Entrevista. João Céu e Silva: “O método criativo do António Lobo Antunes é um método ímpar no mundo”
“Estas escritas são de uma transcendência tão grande daquilo que é habitual fazer, que só o Lobo Antunes e o Saramago conseguiram chegar lá”, afirmou João Céu e Silva em entrevista à Comunidade Cultura e Arte. “Uma Longa Viagem com António Lobo Antunes” foi publicado, pela primeira vez, em 2009 mas, em 2024, ganhou uma nova edição com o complemento “de cerca de uma centena de novas páginas referentes a todas as reportagens, notícias, críticas e entrevistas” que foram feitas pelo jornalista a “António Lobo Antunes (ALA) desde 2010 até 2020“, explica. Sobre as críticas acerca do anúncio do estado de saúde do escritor, o jornalista contrapõem que a comunidade jornalística já estava ciente e que seria errado publicar este livro sem esta nova informação que, reforça, foi tratada com o máximo respeito e recato.
Contrapõe também que “a editora não pode continuar a vender livros e a insinuar que vai continuar a publicar coisas do António Lobo Antunes (…) a insinuar e a dar a ideia de que continua a escrever e, um dia destes, temos um novo romance“. No mesmo dia em que o Nobel da Literatura foi anunciado, a entrevista foi realizada a 10 de Outubro, João Céu e Silva remata: “Na grande parte dos livros que, hoje em dia, estão impressos em Portugal, aparece lá, ‘este livro teve a ajuda da embaixada, teve a ajuda do instituto’, e os nossos autores não têm esse apoio.” Complementa ainda que “continuamos a não ter os autores traduzidos em países de todo o mundo. O que os nossos governantes sabem dizer é: ‘Os jovens estão a sair de Portugal.’ Mas não sabem apoiar os jovens.’“
Porquê a decisão do avanço desta nova edição do livro agora, uma vez que a primeira edição remonta a 2009?
Este livro trata-se de uma nova edição com mais pormenores, com mais detalhes, que hoje em dia têm um significado que, na altura [da primeira edição], não teriam. Essa parte foi reduzida, ou seja, editada, e esta nova edição conta com cerca de uma centena de novas páginas referentes a todas as reportagens, notícias, críticas e entrevistas que fiz ao António Lobo Antunes (ALA) desde 2010 até 2020, portanto, na década a seguir. Esta edição justificava-se porque acrescenta tudo o que fui fazendo — as cerca de cem páginas — ao acompanhar, entretanto, a carreira do escritor.
Este novo livro não saiu pela mesma editora. Porquê?
Primeiro saiu pela Porto Editora e este, agora, é da Contraponto, uma chancela da Bertrand, que faz parte da Porto Editora. É simplesmente uma mudança interna. O editor Rui Couceiro estava a editar as minhas últimas Longas Viagens, com o Vasco Pulido Valente e com a Maria Filomena Mónica, e decidiu recuperar alguns dos volumes anteriores. Já vamos em oito Longas Viagens e tinha-se de começar por algum lado. Inicialmente, pensou-se em começar pelo José Saramago mas, entretanto — isto foi mais ou menos decidido há cerca de dois anos — saíram duas biografias muito grandes sobre o escritor: uma do Miguel Real e outra do Joaquim Vieira, e considerou-se que não valia a pena estar a publicar este novo trabalho, uma vez que tinham saído essas duas biografias muito recentemente. Optou-se, então, pelo António Lobo Antunes (ALA). Poderia ter sido o Miguel Torga, o Manuel Alegre, mas não, acabou por ser o ALA, quanto mais não seja pelo facto do José Saramago e do António Lobo Antunes serem os dois principais escritores portugueses das últimas décadas: haveria de ser um ou o outro.
“O primeiro livro resulta de 60 conversas, ou seja, 60 entrevistas sucessivas durante dois anos.”
Como disse, este livro tem cerca de mais de uma centena de novas páginas. Como é que o acrescento desta nova edição foi pensada entre si e o seu editor? Como é que foi pensado e decidido aquilo que sairia e o que de novo entraria?
O editor deixou isso à minha vontade. O que fiz foi pegar nas 500 páginas da primeira edição e reduzi-las a 320 páginas, mais ao menos, porque há muitas coisas, conforme o tempo passa, que eram importantes no livro e que deixaram de ser tão atuais: questões políticas, questões sociais e, até, havia repetições porque o primeiro livro resulta de 60 conversas, ou seja, 60 entrevistas sucessivas durante dois anos. Foi um trabalho de edição muito complicado, fiz quatro versões até chegar àquela que considerava que dizia tudo e que não retirava nada do que essas conversas, inicialmente, tinham sido. Isto tem uma razão de ser, é que muitos destes livros, muitos dos exemplares destas “Longas Viagens” são comprados por académicos, professores e investigadores porque, hoje em dia — isso só vim a saber posteriormente, porque vejo as bibliografias — nenhum professor, nenhum investigador pode escrever sobre José Saramago ou António Lobo Antunes sem consultarem estas longas viagens.
O trabalho de recolha demorou dois anos, portanto, estão ali as informações todas porque os investigadores precisam de perceber o comportamento, o estilo, o registo e a forma de escrever dos dois autores. Fiz, por isso, esta edição e acrescentei as tais cerca de uma centena de páginas, que são todas as entrevistas que continuei a fazer, as viagens que fizemos — uma a Bruxelas e outra a Haia, por exemplo — as críticas a cada novo livro que saía, assim como as notícias sobre as participações em eventos públicos e em festivais literários. A única coisa que o editor exigia era que o livro não ultrapassasse as quatrocentas páginas por causa dos custos de venda ao público. O critério foi meu e selecionei tudo aquilo que fazia falta e retirei tudo aquilo que não fazia falta, mas em muitas destas entrevistas antigas, nesta versão, acrescentei detalhes e pormenores que não existiam na primeira. Como algumas coisas tinham perdido a atualidade, havia outras coisas que tinham ganho a atualidade.
“A minha relação com o António Lobo Antunes data de 2017. Fizemos cerca de 80 entrevistas, viagens e, portanto, conheço-o muito bem. Temos, vamos chamar assim, uma amizade e tive sérios problemas morais em revelar a situação dele.”
A menção da demência de António Lobo Antunes tem sido severamente criticada. Em primeiro lugar, como responde a estas críticas que dizem ser uma devassa da intimidade do escritor? Chegou a ponderar se deveria avançar ou não com esta menção?
Assim que comecei a fazer os cortes e a edição, a dado momento questionei-me se devia ou não revelar. Revelar não é bem a palavra certa porque já centenas de pessoas sabiam, assim como toda a classe jornalística, amigos e conhecidos, mas questionei-me. Considero, no entanto, que não se pode publicar um livro, em 2024, sobre uma figura pública como o António Lobo Antunes sem mencionar a situação em que ele se encontra. Questionei-me, mas também me perguntei: “E os leitores quando comprarem este novo livro? Há centenas de leitores que sabem que ele está nesta situação e não aparece no livro?” Chegam à página quatrocentos e parece que está tudo igual, que não houve qualquer alteração no seu estado de saúde. A partir daí, senti-me na obrigação de incluir isso.
Fui acompanhando a doença até há pouco e fui confirmando que ele ia ficando cada vez mais distraído deste mundo. A minha relação com o ALA data de 2017. Fizemos cerca de 80 entrevistas, viagens e, portanto, conheço-o muito bem. Temos, vamos chamar assim, uma amizade e tive sérios problemas morais em revelar a situação dele. Mas achei que tinha de ser dito. Tive o maior recato em não fazer uma exposição que se tornasse escandalosa. Há uma página e meia inicial em que refiro o estado do António Lobo Antunes e dou o nome à doença — uma doença que muitos de nós temos nas famílias ou em pessoas conhecidas — e, portanto, é apenas uma página e meia. Quem estava à espera, depois deste escândalo todo que aconteceu nas redes sociais, de grandes revelações, ficará frustrado. Tive todo o cuidado para que tudo o que dissesse fosse com recato.
Essa é a palavra, com recato. Saiu uma notícia no Semanário Expresso e a jornalista que escreveu sobre o livro revelou uma situação que ela, toda a classe jornalística e literária já sabiam, tal como várias centenas de pessoas. A partir daí várias pessoas, designadamente nas redes sociais, sem sequer terem lido o livro ou saberem o que é que lá estava, apesar de terem conhecimento da verdadeira situação de António Lobo Antunes, consideraram que isto poderia ser uma devassa da sua vida privada. Nunca poderá ser considerado isso porque não poderemos escrever sobre ALA, em 2024, sem referir a sua situação de saúde. É impossível. Não tem qualquer lógica. Estaria a enganar os leitores se não tivesse referido essa situação que, mais uma vez repito, foi feita com todo o recato.
Toda a gente que criticou e deu opinião não leu o livro, não sabia o que é que lá estava, não sabia como estava encaixado na narrativa que lá estava da vida dele. É uma falsa polémica que só existe porque a maior parte das pessoas, que colocam comentários em alguns posts das redes sociais, são pessoas medíocres que vão em manada atrás das opiniões dos outros. Gostam de dizer aquilo que pensam sem saberem o que é que estão a escrever ou o contexto daquilo que está no livro.
Talvez as pessoas estivessem à espera que uma revelação como esta, o anúncio de uma doença, viesse por parte da própria pessoa. Talvez tivessem sentido que o próprio António Lobo Antunes não teve controlo sobre a forma como isto viria a público, de uma forma tão alargada, embora a classe jornalística pudesse já saber. Talvez fosse essa a questão mais difícil de entender por parte das pessoas, porque o escritor não pode agora falar por ele próprio sobre tudo isto.
Isto não é uma biografia do ALA, mas vale como uma biografia porque é a história da vida dele, contada por ele próprio e trabalhada por mim. O António Lobo Antunes, desde há dois anos, não sabe bem em que mundo está. A doença instalou-se e ele jamais a poderia revelar. Haveria ou não a necessidade de a revelar? Considero que se uma figura pública como ele, um escritor, não está a escrever, isto é importante. Claro que deve ser dito com recato e ele não o poderia dizer porque não está em condições mentais para o poder afirmar. Compreendo que a família não queira falar sobre o assunto, mas a editora não pode continuar a vender livros e a insinuar que vai continuar a publicar coisas do António Lobo Antunes, designadamente crónicas antigas — houve um livro de crónicas e houve um último livro de crónicas que são uma seleção dos outros livros — a insinuar e a dar a ideia de que o António Lobo Antunes continua a escrever e, um dia destes, temos um novo romance.
É errado não revelar a situação do escritor. Isto acontece em países como Portugal, em que a hipocrisia é muito grande e toda a gente sabe, mas ninguém quer dizer em público. Se este livro tivesse saído em Inglaterra ou nos Estados Unidos seria bem-vindo, não haveria qualquer crítica a fazer, pelo contrário. A reação seria esta: “Finalmente alguém nos explica, a nós leitores, o que se está a passar com o António Lobo Antunes.” Em Portugal é que se vive esta hipocrisia que não aceita que os livros e as biografias digam as verdades, porque as biografias que saem ou são encomendadas pelos próprios protagonistas, ou são feitas por pessoas que não assumem as verdades das vidas desses biografados. Essa hipocrisia mantém-se e ninguém esclarece, ninguém conta a verdade. O único “pecado” que fiz foi ter contado a verdade. Trata-se daquilo que a editora já deveria ter dito há uns bons meses, porque isto é uma situação com dois anos, pelo menos. Já a deveria ter revelado para não continuar a iludir o leitor: “Um dia deste vamos ter um novo romance do António Lobo Antunes”.
O escritor não tem nada no baú para publicar, nem está a escrever. É viver uma hipocrisia e isso não aceito. Convido um autor e ele aceita ou não. Ele não sabe o que é que vai ser o livro. A única condição que existe é que a edição do livro só me diz respeito a mim. Quando o livro chega às livrarias, enviamos um exemplar, ou vários, e é então que o escritor tem conhecimento do que lá está. Não há aqui, portanto, nenhum consentimento por parte do autor. As conversas são todas gravadas e escolho aquilo que quero. O primeiro livro resultou de um convite do próprio ALA para o fazermos. Em 2018, o próprio sugeriu-me que deveríamos fazer um segundo livro ou atualizar este.
Não foi contra a vontade dele. O retrato que aqui se faz é o retrato mais alargado do que foi feito na primeira edição. Esta nova edição — porque não é uma reedição, é uma nova edição — refere esta verdade. A hipocrisia nacional que vi estampada nas redes sociais não me interessa porque não me revejo nela. Poderia mentir, publicar o livro e dizer que está tudo bem com o António Lobo Antunes. Não admito essa mentira e acredito que o próprio escritor também não aceitasse assim tão facilmente essa mentira.
Não houve, portanto, nenhum problema da parte da editora em lançar o livro tal como está e com a informação que tem.
Não houve qualquer impedimento ao lançamento porque tudo o que consta no livro é escrito por alguém que conhece, mais do que quase toda a gente, o próprio António Lobo Antunes. Por alguém que conviveu com o escritor durante mais de uma década e meia, que já tinha publicado um livro e apenas acrescentou esse detalhe, tal como acrescentou cem páginas novas dos encontros, das entrevistas e tudo o que disse entretanto. Este facto era conhecido por toda a gente e, portanto, ninguém estranhou que viesse incluído nesta nova edição. Mais uma vez digo, incluído com muito recato, porque trata-se apenas de uma página e meia com isto. Qualquer referência a esta situação não ocupa mais do que dois ou três parágrafos. Ninguém quis aproveitar-se deste facto, da demência de António Lobo Antunes, para vender exemplares. Não era esse o interesse.
“Nas edições em papel [nos jornais], o espaço para a cultura e, designadamente, o espaço para a literatura é reduzido ao mínimo.”
As introduções que antecedem as entrevistas são compostas por considerações próprias do jornalista, ou seja, considerações suas. O João Céu e Silva vai referindo, também, como num jornal é sempre necessário editar mais e cortar para a entrevista poder ser publicada em papel. Acha que a imprensa nacional poderia dar um outro espaço a entrevistas de fundo?
Nas edições em papel, o espaço para a cultura e, designadamente, o espaço para a literatura é reduzido ao mínimo. Vejo isso no dia a dia, uma vez que as entrevistas aos escritores são cada vez mais pequenas e há muitos escritores como, por exemplo, os mais velhos, que nem sequer têm direito a serem entrevistados porque a única coisa que os jornais querem é visualizações no online. Querem que se entrevistem os autores da moda, do tiktok, essas novas literaturas. Não vou citar nomes, mas os nossos escritores, com mais de alguma idade, que continuam a produzir regularmente, não têm acesso às páginas dos jornais. Nas edições online, aí as coisas são diferentes, porque ainda há uma classe jornalística cultural que tem interesse e que aposta nas entrevistas que faz. Então, podemos ver que, enquanto numa edição em papel o jornal publica uma página, no online isso pode ser o correspondente a cinco ou seis páginas.
O online veio trazer uma abertura para os jornalistas empenhados que fazem essas entrevistas e que fazem trabalhos mais profundos. O online permite isso e é muito lido, porque quem tem interesse vai à edição online. As edições online foram péssimas para as edições em papel, mas permitem que se publique tudo aquilo que foi conversado e que seja de interesse nas entrevistas. As entrevistas do António Lobo Antunes tinham direito a quatro páginas no Diário de Notícias quando as publicava, hoje em dia teriam direito a uma ou duas páginas. Aliás, antes da saída do meu livro, teriam direito a uma ou duas páginas, agora talvez tivessem direito a quatro por causa deste escândalo todo. Mas através do online os leitores, hoje em dia, podem ler trabalhos muito mais extensos que já não eram autorizados nas edições em papel. Não é só pelo espaço que ocupavam no papel, mas pela ignorância dos editores e das chefias. Hoje, por exemplo, foi anunciado o Nobel da Literatura de Han Kang que, dificilmente, as chefias dos jornais saberão quem é.
“As edições online foram péssimas para as edições em papel, mas permitem que se publique tudo aquilo que foi conversado e que seja de interesse nas entrevistas.”
As entrevistas do livro estão pensadas como uma conversa em contínuo entre duas pessoas, mais até, se calhar, do que entre um escritor e um jornalista. No livro está citado, como exemplo, o livro de conversas entre Truffaut e Hitchcock. Há outros grandes exemplos, também, como um livro de conversas entre Marguerite Duras e Jean-Luc Godard. Acha que este tipo de entrevistas, mesmo no meio literário, acabam por escassear?
Não há muitos exemplos desses, mas a explicação é muito simples. O que não faltam são pessoas interessantes. Não há muitas para aguentarem trezentas páginas, mas não é que faltem, há algumas pessoas interessantes. O problema é que os autores são preguiçosos. Fazer 60 entrevistas, cada uma com duas ou três horas, durante dois anos, dá muito trabalho. Editar depois essas entrevistas continua a dar muito trabalho. Portanto, fazer-se isto uma vez, de vez em quando, até pode ver um ou outro livro aí, mas não vê os autores voltarem a fazer a mesma coisa. Não há mais ninguém a fazer dois, três, quatro livros com entrevista a autores. É impossível fazer porque dá muito trabalho. Da minha parte há muita investigação. Quando lhe disse a Saramago que tinha lido os 33 livros dele, na altura, ele disse-me: “Homem, você é maluco.” Foi o que o Saramago me disse e nunca me esqueci.
Olhando para trás e depois desta segunda edição ter saído, porque é que acha que o António Lobo Antunes queria este ciclo de conversas?
Foi um mistério que sempre existiu em mim, a partir da altura em que ele disse, “vamos fazer um livro”. Nunca consegui compreender exatamente. A posteriori, acho que queria deixar um registro sobre o que pensa sobre a cultura, literatura, os outros escritores e cinema. Penso que queria deixar um registo, queria conversar e deixar a sua visão do mundo e encontrou em mim a pessoa com a paciência e a tenacidade para manter, durante dois anos, conversas constantes para abordar os livros dele, mas como pretexto para falar-nos daquilo que pensava. Nunca consegui saber, nem ele me disse, qual foi a razão pela qual decidiu convidar-me para fazer o primeiro livro.
Mas é engraçado, e isso está escrito no livro, que na primeira entrevista ele chega a dizer, quando o vê, que não o conhece. Só depois é que o deixa entrar.
Exato.
Não deixa de ser interessante, primeiro recusa e depois aceita.
Disse à editora na altura, que era a Teresa Coelho, que gostava de entrevistar o António Lobo Antunes para o Diário de Notícias. Achou bem porque estava para sair “O Arquipélago da Insónia” e interessava-lhe para promover o livro. Então, vamos supor, segunda-feira a Teresa Coelho telefone-me a avisar, “Está marcado para quinta-feira”, mas na quarta-feira telefone-me a dizer, “O António Lobo Antunes não quer dar a entrevista”. Disse-lhe: “Teresa, é muito simples, saem quatro páginas no Diário de Notícias, em branco, apenas com um pequeno texto a dizer, ‘o autor recusou-se, apesar do compromisso, a fazer a entrevista'”. A Teresa Coelho deve ter transmitido isso, ou não sei o que é que lhe disse, mas o António Lobo Antunes acabou por aceitar fazer a entrevista. Tinha um armazém onde ele escrevia e o armazém tinha uma porta. Quando chego ao local e toco, ele vai à porta, mete-se à frente e não me deixa entrar. Não me convida a entrar, nem me deixa entrar.
Com aquela desfaçatez própria dele disse-me: “Não o conheço, nunca o vi. Quem costuma vir cá são umas colegas suas.” Sem querer, nem pensei que ele me quisesse proibir a entrada, disse-lhe isto: “Também não costumo entrevistar escritores portugueses, só estrangeiros e dos bons.” A minha resposta foi totalmente inesperada para ele, por um lado e, por outro, achou que se entrevistava escritores estrangeiros bons, então também poderia fazer isso. A entrevista demorou duas horas e meia. Não foi uma pequena entrevista, foi uma grande entrevista porque, a partir daí, se calhar já não se importava de ser entrevistado por um entrevistador que fazia entrevistas a grandes escritores estrangeiros.
“O António Lobo Antunes não via nada além da escrita como razão para viver.”
Convenhamos que foi uma resposta que acabou por acertar na veia do ego do escritor.
Penso que só pode ter sido isso. Mas essa resposta não estava preparada porque não esperava aquela reação, aquela recepção tão mal-educada. Estava combinado, chego, e ele começa a dizer, “não o conheço, só conheço as suas colegas”. A resposta saiu-me e depois aceitou a entrevista. Tanto que foram duas horas e vinte e sete minutos e, depois, fui lá entregar-lhe a transcrição da entrevista toda, porque no jornal eram quatro páginas e só saiu, em estimativa, um terço da entrevista. Mas como tinha desgravado tudo, entreguei-lhe e ofereci-lhe aquilo. A partir daí, leu e achou que seria a pessoa ideal para se fazer um livro como o do Truffaut e o Hitchcock. Foi ele que fez o convite e, também, em 2018 foi ele que me disse: “Temos que fazer um segundo livro”.
Conseguiu encontrar a resposta a esta pergunta que faz no livro, se o escritor não existe fora da escrita?
Não existe. Talvez haverá, no mundo inteiro, meia dúzia de escritores, homens ou mulheres, que apenas veem a escrita como significado da vida. O António Lobo Antunes não via nada além da escrita como razão para viver. Daí também a importância de ter feito esta “revelação” sobre o estado dele, porque o que o movia e moveu durante toda a vida, escrever, já não acontece. O António Lobo Antunes escritor, portanto, deixou de existir. Aliás, fecha a porta e o fim de uma era dourada da literatura portuguesa, também com a Agustina Bessa Luís, o José Saramago e outros autores.
Quando li o “Som e a Fúria” pensei imediatamente em António Lobo Antunes, até pela forma como o livro está estruturado. Na parte final do seu livro diz que não será por acaso que o Faulkner é frequentemente relacionado com António Lobo Antunes. Pode explicar um bocadinho melhor esta influência e relação?
Aqueles autores que saem do início da década de oitenta — o António Lobo Antunes e a Lídia Jorge, por exemplo — são muito influenciados pela escrita do Faulkner. É por essa razão. No início querem escrever como o Faulkner, mas depois ultrapassam e encontram a sua própria voz. A partir de um certo momento não conseguimos encontrar essa correspondência porque o Lobo Antunes encontra a sua própria voz. A Lídia Jorge faz a mesma coisa. Quando ela lança o “Dia dos Prodígios” é uma voz completamente diferente. Podemos encontrar ecos do Faulkner, mas depois vão-se esbatendo porque os escritores vão criando a sua própria voz. Isso aconteceu com muitos jovens escritores portugueses que passaram a escrever à António Lobo Antunes.
Exatamente.
Vários autores, vamos chamar jovens autores, aqueles que hoje em dia têm 40 anos, se for ver os primeiros livros deles, encontram-se ali imitações do António Lobo Antunes que foi, talvez, o que mais impressionou a maioria destes jovens escritores. Apesar de ser uma escrita difícil, não é tão complexa como a do Saramago, que é muito difícil de imitar, enquanto que o Lobo Antunes é mais fácil com aquelas vozes: é mais convidativa, inclusive. O Lobo Antunes também foi marcado por influências mas depois, entretanto, conseguiu libertar-se dessas influências. Os primeiros livros ainda podem ter alguns ecos, mas acho que a partir d’A Memória de Elefante poderemos quase sempre dizer: “isto é o Lobo Antunes”, mesmo sem lermos o título. Claro, ele tem ecos de vários autores e, portanto, isso aparece, tal como aparece em todos. Se formos analisar o livro do James Joyce e outros, até do próprio Faulkner, encontramos ecos de outros autores.
“Todas as pessoas que querem escrever não encontram uma voz de início. Leem muito, fazem cópias, imitam os seus escritores preferidos e, portanto, é normal. A pessoa, se escrever cinco romances e não os publicar, talvez encontre a sua voz.”
Focou uma parte interessante que eu também ia falar, o facto da escrita do António Lobo Antunes ser muito convidativa à imitação. Mas talvez falte sempre algo a essas tentativas. Ou seja, a escrita do António Lobo Antunes nunca deixa de ter algo muito próprio.
Todas as pessoas que querem escrever não encontram uma voz de início. Leem muito, fazem cópias, imitam os seus escritores preferidos e, portanto, é normal. A pessoa, se escrever cinco romances e não os publicar, talvez encontre a sua voz. Se escrever um primeiro romance e o publicar imediatamente, dificilmente terá encontrado a sua voz, porque ninguém sabe escrever se não tentar várias vezes, se não houver várias tentativas, se não houver erro e correção. Acredito que todos esses jovens escritores que, hoje em dia têm 40 ou 50 anos, que imitaram de início o António Lobo Antunes, foi porque lhes soava bem no ouvido e parecia-lhes fácil de imitar. Mas ao compararmos esses antigos jovens escritores com a obra do Lobo Antunes, notamos que a distância é gigantesca porque o António Lobo Antunes fazia de qualquer parágrafo uma obra de arte. No “Sôbolos Rios de Vão”, que é um dos livros de que mais gosto, não se precisa de ler o livro do princípio ao fim.
Abre-se o livro em qualquer página e é possível ler. Fazer isto é muito difícil e ninguém o consegue imitar. Lemos um desses livros que pretendiam inspirar-se no António Lobo Antunes e percebemos, imediatamente, que é uma imitação. O António Lobo Antunes, para chegar àquele estilo, escreveu e deitou fora vários livros. Teve de escrever e escrever até conseguir encontrar a sua voz. Esses escritores que, hoje em dia, têm um parâmetro, já têm a sua própria voz. Acho muito difícil, no entanto, que alguém na literatura portuguesa — e vamos tirar daqui o Mário de Carvalho, que tem a sua própria voz, e a Lídia Jorge que também tem a sua própria voz — consiga encontrar autores com uma voz tão impressiva como a do António Lobo Antunes ou do José Saramago. Qualquer escritor não consegue ascender só porque quer. Estas escritas são de uma transcendência tão grande daquilo que é habitual fazer que só o Lobo Antunes e o Saramago conseguiram chegar lá.
“Um dos maiores receios do António Lobo Antunes era que a sua obra fosse esquecida.”
O próprio Lobo Antunes diz que a escrita é um exercício de muito trabalho para se chegar a uma voz. Acha que ao longo do tempo ele foi lidando melhor com essa culpa caso não estivesse sempre a escrever?
O António Lobo Antunes só não estava constantemente a escrever desde que ficou com demência. Antes disso, estava sempre a escrever. Acabava um livro, depois andava ali dois, três meses até encontrar o próximo livro, mas não deixava de escrever. Lembro-me de uma vez ter entrado no escritório dele e, numa dessas primeiras sete entrevistas, ele estava a olhar para uma lista de telefónica. Como não tinha começado o seu próximo livro, estava a ler as páginas amarelas como que a ver os personagens. Via um anúncio e dizia: “olha este anúncio é grande. Este médico deve ser muito rico para pagar um anúncio deste tamanho aqui nas páginas amarelas”. Ele olhava para aquilo como se estivesse a preparar a sua escrita. Também houve uma outra vez em que entrei e ele estava a olhar para a parede branca, sem estar a fazer nada. Nunca deixava de viver em função da escrita. A qualquer hora do dia só pensava naquilo que iria fazer ou naquilo que queria estar a fazer. Havia dias em que conseguia escrever uma página e havia dias em que conseguia escrever seis palavras.
Para ele a escrita não era fácil. Temos autores hoje em dia, chamo autores e não escritores, que escrevem dez, quinze páginas num dia. Ele não conseguia fazer isso. Aliás, ele escrevia à mão. Primeiro escrevia à mão, depois escrevia uma segunda versão maior, depois uma terceira versão maior e, depois, aquilo era datilografado. Então corrigia tudo o que tinha sido datilografado e cortava. O método criativo do António Lobo Antunes é um método ímpar no mundo que, se tanto, encontramos em mais cinco escritores. Daí o ele ser tão diferente e lamentar que nunca tenha recebido o Prémio Nobel. Nem hoje isso aconteceu, não é um processo fácil, é único. Só o António Lobo Antunes é que tem aquele processo.
“Recuso-me a ler as crónicas dele. Leria uma ou outra, mas recusei-me sempre a ler as crónicas dele. Não vou dizer que seja um subproduto, mas é apenas um produto que ele usava para ganhar dinheiro, mais nada.”
Porque é que acha que o escritor está constantemente a dizer que os jovens o conseguem compreender melhor?
Um dos maiores receios do António Lobo Antunes era que a sua obra fosse esquecida. Quando via que os jovens leitores entendiam os livros e compreendiam o que ele dizia, assim como a história, aquilo para ele era um sinal de que ia ser eterno: “Se os jovens conseguem compreender o que eu escrevo, vou ter leitores durante mais de 50 anos.” Para o António Lobo Antunes era extremamente importante, portanto, que os jovens entrassem naquela sua forma de escrever já que, muitas vezes, os leitores mais antigos não o conseguiam fazer. Não é por acaso que se falar sobre ele com meia dúzia de pessoas com mais de 50 anos, elas provavelmente vão dizer que gostam muito das crónicas dele, porque já não conseguem entrar nos romances que são extremamente diferentes e não são fáceis.
Sou exatamente o contrário, recuso-me a ler as crónicas dele. Leria uma ou outra, mas recusei-me sempre a ler as crónicas dele. Não vou dizer que seja um subproduto, mas é apenas um produto que ele usava para ganhar dinheiro, mais nada. Também para se dar a conhecer e poder dizer certas coisas, certas confidências que ele nos livros não podia dizer, mas nas crónicas podia. Os jovens não. Os jovens já não estão voltados para as crónicas. Os jovens entram de cabeça no romance e conseguem perceber o que ali está escrito.
Hoje foi o dia do anúncio do novo Nobel da Literatura, acha que as possibilidades de termos um novo Nobel português, ou do próprio António Lobo Antunes ganhar um Nobel, são mais limitadas?
A língua portuguesa tem grandes autores, mas a academia sueca é uma associação complicada. Os autores portugueses não têm um impacto nas vendas mundiais que justifique a atenção da academia. A Han Kang não é uma pessoa desconhecida. É uma autora desconhecida da maioria, mas para a minoria que compra livros e que escreve sobre livros é uma estrela. A Han Kang, há 10 anos, não era ninguém, hoje em dia é uma pessoa extraordinariamente conhecida. Não temos autores portugueses que sejam assim tão conhecidos. Acho que, mesmo no Brasil e em África, nos países de língua portuguesa, acho que o único que se destaca como candidato será o Mia Couto que tem uma obra impressionante, inventiva, com novas linguagens, portanto, será talvez o único que poderá ser incluído numa short list de autores para a academia.
“A literatura é, para a maior parte dos governos de língua portuguesa, um passatempo.”
Mas porque é que acha que há essa falta de conhecimento lá fora dos nossos autores?
Os nossos governos portugueses, brasileiros e africanos não se preocupam em financiar edições no estrangeiro e em divulgar os seus autores. A literatura é, para a maior parte dos governos de língua portuguesa, um passatempo. Eles não sabem. Se for perguntar a um primeiro-ministro sobre a obra do António Lobo Antunes, não sabe. Só leu as crónicas. No Brasil, se formos perguntar ao anterior presidente Bolsonaro, a única coisa que faz é vomitar sobre os escritores. Ele vomitou sobre o Chico Buarque. Portanto, é difícil. Não prezamos a língua portuguesa como um fator cultural no mundo e os nossos autores não são traduzidos.
Na grande parte dos livros que, hoje em dia, estão impressos em Portugal, aparece lá, “este livro teve a ajuda da embaixada, teve a ajuda do instituto”, e os nossos autores não têm esse apoio. A literatura em Portugal ainda é considerada uma coisa dispensável pelos governantes. Não têm essa capacidade de ver que a língua portuguesa que é, creio, a quinta mais falada no mundo, poderia ser um grande passaporte para o conhecimento dos nossos autores. Mas isso não nos interessa. Há alterações nesse sentido, mas são mínimas porque continuamos a não ter os autores traduzidos em países de todo o mundo. Teria de haver um outro apoio. O que os nossos governantes sabem dizer é: “Os jovens estão a sair de Portugal.” Mas não sabem apoiar os jovens.
O António Lobo Antunes sempre disse que a escrita para ele não era um prazer, era algo custoso. Mas no livro há uma parte em que ele quase diz que essa noção se está a inverter. Notou isso?
Ele sempre sofreu com a escrita, mas era a única coisa que lhe dava prazer. Ele não ligava para os livros impressos, era muito raro ele folhear um livro antigo. Mas o prazer que lhe dava a escrita, isso sim, era o único prazer. Não acho que tenha alterado muito a relação entre o que escrevia, o que publicava do princípio ao fim. Quando era mais novo, nos primeiros livros, era normal que se sentisse excitado e entusiasmado com o livro que saía. A partir daí, o grande problema dele era conseguir escrever o livro. Era uma luta muito grande. Eu assistia a situações complicadíssimas. Uma vez ele chamou-me num domingo à tarde para ler os primeiros quatro capítulos do novo livro, porque não estava a gostar e queria ouvir a minha opinião. Portanto, era muito complicada a relação dele com a escrita. Mas, desde que ele conseguisse escrever o parágrafo como queria, reduzir ao osso como ele gostava, não ter adjetivos, para ele era a maior felicidade.
Acha que houve um problema de comunicação com o livro que pode ter feito com que agora fique só ligado a uma determinada ideia? Um problema de comunicação que possa ter levado a que as pessoas associem o livro só à ideia da doença?
Penso que isso vai ser ultrapassado, até porque as redes sociais já esqueceram o assunto. Acho que a maior parte dos leitores vão procurar o livro e não estão a fazer comentários pejorativos, medíocres e hipócritas nas redes sociais. Vão, por isso, procurar o livro porque gostam do António Lobo Antunes. O livro vai viver por ele próprio. Tal como milhares de pessoas têm a primeira edição, agora querem saber ainda mais. Há muita gente que ainda era muito jovem quando a primeira edição saiu em 2009, portanto, em 15 anos, há novas gerações de leitores. Para mim, foi extremamente desagradável que uma matilha de pessoas que não leram o livro, que não sabiam o que estava no livro, que não sabiam como é que eu tinha tratado o assunto, se insurgissem assim nas redes sociais com insultos degradantes, que apenas confirmam como é a mediocridade dos autores desses comentários que ouvi nas redes sociais, aos quais não respondi porque não me compete. Acho que o livro vai ultrapassar essa polémica.