“Anora”, de Sean Baker: a complexidade das relações no contexto do poder financeiro

por João Estróia Vieira,    13 Novembro, 2024
“Anora”, de Sean Baker: a complexidade das relações no contexto do poder financeiro
“Anora”, de Sean S. Baker
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Este artigo pode conter spoilers.

“Anora”, dirigido por Sean Baker, é quase uma reimaginação audaciosa e contemporânea de “Pretty Woman” (as semelhanças são assumidas), em que o amor é exposto como uma construção frágil e, muitas vezes, ilusória.

Sean Baker, realizador celebrizado pelo seu esteticismo e estilização de “Tangerine” e “The Florida Project”, diz-nos logo ao que vem no cartaz promocional da sua obra: “o amor é uma fraude”. É esse o ponto de partida e de chegada para o tom cético do filme e prepara o público para uma história de desencantamento, onde o ideal do romance nos é vendido mas rapidamente subvertido. Baker, conhecido pelo seu cunho realista, cru e social, guia a narrativa para longe do conto de fadas e do típico filme romântico, levando o espectador a uma reflexão sobre as complexidades das relações humanas no contexto do poder financeiro e do desequilíbrio que essa posição de “superioridade” provoca.

“Anora”, de Sean S. Baker

A protagonista, Anora, que dá o nome ao filme e é aqui interpretada por Mikey Madison (conhecida principalmente pelos seus papéis em “Once Upon a Time in… Hollywood” ou mais recentemente em “Scream”) é uma mulher prática e resiliente que trabalha como stripper e que inicia um relacionamento profissional – e depois emocional – com Ivan (Mark Eydelshteyn), um jovem mimado, herdeiro de uma família russa de oligarcas. Para ela, o dinheiro é, até então, o caminho não só para a sobrevivência como para a própria liberdade. Entretanto, ao longo do tempo, Anora permite-se confiar em Ivan e acreditar que ele poderia oferecer algo mais que um mero acordo monetário. Uma (falsa) sensação de segurança e estabilidade que nunca tinha vivido. Isto leva a uma entrega emocional numa tentativa de conexão autêntica, mas que logo se depara com a superficialidade e o egoísmo do seu companheiro. Habituado a ter tudo o que quer da vida e de quem o rodeia, Ivan acaba por ver em Anora uma extensão do seu status e privilégio social, transformando Anora numa peça do seu jogo de domínio, posse e confronto com os seus pais. Ela é, apenas, mais uma brincadeira, um objeto com fim cómico que só o poder monetário proporciona.

O contraste entre Anora e Ivan é brutal: enquanto ela quer uma intimidade que transcenda o material, ele, acostumado a ver as pessoas como ornamentos na sua vida, acaba por não a ver ou tratar além de um acessório de luxo. A forma como a família de Ivan tenta acabar com essa relação, abruptamente e como se de mais uma brincadeira do seu filho se tratasse, é usada para Baker criticar a “elite” que se apoia no dinheiro como a única medida de valor, enfatizando assim como essa falta de valores e a defesa do seu estatuto social se sobrepõem a qualquer conexão humana genuína (ressalve-se neste contexto uma cena entre Anora e a mãe de Ivan quando estes tentam anular o casamento). Baker mostra-nos de forma vil como o poder económico subverte princípios humanos básicos como a educação, a empatia ou a consideração pelo próximo.

O último acto transporta Anora para a desilusão e descrença, quando ela se começa a permitir sonhar com a possibilidade de uma intimidade real – um relacionamento em que seja vista além do desejo sexual objetificado – e a confiança até então depositada em Ivan é traída. A busca por amor e aceitação desvanece assim, para acabar quebrada e desesperançada.

“Anora” é uma obra que se recusa a mascarar as duras realidades das relações que surgem sob o peso do dinheiro e do poder. Baker conduz essa história para um final que não oferece consolo, apenas uma verdade amarga: o amor, quando contaminado pela desigualdade e pela posse, torna-se apenas mais uma forma de exploração humana. A jornada de Anora é um grito de alerta para os perigos de um mundo que valoriza mais o que se tem do que quem se é e onde a verdadeira intimidade pode ser uma ilusão distante. “Anora” é, sobretudo, um filme extremamente bem filmado e encenado, com bom sentido de humor e ritmo agradável, protagonizado por dois atores que nos trazem para dentro da sua jornada. Uma obra marcante de Sean Baker que culmina numa cena final intimista e triste mas esperançosa, elevada pelo brilhantismo de uma nova estrela, Mikey Madison, que ajuda a transportar esta obra a forte candidata ao Óscar de Melhor Filme.

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