A arte e a psicopatologia

por Sara André Silva,    25 Novembro, 2022
A arte e a psicopatologia
Fotografia de Jack Hamilton / Unsplash
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Esta crónica convida o leitor a pensar sobre a função preditiva como característica comum à arte e à psicopatologia.

A arte é um canal de manifestação do inconsciente do sujeito. Reconhece-se atualmente um vínculo entre a experiência vivida, a obra produzida e o psiquismo do artista durante o processo criativo. Exemplificativamente, as primeiras obras artísticas durante o período paleolítico apresentam uma componente visceral, ao expressarem as maiores ansiedades do homem, através da figura do animal (sobrevivência) e da figura do corpo feminino (reprodução). Conseguimos, assim, entender o quanto o ambiente influencia a arte do ser humano. Aqui, não só o seu inconsciente conduz à materialização da obra, mas também à sua experiência no mundo.

Sabe-se que o artista assume o papel de ator social, refletindo a realidade do seu tempo e espaço. O movimento surrealista, marcado pela defesa do papel do inconsciente na construção da arte criativa, retrata exatamente isso. Numa época excessivamente racionalizada e redutora, os surrealistas rejeitavam a constatação da razão e do sistema lógico, libertando-se das restrições da normatividade social. Neste sentido, a arte que se apresentava como uma forma de rejeição da regra moral, torna-se, simultaneamente, uma forma de transgressão e de realização do desejo. Citando Gerson da Silva, ‘’Afinal, as expressões do inconsciente por meio da arte são imagens que não se calam’’.

Concomitantemente, o artista não só comunica e reage, mas também antecipa a experiência científica e cultural. De acordo com Herbert Read, para além de acartar todo o material inconsciente do indivíduo, a arte expressa os significados e as tendências inconscientes da sua sociedade. No domínio da literatura, já Albert Camus escrevia sobre “O Século do Medo” e Franz Kafka sobre a sensação de ansiedade, muito antes da mesma ser reconhecida pelos psiquiatras da altura. Só décadas mais tarde, a ansiedade foi classificada como quadro clínico e reconhecida pelo comum individuo. Nessa altura, já a sociedade estava consciente que vivia na “época da ansiedade”. Por isso pensamos que a arte antecipa, prevê e realiza os movimentos futuros — expressa os significados ainda inconscientes do artista que, só mais tarde, serão interpretados.

O crítico de arte Jerry Salt defende o mesmo quando refere que os artistas decifram o futuro ao retratar padrões da sociedade antes dos mesmos se formarem. Aqui torna-se pertinente relembrar a opinião de Aristóteles ao defender que a arte imita a vida. Em contraste, Oscar Wilde sugere que, na verdade, é a vida que imita a arte.

Diria que o objetivo desta reflexão não passa por encontrar uma resposta para este paradoxo, mas sim reconhecer o inconsciente como dinamizador desta relação dualista. Uma relação bilateral contaminada por um terceiro fator, em que tanto a vida como a arte se influenciam entre si, e ambas são influenciadas pelo inconsciente.

O inconsciente expressa-se de diversas maneiras para criar e mostrar o significado predominante da vida psíquica de um indivíduo, nomeadamente através da saúde mental. Entende-se a psicopatologia a partir dos conflitos que se estabelecem entre o inconsciente e o consciente, entre os desejos internos do indivíduo e as exigências da sua realidade externa. Também as práticas culturais têm influência sobre os quadros clínicos apresentados pela população. A condição cultural enceta a psicopatologia, pois a adaptação do Homem ao meio social requer uma inibição dos seus impulsos inconscientes que pode potenciar o desenvolvimento de patologias.

A título de exemplo, no final do século XIX, os pacientes de Sigmund Freud revelaram, através de sintomatologia, que a repressão da sexualidade constituía um terreno fértil para a perturbação de personalidade histriónica. No entanto, este entendimento só pôde ser corroborado posteriormente, quando a sexualidade deixou de ser “tabu” na esfera cultural. Similarmente, Burrhus Skinner considerou que a frequente infelicidade observada nos seus pacientes se devia à alteração do estilo de vida ocidental, marcado pelo facilitado acesso à segurança, fartura e liberdade, que distancia o funcionamento humano das suas tendências biológicas e naturais.

Através dos acontecimentos referidos, podemos refletir sobre o cariz antecipatório dos sintomas psicológicos e também sobre a capacidade dos pacientes em predizer a cultura ao experienciarem, subjetivamente, os conflitos inerentes à sua comunidade antes destes emergirem consciente e coletivamente. Segundo Rollo May, a pessoa carrega o fardo dos conflitos da sua época, que só mais tarde serão compreendidos e reconhecidos pela sua sociedade.

Em conclusão, podemos refletir sobre a função preditiva encontrada tanto na psicopatologia como na arte. O que nos é apresentado pelos pacientes e artistas do passado, torna-se endémico no presente. Este pequeno texto não esgota o assunto de maneira nenhuma, muito se pode pensar e discutir sobre a relação entre a arte e a psicologia. Para além disso, é interessante o olhar sobre o movimento social através da arte, mas aprofundá-lo através dos sintomas psicológicos, torna-se um desafio.

Assim, reconhecendo a importância da manifestação do inconsciente social sobre a materialização e a psique do homem, deixo espaço para a seguinte pergunta: poderão as subtilezas inconscientes revelar-nos o que ainda não surgiu?

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