O regresso de três velhíssimas questões
Vendo bem as coisas, neste fim da segunda década do séc. XXI fará sentido assinalar o dia do trabalhador a 1 de maio, e não a 12 de abril. Mas em qualquer caso, para entrarmos com os olhos abertos na terceira década deste século, teremos de os voltar para o séc. IV a.C.
A revolta ludita
Pois, de um lado, assinala-se hoje a grande manifestação de 1886 em Chicago, reivindicando a redução da jornada de trabalho para 8h.
Redução?! Nestes tempos em que se precipitam notícias de máquinas – quer dizer, de coisas que desenvolvem, ou que se sucedem a outras que chamávamos “máquinas” – que a cada ano superam as expetativas do ano anterior sobre as suas próximas capacidades de reunião e tratamento de informação, de tomada de decisão, e até de geração por essas “máquinas” de comportamentos adequados com base em dados para cuja interpretação elas não recebem regras, ou seja, capacidade de “aprendizagem” nessa adequação, o que se perspetiva é a extinção de muitos postos de trabalho humano. O qual, pois, deverá ser de menos, não de mais.
Quem olha para o séc. XXI segundo as aulas de história, no séc. XX, sobre o séc. XIX, encontrará consolo no facto de, desde há 200 anos, as máquinas substituírem os homens nos trabalhos mais pesados e repetitivos, gerando-se novos trabalhos humanos nos serviços. Daí a aposta de que também agora, de alguma maneira, há de ser isso que acontecerá. Enganar-se-ão assim os novos luditas que hoje denunciam a emergência da inteligência artificial (IA), como se enganaram, a 12 de abril de 1812, os primeiros desse nome quando atacaram os teares industriais[1].
Ou engana-se quem perspetiva este século na base dos anteriores.
Visto estarmos a dar os primeiros passos de uma nova era na relação entre o género Homo e os utensílios, começada pelo nosso antepassado habilis. A era de artefactos autónomos, que podem ser produzidos por outros artefactos, e que estão invadindo o setor terciário. Para onde os trabalhadores humanos afluíram deixando os setores primário e secundário em grande parte para máquinas que, por complexas que já fossem, pertenciam à era aberta pelos primeiros utensílios em pedra – feitos e usados por homens. Mas agora não se nos abre propriamente outro setor económico ainda para onde nos possamos transferir.
Parece, pois, que estamos hoje mais próximos de abril de 1812 do que de maio de 1886.
Os trabalhadores e as 3 respostas aristotélicas
Do outro lado, porém, a reivindicação de Chicago implicava a assunção dos trabalhadores como seres humanos, que assim se realizavam em vivências íntimas, sociais, políticas, lúdicas, artísticas… além das laborais e profissionais. Para as quais precisavam então de tempo e energia. Que bem poderiam ser libertados pela complementaridade entre homens e máquinas.
Ou seja, a 1 de maio assinalam-se certas respostas a três questões: o que é o homem? O que é um instrumento ou máquina, e em geral um artefacto? Que relação pode e deve haver entre um e o outro?
Precisamente as questões que no fim desta segunda década do séc. XXI nos coloca a IA – de resto potenciada pela sua articulação com as NBIC (nanotecnologia, biotecnologia, informática, ciências cognitivas). Mas deixemos esta potenciação para outra oportunidade aqui na CC&A, que falta apontar as respostas que nos trouxeram do Homo habilis até o fim do séc. XX. E que hoje somos obrigados a reconsiderar.
Encontramo-las formuladas por Aristóteles. Respetivamente, em Ética a Nicómaco (VI, 2-5) distingue-se o homem por combinar cinco tipos de conhecimento. Relacionando-se em particular no âmbito da deliberação, ou cálculo, os conhecimentos técnico e prático – este último como a prudência na escolha e orientação de comportamentos, a qual tanto pode recorrer a conhecimentos teóricos como à experiência, direta ou por testemunho, que não prescinde da emoção, e assume a incerteza… Diria que o tipo de conhecimento que mais pode valer na abertura de qualquer era nova.
Enquanto em Física (II, 1) os artefactos são distinguidos dos entes naturais, como os homens, por apenas os segundos terem em si próprios os respetivos princípios de geração, comportamento e evolução. Por exemplo, é o caso da madeira nas árvores, e do ferro no subsolo; mas o isolamento e disposição de uma e do outro na composição de um martelo implica a intervenção humana.
Enfim, no número seguinte desse livro da Física, o Filósofo atribui à técnica a capacidade de imitar, mas também de completar a natureza. Se esta ainda seria assim a referência primária na relação entre ambas, já no séc. IV a.C. se entreabria no entanto a criatividade técnica…
1 de maio de 2018
Pela qual viemos a construir máquinas que já não precisam de homens que as criem, nem que as ponham em exercício.
Estão elas, assim, deixando de ser “artefactos” e, capazes de deliberação… passando a ser “humanas”? Somos nós, afinal, apenas uma variante desta classe, de que outra variante serão todos os bots que hoje nos sugerem os amigos nas redes sociais, onde podem eles entrar em diálogo connosco constituindo-se como tais “amigos”, que decidem e executam os nossos investimentos financeiros?… Que relação poderemos e quereremos nós… e que relação poderão e quererão essas máquinas (?) ter connosco? (Lembrando que para dançar o tango são precisos dois).
Quase vinte e quatro séculos depois de Aristóteles, assim se nos abrem de novo essas velhas questões. Em especial, neste dia em que se enaltece o trabalhador, com a sua vontade de tanto preservar esta sua condição, quanto de a integrar numa realização geral da respetiva humanidade.
[1] Admitindo que a destruição das máquinas não fosse apenas uma pressão sobre os empregadores, mas também uma rejeição delas por dispensarem trabalho humano.