A Hiroshima de Ken Domon (e do mundo)
Ken Domon é, o primeiro fotógrafo a ter um museu dedicado a si na sua cidade natal, Sakata. Como legado deixou um vasto conjunto de fotografias que clarificam a sua imersão, ou predisposição, para a captura de momentos que refletem a realidade do seu tempo antes e depois da Segunda Guerra Mundial. A fotografia Bathing in the River in front of the Hiroshima Dome (1957), pertencente à série Hiroshima, é disso exemplo. No entanto, sem título, a fotografia tornar-se-ia em mais um lugar. Sem contexto, a imagem seria um mero objeto com uma história que nos ultrapassa. Reparem-se nas formas do edifício que nos elucidam para um tipo de arquitetura particular. Direcione-se o olhar para a cúpula que num primeiro momento poderia lembrar-nos um edifício religioso ocidental. Porém, quando a perceção visual traceja um novo caminho de entendimento, quando a reflexão se torna mais profunda, a ideia pré-concebida altera-se. Caracteres orientais demarcam parte daquela paisagem. O título que emerge do primeiro confronto com a fotografia retira a primeira grande dúvida. É Hiroshima, é no Japão que brincam as crianças banhando-se, no ano de 1957. É uma ruína de guerra e não a decadência temporal, é uma ferida no espaço, é a memória.
A ruína, a arquitetura, salientada pela sua dimensão e pela sua imponência no cenário, foi um dos poucos edifícios da cidade que sobreviveu à calamidade da Segunda Grande Guerra. A estrutura, que até aos dias de hoje persiste, foi preservada e considerada património da UNESCO nos anos 50. A sua sobrevivência é testemunho da sua significância e simbolismo. Um simbolismo que a própria cidade possuiu. Caraterizada desde o período Meiji pelo cumprimento de funções militares, é, ironicamente, no pós-guerra, transformada e reconhecida como a cidade da paz, identidade pela qual o mundo Ocidental a reconhece. Reconstítuida e renovada a partir do plano do grupo de Kenzo Tange, em 1949, não obstante as críticas, ela tornou-se símbolo de um dos momentos mais trágicos da história da humanidade. Assim como o próprio Memorial da Paz, tantas vezes salientado no filme Hiroshima, mon amour de Alain Resnais, ela é uma metáfora para a inevitabilidade da recordação: porquê negar a óbvia necessidade de recordar?
Sem manipulações, o fotógrafo respeita a integridade de um tempo e espaço. Não existem encenações. A sua filosofia enfatiza e recorda a condição da existência do ser, o realismo que tanto explora e preza. A espontaneidade é evidente, podendo fazer-nos lembrar alguns exemplos da fotografia de rua ou da fotografia humanista. Contudo, apesar dos títulos e categorias que atribuímos às imagens, elas ultrapassam-nos. As fotografias são, antes de todas as categorizações, o reflexo ou a crença na perpetuação; são a memória viva e estática, são o desejo de captar um instante para lá da ideia tangível de tempo. São e sempre serão a pedra da arquitetura que teima em não ceder.
Artigo de: Jéssica Silva