A arte será libertadora e, por si só, autêntica?

por Lucas Brandão,    13 Setembro, 2016
A arte será libertadora e, por si só, autêntica?

Com bases marxistas e idealistas, Theodor W. Adorno bebeu muito das teorias previamente concebidas na Alemanha e juntou-se a um grupo de outros pensadores denominado por Escola de Frankfurt, grupo esse que nasceu no seio do Instituto de Investigação Social desta cidade. Assente num prisma ideológico distinto e igualmente inovador, Adorno articulou ideias e perspetivas com nomes como Jürgen Habermas, Max Horkheimer ou Herbert Marcuse. Entre estas, a arte foi bastante dissecada em todo o seu plano teórico e conceptual. Pendores como a indústria cultural e a dimensão social de toda a produção artística foram considerados num enredo sociologicamente relevante.

A arte, e a partir da vasta gama de canais de expressão a seu dispor, nunca perdeu de vista o ser humano em toda a sua representação, expondo-o tanto da forma mais íntima e particular como generalizada e globalmente. Porém, e com a consolidação dos seios sociais em número e em amplitude, a criação artística voltou-se para o acompanhamento deste desenvolvimento, tanto como progressão como nos seus sinais de regressão. Foi com intenção e dedicação que os artistas encararam a sociedade como uma oportunidade para reproduzir visões e considerações personalizadas detidas pelos autores relativas a um dado contexto. Assim se revelou um crescente panorama de atuação social da arte como um todo, desde a ideia até à sua chegada à plateia. No estudo desta dimensão, surge Theodor W. Adorno como um dos principais investigadores e esclarecedores de vários pontos que se foram articulando na sucessão da produção com olhos para a sociedade.

Definindo arte, Adorno caraterizou esta como indissociável de um contexto social preciso. Aliás, é a partir da análise da arte contemporânea e do seu processo criativo que o alemão estuda o grau de “manipulação do capital” no mesmo. É ao lado desta consideração que avalia a crítica social emitida nas obras, reportando ao caráter socialmente ativo da arte para expressar toda a carga emocional sentida em relação ao estado das coisas na realidade. No entanto, é aqui que emerge um ponto de importante reflexão. A arte será libertadora e, por si só, autêntica? Adorno tipifica uma forma de se fazer arte em que esta é servil aos interesses capitalistas, anulando a autonomia artística e intelectual do seu autor. Nesta, ele enquadra o entretenimento, visualizando os objetivos deste como meramente comerciais e não como ramo que viabilize a expressão individual e coletiva do ser humano. Desta forma, a arte vincula-se à sociedade quando atua como um órgão de crítica à dominação que sufoca o potencial criativo do autor e a propensão subjetiva do mesmo.

Até aqui em total consonância com os seus colegas institucionais, Adorno individualiza-se quando atribui uma atenção ainda mais especial à arte. Como compositor musical, o pensador adquiriu experiência preciosa para a apresentação das suas teorias, teorias estas que nunca tomaram um rumo totalmente distinto da vida artística. Assim, a arte foi sempre vista pela comunidade de filósofos de forma multidimensional, com alguns a delimitarem-se à abordagem da beleza estética e com outros a proporem relações metafísicas. Porém, nunca foi difusa a ideia de que possuía um estatuto muito específico e privilegiado na camada de estudos realizada por esses pensadores. Este estatuto justificava-se em grande medida pela envolvência que a arte tinha, passando pela sensibilidade sensorial até à edificação dos mais complexos sistemas filosóficos de pensamento e de desenvolvimento.

Para conectar a arte e a pesquisa, Adorno utilizou o ensaio, um método de expressão de conhecimento e de valorização do esplendor artístico. Este empreendimento por parte do alemão foi fomentado a partir da reiteração do valor social da arte na oposição aos cânones impostos pelo capitalismo e pelo racionalismo desmesurado. Aliás, o filósofo insiste na questão da extrapolação da razão, anomalia esta que motivou regimes totalitários por um lado e sociedades alienadas e consumidoras desenfreadas do outro. Tudo isto viu-se vertido e sistematizado na abordagem frankfurtiana denominada “Teoria Crítica“.

Vendo também a arte como conhecimento, o pensador volta a frisar a crítica na formação e maturação da cognição. Para a sua formulação, redigiu “Teoria Estética” (1969), deixando-a inacabada mas denunciando desde logo a “coisificação” do espírito no totalitarismo social, banalizando a atividade criativa e caindo no caminho erróneo da imitação do que foi feito outrora. Para consolidar esta premissa, Adorno afirma até que “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro”.  No contexto da libertação da arte, o filósofo torna-se descrente desta num contexto tirano e obtuso, em que as estruturas sociais não auxiliam a própria emancipação artística. Para este caso, apela à mudança conjuntural e agregada tanto numa perspetiva política como numa comunitária e social.

No que toca à situação da arte, o autor aponta para a paralisia motivada pelo papel que lhe foi assacado pela mercantilização, que a reduziu à simples condição de mercadoria. Mesmo sem as habituais funções morais e religiosas, a produção artística seguiu as diretrizes da sociedade que uniformizou métodos e constrangeu eventuais diferenciações expressivas. A arte revolucionária, percecionada pelo autor, estaria condenada ao fracasso no seu papel de libertar e de irromper perante as correntes vigentes de se fazer e de se conceber. Outra das razões seria precisamente a visão de Adorno da arte como protesto na sua génese, como uma oposição ao poder a partir da forma, dando ares de uma aparente inutilidade para se dar a uma subtil insurreição da capitalização artística.

Na teoria das obras de arte, o alemão indica a pretensão de revelar o conteúdo com valor de verdade e que passa incólume na observação institucionalizada da arte. A cristalização da obra tomaria lugar no cruzamento da produção em si com a crítica inerente. Esta crítica expressa-se na aparência de verdade que transmite, trazendo em si uma dimensão enigmática que motivou a radicalização das visões do autor. A aproximação da filosofia crítica à arte foi explorada em conjunto com o seu parceiro Max Horkheimer na “Dialética do Esclarecimento” (1947).

Nessa obra, exploram-se as eventuais consequências do Iluminismo, movimento racional que, não obstante o progresso que suscitou, trouxe limitações para o espírito e para o valor imaterial, especialmente no pensamento filosófico. Partindo desta premissa geral, particularizou-se no contexto cultural a partir de um dos conceitos mais abordados por Adorno nos seus escritos. A indústria cultural expõe evidências dessas consequências, esta que destrói a dimensão social e personalizada da arte e apontando somente como meta meramente o sucesso comercial. Desta feita, a criação autónoma e autêntica vê-se distante desta linha massificada e sócio-económica, dando ares também da sua difícil compreensão e apreciação. No entanto, a indústria tenta tornar tanto a arte mais comum como a mais segmentada uma mescla assumida como única e ajustada aos seus interesses. Assim, restringe o valor da arte para o de diversão e força a diluição do valor de verdade das não-padronizadas.

Voltando a utilizar a música como tema específico de análise, Adorno assume-a como um estrito ritual e como uma mercadoria que é valorizada enquanto converge com os meios de comunicação vigentes. Numa aparente forma de conhecimento, o alemão adverte para o esquecimento que se dá após a falta de promoção por parte dos mesmos meios dessas peças musicais. Com a intenção de restituir a música autónoma, Adorno condena o seu antónimo asseverando que “a música de entretenimento preenche os vazios do silêncio que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço e pela docilidade de escravos sem exigências”.

Desta forma, as principais linhas de argumentação filosófica de Theodor W. Adorno passam pela denúncia. Os dedos são apontados à sociedade e as sentenças de extrair o valor autónomo e personalizado da arte são decretadas na sua vasta produção literária. Assumindo-a na essência como protesto, o alemão disserta sobre a importância da forma como exposição dessa contestação, abstração que se abre à própria realidade à qual aponta. Para reverter este estado, o filósofo discerne sobre o potencial emancipador da produção artística e sobre o perigo de alienação vigente numa sociedade que embala, distribui e dá a consumir aquilo que se cria. Embora pese a débil estrutura de apresentação dos seus conceitos e ideias no seu pecúlio literário, Adorno recorre a célebres mitos (p.e. Ulisses perante o canto das sereias) para sustentar aquilo que entende como a ausência de entrega pessoal à criação em prol de uma força maior.

À resposta a todos estes desafios, o europeu solicita o regresso da auto-reflexão de forma a reter indivíduos desprovidos dos discursos mentais e emocionais redundantes. Distanciando-se da ameaça amorfa da sociedade, os agentes artísticos assumem novamente um papel de destaque na renovação e na afirmação social de conhecimento. Assim, a principal averiguação desta extensão socióloga é a de que a arte, como elemento intrinsecamente ligado à sociedade, emancipar-se-á quando o panorama social se deixar renovar e inovar. É neste louvor à arte que se visiona uma réstia de otimismo por parte de Adorno relativamente à transcendência social e cultural. Um otimismo que respira a partir do dom criativo detido por cada ser humano. Um otimismo que acredita ainda no esplendor da arte como associação à distinção. Um otimismo que respira a partir do que não se rende. Eis a resistência da essência da arte, convicta e invicta enquanto irreverente valência da existência.

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