XIX. Ela não pôde falar das suas experiências porque era mulher. Teve de ser um homem a falar das suas experiências na AAAS, Associação Americana para o Avanço da. Ela fez uma experiência muito simples, daquelas muito toscas. Era uma “cientista cidadã” e arranjou dois grandes vasos de vidro transparente. Encheu um de ar e outro de CO2 e pôs ao sol. O que continha CO2 aumentou a temperatura mais do que o que continha ar. Por isso, o CO2 é um gás de estufa. Na altura ela não tinha termómetros calibrados nem nada dessas coisas [risos]! Foi uma experiência inovadora e foi ela que descobriu. Mas o nome dela não aparece.

Já temos alguns casos em que as mulheres têm um papel preponderante quer na ciência quer também na política. A Alemanha teve durante 16 anos uma chanceler que era cientista [Angela Merkel]. A recém-presidente-eleita do México [Claudia Sheinbaum] é também uma cientista, vencedora do Nobel da Paz em 2007, e que tem um vasto trabalho de investigação sobre as alterações climáticas. Os nossos esforços para a igualdade de género, quer na ciência quer na política, estão ao mesmo nível?

Não tenho dados para afirmar o que estou a dizer, mas acho que as mulheres que chegaram a determinados níveis, aquelas que ultrapassaram, o que se chama o glass ceiling, ainda são poucas. Mas já existem. Já houve várias mulheres reitoras de universidades. Já houve várias mulheres directoras de centros de investigação. Ainda estamos se calhar muito no início, ainda há muito trabalho a fazer. Ainda há uma preponderância muito grande de homens nessas situações. Há outra coisa curiosa, há muita gente que acusa as mulheres que chegam a esses postos por se comportarem como homens e não por serem diferentes na sua forma de ser. Isso eu não sei se é verdade ou não. Na política também já tivemos primeiras-ministras, já tivemos presidentes da Assembleia da República, já tivemos mulheres líderes de grupos parlamentares. Há partidos que na sua estrutura, nas suas regras, impõem certos níveis de paridade entre mulheres e homens. 

Houve muitas mulheres que eram contra a affirmative action, a discriminação positiva. Eu conheço muitas mulheres que continuam a ser contra. E eu acho que a discriminação positiva é uma coisa que deve ser feita enquanto houver diferenças. Quando essas diferenças forem mínimas, acho que já não é necessária a discriminação positiva. Mas achei isso em relação às questões raciais, em relação às questões de género, e a muitas outras questões. Acho que a discriminação positiva tem o seu papel durante o tempo que é necessário e depois esperemos que deixe de o ser. Se é mais na política ou na ciência, não sei dizer. Acho que as duas têm evoluído lentamente. Eu até tenho ideia de serem muito parecidas as duas. Mas não tenho a certeza, não tenho dados para poder afirmar isso. O recente livro Une brève histoire de l’égalité de Thomas Piketty tem dados importantes sobre este tópico.

Tendo em conta a sua experiência, ao ter trabalhado em vários locais distintos, ao ser um cientista multifacetado, um mediador de diálogo entre instituições, um cidadão activo, sente que o seu legado, mais do que um legado científico e de cidadania, será acima de tudo um legado humano?

Eu gosto da pergunta, mas nunca pensei nesse assunto. Nunca pensei naquilo que lego. Acho que a ideia de que eu servi para ajudar as pessoas a terem a autoconfiança necessária para explorarem aquilo que são e aquilo de que são capazes, foi a minha função mais importante. Na forma como eu me apresento cientificamente, civilmente, politicamente, sem ter vergonha nem orgulho do que sou e do que fiz. Tive contribuições interessantes na área da ciência, na área do conhecimento em geral. Defendi durante muito tempo a necessidade da interdisciplinaridade, que ainda está muito longe de ser conseguida. Acho que a forma como eu nunca tentei fazer jogos de pessoas contra pessoas e de ser sempre muito aberto em relação às pessoas de quem eu gosto. Às pessoas com quem vivo, às pessoas que me ajudaram a crescer. Acho que isso também leva tempo a ser reconhecido. E valorizam isso, até certo ponto.

Estava agora a lembrar-me de uma coisa engraçada, que me veio agora à cabeça e que já tinha esquecido. Houve um investigador na Gulbenkian que há uns 40 ou 50 anos fez o meu mapa astral. E depois escreveu um texto a explicá-lo. Uma das coisas que ele disse e que achei piada foi que, quando nasci, os planetas estavam todos acima do horizonte. Por isso, eu não era uma pessoa escondida. Na altura achei piada. Não é que eu acredite no mapa astral, já várias pessoas me fizeram mapas astrais diferentes [risos]. Aquilo foi-me oferecido com muita simpatia. Mas eu achei graça a esta conclusão dele. Estarem os astros, os planetas, todos acima do horizonte. E depois disse-me outra coisa, como eu nasci no hemisfério sul se calhar era tudo ao contrário [risos]. Se eu pensar num legado, acho que é isso. Ser muito transparente e não fazer jogos. E também construir uma vida com uma pessoa durante 46 anos e ainda com muito carinho mútuo. Hoje em dia isso é uma raridade. Já não há disso com muita frequência. Acho que estas são as duas coisas mais importantes.

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