Entrevista. José Valente: “A minha postura perante a arte e a vida corresponde à minha personalidade.”

por Lucas Brandão,    21 Novembro, 2024
Entrevista. José Valente: “A minha postura perante a arte e a vida corresponde à minha personalidade.”
Fotografia de André Henriques (www.ahphoto.pt / ig @ahphoto_gigs)

Talvez possamos dizer que José Valente é um dos segredos mais bem guardados da música em Portugal. Num caminho que já vem longo (“Os Pássaros Estão Estragados” ou “Serpente Infinita” já têm mais de cinco anos), mesmo com uma recente referência feita num canal generalista da televisão, ainda por cima em horário nobre, não são muitos os sinais vitais da escuta ativa da sua música fora do meio, pelo menos de forma evidente. Ainda assim, muitos já terão passado e acabado por se sentar e se deslumbrar com a sua viola de arco (familiar do violino), que é bem mais do que passar das pautas às cordas. A música de José Valente desafia-se sempre a ir mais longe, à procura de diálogos e de plataformas de encontro com outras realidades, com outras musicalidades, mostrando que é mais o que as une do que aquilo que as separa. “Quem é o José Valente?”, é o repto lançado pelo seu novo trabalho discográfico, em muito resultado desses desafios pessoais e dessas descobertas. A resposta foi aquilo que procuramos obter (leia-se a primeira parte da entrevista aqui).

Fazes-te acompanhar de uma lista ampla de colegas, nomeadamente o João Geraldo (no violoncelo e no baixo elétrico), o José Silva, o Tiago Manuel Soares e o Luís Bittencourt (na percussão), o António Ribeiro e a Patrícia Costa (voz) e o João Diogo Leitão (na viola braguesa). Qual foi o critério de juntar todos estes músicos?

Não há um critério predefinido. Há sim uma intuição e exigência que rege uma série de escolhas. Em primeiro lugar, é preciso que eu tenha admiração pelo trabalho artístico de cada interveniente. Se não sou um adepto da sua música, então para quê convidá-lo a entrar no meu universo? Como, felizmente, já conversei bastante com todos os músicos convidados, sei que há alguma sintonia de ideias sobre as várias nuances que caracterizam a nossa actividade. A partir do momento que há uma unidade na atitude e no pensamento, mesmo que (e ainda bem) cada músico se manifeste à sua maneira, há uma forte probabilidade de entendimento. Também fiz opções estritamente musicais, obviamente. Por exemplo, eu toco a “Chuva para Naná” só com a minha viola nos concertos.

No entanto, quando comecei a conceber o arranjo para disco, conhecendo o trabalho do João Diogo, e tendo tocado com ele já várias vezes, tornou-se muito evidente que eu ganharia uma grande riqueza textural, se tivesse a sua viola braguesa neste tema. Também optei por usar imensa percussão no álbum. A percussão tem um leque de instrumentos muito diversificado, é magnífica. Já trabalhei com o José Silva mais do que uma vez e, por isso, sei que ele me oferece inúmeras propostas sonoras capazes de melhorar artisticamente o que eu estou a inventar. O mesmo princípio se aplica no caso do Tiago Manuel Soares e do Luís Bittencourt. Aliás, no caso de todos os participantes do disco. Felizmente, consegui convocar para o meu disco músicos muito talentosos, absolutamente particulares na sua capacidade, com uma sensibilidade muito especial. 

Apresentaste o teu novo disco em algumas salas, como nos Maus Hábitos, no Porto, ou no Festival Instrumensal, em Coimbra. Qual foi o feedback global dessas prestações, no que toca à tua relação com os públicos?

Foi muito boa. O concerto de apresentação é diferente do disco. No concerto toco com as minhas duas violas, a Presença (acústica) e a Diamante (híbrida), toco duas peças acusticamente e as outras com as pedaleiras, faço uma série de transições aproveitando o humor e a ironia dos depoimentos gravados, não cumpro a ordem nem sequer o repertório do disco (troquei duas músicas do álbum por duas que, provavelmente, integrarão um disco futuro) e não falo durante o concerto todo, excepto mesmo na última estância do concerto, no último segundo. No Maus Hábitos, o clima foi um pouco mais familiar, porque algumas pessoas do público estavam contextualizadas. Porém, em Coimbra não. Em Coimbra, à excepção talvez do meu agente e da minha produtora, acho que ninguém sabia muito bem ao que é que vinha. Essa circunstância não é má, pelo contrário, é desafiante. Foi bom tocar para pessoas que não conhecem o meu trabalho.

Os depoimentos lançados nos concertos acrescentam uma componente cómica e estranha que acaba por ser bastante sedutora. E depois, eu preparei-me, a música estava nos dedos. Eu preparo-me sempre o máximo possível para os concertos. Os acidentes que acontecem são logísticos e resolvem-se. A experiência, obviamente, ajuda-me a lidar com os imprevistos. E, convém não esquecer que os imprevistos também são convocatórias para imaginar outros destinos e opções para uma situação musical. Mas estes são aspectos normais de qualquer concerto. O público que conversou comigo no final, confirmou que o espetáculo que eu montei está bem elaborado, está consistente. Porque estas duas atuações no Porto e em Coimbra também foram um teste.

Foste o rosto da iniciativa Sibila Bilingue, que uniu idiomas, culturas, musicalidades, texturas com base na atualidade da cidade do Porto. Qual foi o resultado final desta experiência?

O concerto que tu viste foi a 2ª edição. A primeira edição teve muito impacto e eu pensei, ingenuamente, que, depois de um resultado tão potente, o nosso trajecto (da equipa e do projecto) ia ser mais fácil. Exatamente devido a este sucesso que, inclusivamente, nos consagrou com dois prémios nacionais: um do ICOM (Comité Nacional Português do Conselho Internacional de Museus) e outro da APOM (Associação Portuguesa de Museologia). Porém, nesta 2ª volta, fomos obrigados a atravessar um processo complexo e duro, que sofreu vários retrocessos. Regressámos demasiadas vezes ao ponto de partida. Felizmente, ultrapassámos muitas barreiras, algumas delas incompreensíveis, e o resultado final foi fabuloso.

Os ensaios também foram experiências desafiantes e apetitosas. Gostei muito de trabalhar com os músicos emigrantes. Alguns deles não conseguem ler uma pauta, mas têm imenso conhecimento e experiência. Por exemplo, aconteceu nos ensaios mais do que uma vez: eu olhava para a Batucada Radical, fazia uma expressão facial ou articulava um gesto e eles sabiam, intuitivamente, o que é que eu queria. Todos os músicos das comunidades emigrantes demonstraram uma disponibilidade de entrega inexcedível.  Isto sim, é gostar e perceber o que é isto de fazer música. Porque fazer música não pode ser um ato trivial, aborrecido, com um propósito superficial e egoísta. Não pode ser motivado pelo mero anseio materialista. Não pode ser um capricho. Não quero revelar o que aprendi sobre as vidas dos participantes. Posso dizer que alguns passaram por situações muito complicadas. Hoje desejam um lugar seguro e saudável para as suas famílias. Perante várias contrariedades, estes músicos apareceram sempre felizes e enérgicos para os ensaios.

Por todas estas razões é que eu, antes do concerto começar, tive aquele arrepio na espinha que todos sentimos quando absorvemos algo especial. Porque foi aí, caraças, que senti: isto vai mesmo acontecer! Nós vamos mesmo dizer estas coisas, vai mesmo acontecer, não há fuga possível, nós vamos expor isto e criar estas sensações! Vamos dizer isto, vamos criar esta emoção, vamos criar este pensamento também. Porque o concerto de Sibila Bilingue foi extremamente político. Iniciar e terminar o concerto com “EU SOU DAQUI”, ou ter um cantor negro a anunciar com a sua voz grave “não hei de viver sem saber / qual a cor da liberdade” (do poema “A Cor da Liberdade” de Jorge de Sena) são propostas musicalmente ricas, que transportam consigo um estado de espírito humanista e livre. Sibila Bilingue representa uma afirmação, através da música, de um ideal social para o Porto: uma cidade multicultural, tolerante e justa. Que resiste às tendências individualistas e racistas que pretendem invadir o nosso espaço público.

Pensei nisso, que deve ter sido um projecto difícil de montar quando assisti no Jardim de São Lázaro…

A determinada altura compreendi que as pessoas estavam a participar no projecto, no fundo, pela relação que criámos, pela convivência e respeito, pela relação que tinham com a equipa e não tanto devido a uma conexão institucional. Percebi, ao testemunhar o compromisso, as reações dos intervenientes e do público nos concertos, a maneira calorosa como o Elton [Prudêncio] me abraçou depois de ter surpreendido o mundo com a minha/sua canção (em que foi solista) e com a sua voz, as conversas que tivemos, etc. que tudo isto gerou uma química muito amiga. Assim, a relação que ficou foi a relação que os participantes estabeleceram com quem trabalhou, não com a instituição. As instituições que promovem este tipo de projectos têm que entender que eu, a directora do projecto, a produtora e o mediador, não construímos apenas um excelente concerto. Também fomos os condutores de um diálogo humano e humanista. E isto é muito importante, é uma grande qualidade. Eu não sou apenas valioso devido ao meu talento criativo. Sou valioso devido à minha capacidade de desenvolver este diálogo e a consequente relação. 

Mas há outra coisa: por exemplo, escutei o Elton num outro evento, e senti uma enorme vontade de transportar aquele talento para um outro patamar. Fiquei convicto de que seria capaz de inventar uma plataforma para que a sua performance fosse impressionante. Para que ele abrisse a goela e incentivasse um clima musical tão vibrante e emocionante que, quando acontecesse, o ouvinte deixaria de pensar sobre fronteiras, deixaria de pensar sobre o que é que ou que não é certo na estética. Apenas sorveria um jarro de sensações e confirmaria: gosto de música! Ter conseguido, em Sibila Bilingue, este tipo de energia foi espetacular. Chegar a esses momentos, primeiro na composição e mais tarde nos ensaios, e experimentar e confirmar a intenção pretendida é algo que sabe, por e simplesmente, muito bem. 

Sinto que a tua música acaba por fazer aqui uma amálgama de um discurso mais erudito, um outro mais vanguardista, um outro popular e, depois, o mais corriqueiro, do dia-a-dia. É esse o teu objetivo de chegar a um registo único e verdadeiramente congregador?

Sim, mas isso é algo que eu ambiciono desde sempre. Eu acredito na aplicação de uma mistura de vocabulários para a criação de um ou mais discursos. Prefiro deambular entre sonoridades e suas características do que cingir-me a um só espectro musical. Porque eu sou livre. Gosto de música que é livre. Independentemente desta se revelar no seio da música erudita, do samba ou do heavy-metal. Não se trata de motivar uma liberdade irresponsável e narcísica, em que se usa o som para um deleite pessoal, sem quaisquer restrições e cuidados. Trata-se sim de acreditar que tudo é possível, de que se pode utilizar todo e qualquer tipo de música para comunicar qualquer coisa. A intenção criativa deve ser livre, sem quaisquer prisões, preconceitos e, acima de tudo, sem agendas pessoais, sem caprichos pessoais. Já basta o egoísmo inerente ao próprio acto criativo!

Além disso, não adoro esta organização engavetada e insuficiente que impera nos dias de hoje. Promovem-se os objectos multidisciplinares, os artistas transdisciplinares, mas não se cultiva a verdadeira liberdade estética. Tudo está codificado. Se um artista plástico também faz música, provavelmente a sua música tem uma componente electrónica, é abstracta e aparenta experimentalismo em todas as suas instalações. Se um comediante também é cantor, arranha uma guitarra e faz covers com letras irónicas na rádio. Se se trata de uma colaboração entre a poesia falada e o jazz, nunca falta uma groove e o ride pseudo swingado no prato que identifica o estilo musical. Se se trata de música clássica, cruzes credo se não se toca pela milésima vez uma obra, respeitando normas interpretativas com mais de um século de opinião, ainda para mais desafinando pelo caminho. Que falta de imaginação, de fôlego, de atrevimento! Neste século, neste período em que quase tudo está ou é gravado, eu quero aceder a uma estética que transcende estes códigos de reconhecimento. Como dizia, eu tenho este desejo de imaginar música assente na mistura de vocabulários desde que comecei a assumir uma voz autoral. Como é evidente, com o tempo, com a prática e com a pesquisa, com a procura e a descoberta, a aplicação destes princípios e anseios foi-se tornando cada vez mais eficaz.

Quero falar-te de um termo muito interessante, que não fui eu que inventei, mas que gosto muito. Acho que quem o inventou foi um músico brasileiro chamado Paulo Ró. Pelo menos, foi da boca dele que eu ouvi este termo pela primeira vez. A designação é “vanguarda popular”. O Sibila Bilingue, por exemplo, foi construído a pensar nesta hipótese de vanguarda popular. Se calhar, este é o tempo para esbater as distâncias entre certas tradições e géneros musicais e conceber novas configurações, assentes na simbiose. Porém, esta simbiose tem que ser e estar viva, tem que vibrar e refletir a essência de cada estilo que conflui.  Ultimamente, quando vejo espetáculos ou quando ouço discos… bom, o disco pode enganar, mas as actuações ao vivo não enganam…sinto que falta urgência. Falta frescura e vivacidade. Quando ouço música erudita, por exemplo, analiso as interpretações a partir deste prisma. Eu gosto de sentir que a música é pujante. Não interessa se se está a tocar Bach ou se se está a tocar Ligeti, a música tem que estar viva.

Um outro problema é que, apesar de estarmos no século XXI, apesar de termos acesso a uma panóplia inesgotável de músicas e culturas, ainda existem imensos preconceitos, ainda há uma gigantesca ignorância relativamente aos outros universos musicais. Relativamente a lógicas musicais não ocidentais ou somente não convencionais, se considerarmos como ponto de partida a música que é apregoada nos Conservatórios. Atenção, não estou a sugerir a eliminação da música dita clássica, da tradição europeia extremamente rica e significativa da pedagogia musical. Pelo contrário, sinto que é preciso aumentar a abrangência. Educar oferecendo mais intensidade musical, mais possibilidades. Educar para emancipar e não para delimitar.

Assim sendo, de que forma perspectivas o futuro da música portuguesa, tendo em conta que há muito revivalismo da música popular portuguesa e dos seus instrumentos?

Eu não tenho grande esperança. Como já expliquei nas respostas anteriores, sinto o país estagnado, constantemente preocupado com as aparências e pouco dedicado à beleza, à extroversão, ao incentivo artístico e cultural corajoso e entusiasmante. Portanto, este revivalismo parece-me ser mais um projecto construído para alimentar uma imagem de renovação. Até porque se trata de uma toada disfarçada com uma essência totalmente comercial. 

Como sempre, há excepções que confirmam a regra. Mas este é um sintoma antigo. Parece que o país está sedento por alcançar uma novidade. Contudo, deseja sempre que essa novidade seja simpática, totalmente perceptível e pouco incómoda. Que seja cinzenta, monótona e minúscula. Uma novidadezinha suave. Onde está o fascínio? Onde está a paixão? E onde está a exigência?

Fotografia de André Henriques (www.ahphoto.pt / ig @ahphoto_gigs)

A pergunta-mãe de todas e que não pode faltar é: “Quem é o José Valente?”

O José Valente? Parece-me que só uma pessoa bastante confiante sobre a sua personalidade ou sobre a sua existência é que poderia estar à vontade para colocar tantas dúvidas sobre a sua própria realidade. Tenho alguma dificuldade em descrever-me, porque sou um tipo complexo. Mas as pessoas que me rodeiam vão-me transmitindo sensações e opiniões e, por isso, já compreendi que sou consistente nas reacções. A minha postura perante a arte e a vida corresponde à minha personalidade. Aprendi em 2022 que a inquietação é um traço de personalidade, não é uma característica estética. Percebi que o facto de teres tido uma determinada experiência musical não te torna, automaticamente, uma pessoa desassossegada. É mesmo um traço de personalidade. Eu nunca estou satisfeito, até quando as coisas correm muito bem. Nessas fases, começo logo a pensar no passo seguinte, no próximo desafio, num desafio ainda maior. Dizem-me que sou um tipo bastante sólido. Não costumo andar com rodeios, sou bastante directo, não uso máscaras e digo o que penso. Acredito que é mais importante respeitar a qualidade, sobretudo a qualidade humana, do que a hierarquia, o posto atribuído. Acredito na justiça e na verdade (apesar da sua subjectividade, mas isso é outra conversa). 

A autoridade pela autoridade, ou seja, a autoridade ignorante, cega, surda e muda, irrita-me. Sou anti-praxe e não gosto muito de fardas nem de nenhum símbolo ou situação que represente a massificação de ideias ou sentimentos. Não aprecio as religiões e sou ateu. Sou apoiante do Futebol Clube do Porto desde criança por causa, sobretudo, do irreverente artista plástico, infelizmente já falecido, Armando Azevedo. Algo eu devo ser, porque, felizmente, estou rodeado de pessoas muito amigas, muito importantes que me ajudam a apreciar esta coisa estranha mas fantástica que é a vida. Acima de tudo, “QUEM É O JOSÉ VALENTE” é um obrigado a todas essas pessoas que me ajudam a sonhar.

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