Série Palestina: Ep.2 – Belém, do milagre da vida à banalidade da morte
O que vais ouvir, ler ou ver foi produzido pela equipa do É Apenas Fumaça, um projecto de media independente, e foi originalmente publicado em www.apenasfumaca.pt.
Este é o segundo episódio da série “Palestina, histórias de um país ocupado”. Se ainda não ouviste o primeiro, “Ramallah, a cidade artificial”, ouve aqui, porque vais perceber melhor algumas das histórias que contamos hoje.
[Abaixo podes ler a transcrição de toda a audiorreportagem, incluindo a tradução, para Português, de todas as declarações, citações e diálogos tidos em inglês.]
“O meu nome é Aboud Shadi, um refugiado palestiniano de 13 anos. Estava aqui mesmo, parado com os meus amigos, quando um sniper israelita me matou com um tiro. A minha alma vai ficar aqui, a perseguir o assassino e a motivar os meus colegas de turma. Questiono-me se a comunidade internacional trará justiça para as crianças palestinianas.”
Esta é a mensagem que se lê num cartaz à entrada do Aida Camp, um campo de refugiados em Belém, na Cisjordânia, Palestina. Abaixo, vê-se uma enorme fotografia de Aboud Shadi. Rapaz moreno, cara de miúdo, com o cabelo rapado de lado, e uns olhos castanhos, enormes. Na fotografia, sorri. Anas Abu Srour, um dos coordenadores do Aida Youth Center, uma organização que apoia jovens no Aida Camp, explica-nos o que aconteceu:
Anas – Ele saiu da escola e eles mataram-no quando estava parado, como eu estou agora.
Maria – De braços cruzados.
Anas – Sim, e o sniper estava onde os soldados estão. Ele não estava a fazer nada. Ele estava só parado e o sniper disparou contra o peito dele e ele morreu imediatamente. Tinha 10 anos e não fez nada.
Isto aconteceu a 5 de Outubro de 2015. Abdulrahman Shadi Obeidallah — ou Aboud, como gostava que lhe chamassem — tinha 13 anos. Tinha saído da escola não há muito tempo. Vestia ainda o seu uniforme azul e tinha a mochilapousada no chão, ao seu lado. Estava exatamente no lugar onde hoje está o cartaz com a sua fotografia, com um grupo de cerca de dez amigos — alguns da mesma idade, outros mais velhos.
Costumavam parar na estrada principal do Aida Camp, quase por baixo do portão que sinaliza a entrada do campo. Por cima, ainda hoje se vê uma chave enorme, de nove metros de comprimento, que simboliza o retorno das famílias palestinianas às suas casas e vilas, das quais foram obrigadas a sair, em 1948.
Como fez a família de Aboud. Vieram de Al-Qabo, uma vila perto de Belém, com cerca de 300 pessoas. Fugiram, expulsos, e foi no Aida Camp que vieram procurar refúgio, até hoje, 70 anos depois.
Aboud foi morto com um tiro no peito, disparado por um sniper do exército israelita, que se encontrava a não mais de 200 metros, na mesma rua. Foi ainda levado pela família ao hospital mais próximo, em Beit Jala, onde foi operado. Mas não resistiu ao ferimentos.
“Ele foi assassinado. Foi morto por um sniper. Nós, como palestinianos, vamos continuar a lutar contra esta ocupação. E vamos levar os líderes do governo israelita ao Tribunal [Penal] Internacional para os punir, porque eles deram ordem diretas para os soldados matarem Abdulrahman.” – Munther Amira
Este é Munther Amira, um dos moradores no campo.
Logo após a morte de Aboud, o Exército israelita negou que tivesse sido disparada qualquer arma de fogo. Uns dias mais tarde, e perante as evidências, a força militar confirmava o assassínio de Aboud, dizendo que o tiro que o matou: “Não foi intencional”. O alvo do sniper não era afinal a criança de 13 anos mas, sim, um adulto que estava próximo. Um palestiniano que, segundo as forças armadas de Israel, era um dos organizadores de uma onda de protestos que durava há já várias semanas em toda a Cisjordânia. Disseram que a bala fez ricochete no chão e acertou em Aboud.
Mas este suposto acaso não teve consequências, como explica Anas, do Aida Youth Center, que ouvimos há pouco.
Ricardo – E o que é que aconteceu ao soldado que matou o rapaz que estava aqui parado?
Anas – Nada, absolutamente nada. E não vai acontecer.
Um mês antes da morte de Aboud, a 16 de Setembro, numa altura em que se intensificavam os protestos palestinianos, Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelita, declarara, “guerra contra os atiradores de pedras”.
Umas semanas depois da morte de Aboud, um oficial do exército israelita gritava a um megafone, enquanto patrulhava o campo: “Pessoas do Aida Camp, nós somos as forças da ocupação. Vocês atiram pedras e nós vamos gasear-vos até que todos morram. As crianças, os jovens, os mais velhos — vão todos morrer. Não deixaremos nenhum de vós vivo“.
O funeral de Aboud aconteceu no dia seguinte à sua execução, e foi usado para fazer uma protesto político. Num vídeo da Palestine Monitor – uma organização de defesa dos Direitos Humanos – vêm-se milhares de pessoas com bandeiras palestinianas e do Fatah, o partido político que governa a Cisjordânia. Gritam cânticos enquanto passam pelas ruas estreitas do Aida Camp, e algumas pessoas choram. O corpo de Aboud está enrolado numa bandeira da Palestina, e tem um pano tradicional, de quadrados brancos e pretos, a tapar-lhe a cabeça. Vai numa maca que passa por cima das cabeças de quem protesta, levado em braços pela multidão. As autoridades israelitas transformaram-no num mártir.
Neste capítulo, “Belém, do milagre da vida à banalidade da morte”, vamos conhecer o Aida Camp, o campo de refugiados onde tudo isto aconteceu. Bem vindas e bem vindos ao É Apenas Fumaça, eu sou o Ricardo Ribeiro. E eu sou a Maria Almeida.
O mercado principal de Belém cheira a especiarias um pouco por todo o lado. Cominhos, açafrão, paprica, anis, noz moscada. Vê-se falafel acabado de fazer, khubz – pão árabe, tâmaras, romãs, e chávenas cheias de café. Mas vende-se também roupa, brinquedos e, claro, figuras religiosas, ou não fosse esta a cidade onde, segundo o Novo Testamento, nasceu Jesus Cristo. Aliás, a Igreja da Natividade, construída nesse mesmo lugar, está mesmo ali ao lado, e leva a esta cidade da Cisjordânia milhares e milhares de peregrinos, todos os anos.
Mas, perto deste mercado fervilhante, e de todos os outros lugares por onde passam as excursões turísticas, vê-se uma das mais cruas imagens da ocupação israelita: o muro.
*Legenda: No mapa, a Igreja da Natividade e o Aida Camp, rodeado pelo muro.*
O muro da separação – ou muro do apartheid, como lhe chamam os palestinianos – começou a ser construído em 2002, mas era uma ideia já com algumas décadas. Em 1992, depois de uma rapariga palestiniana da cidade de Gaza ter assassinado uma outra rapariga israelita, em Tel Aviv, Yitzhak Rabin, que na altura concorria ao cargo de primeiro-ministro de Israel, e que mais tarde ganharia as eleições, dizia que era necessário “tirar Gaza de Tel Aviv”. Sugeriu várias vezes que se criasse uma separação física entre Gaza, território palestiniano, e o território que Israel reclama como seu.
Com os acordos de Oslo, assinados um ano mais tarde, em 1993, veio o reconhecimento do estado de Israel, por parte da Organização para a Libertação da Palestina, liderada por Yasser Arafat, (ainda que não tenha sido estabelecida e acordada formalmente qualquer fronteira). Mas os acordos trouxeram também o amadurecimento de uma ideia defendida por Israel, que privilegiava a segurança acima de tudo, e a defesa contra o que chamava de “terrorismo”.
“Temos de decidir a separação como uma filosofia. Tem de haver uma verdadeira fronteira”, dizia Rabin, em 1994. Israel pô-la em prática nesse ano, erguendo uma cerca de metal que fechava Gaza dentro de si própria, criando uma fronteira até hoje não reconhecida internacionalmente e nunca aceite pelas autoridades palestinianas. Ainda hoje, a cerca existe.
Yitzhak Rabin foi assassinado no ano seguinte, em 1995, por um estudante israelita que se opunha ao acordo de paz, e a expansão do muro da separação foi adiada até Ariel Sharon chegar ao poder, em 2001, durante a Segunda Intifada.
Intifada, em árabe, significa “abanão, agitação”, e é o nome dado a uma série consecutiva de grandes protestos e confrontos violentos na Palestina. Vamos falar sobre as duas Intifadas palestinianas mais à frente nesta série, mas o que importa perceber agora é que durante a Segunda Intifada, que decorreu entre 2000 e 2005, cerca de 1.300 pessoas israelitas morreram. Do lado palestiniano, foram 3.300, uma média de duas mortes por dia.
Nesses cinco anos, metade desses israelitas morreram nos 138 ataques bombistas suicidas feitos na altura. Foi com o objetivo de diminuí-los, protegendo a sua população, que o governo israelita de Ariel Sharon decidiu criar o muro.
E assim começou a ser construída a barreira física que hoje divide aquele território. Ao longo de 700 quilómetros, a divisão é parte em cimento (paredes de oito metros de altura, duas vezes maiores que o muro de Berlim), parte em rede de metal, repleta de sensores eletrónicos e câmaras de filmar. Em locais estratégicos há também torres de vigilância, onde os soldados Israelitas vigiam quem passa.
Para levar a cabo esta empreitada, Israel procurou apoio internacional. Em Julho de 2003, Ariel Sharon encontrou-se com George W. Bush, então presidente dos Estados Unidos da América. No fim, discursaram numa conferência de imprensa conjunta. Lado a lado, nos jardins da Casa Branca, em Washington D.C., Ariel Sharon diz:
“Hoje tivemos uma conversa útil, onde examinámos formas de avançar com o processo de paz entre nós e os nossos vizinhos palestinianos. Neste contexto, surgiram várias questões:s: a cerca de segurança, que fomos forçados a construir para defender os nossos cidadãos contra atividades terroristas; a remoção de postos avançados não autorizados e o congelamento dos colonatos na Judeia e Samaria.” – Ariel Sharon
Nas imagens vê-se Ariel Sharon algo atrapalhado. Não consegue virar a próxima folha do discurso, que está presa, e George W. Bush dá-lhe uma mãozinha.
“Obrigado. Como pode ver, precisamos da sua ajuda. A cerca de segurança vai continuar a ser construída, com todos os esforços para minimizar o desrespeito pelo dia a dia da população palestiniana.” – Ariel Sharon
A verdade é que os ataques suicidas diminuíram. Mas o muro, que terá um custo estimado de mais de 3 mil milhões de dólares – quando estiver acabado -, serviu também para confiscar território palestiniano.
Segundo a B’tselem, uma organização de direitos humanos israelita, 85% do muro está projetado (e construído) para lá da chamada “Linha Verde” – a fronteira proposta pela ONU, em 1949, aquando da separação do território em dois (e sobre a qual falamos no primeiro episódio desta série). Isto quer dizer que, segundo as Nações Unidas, cerca de 10% da Cisjordânia fica no lado que Israel atualmente ocupa: 57.000 hectares de terra, em grande parte, as áreas mais férteis da zona e, também, a parte Oriental de Jerusalém, cidade que tanto israelitas como palestinianos consideram a sua capital.
A criação do muro implicou que mais de 10.000 palestinianos ficassem presos do lado de lá da barreira – território de que Israel se apoderou – separados do resto da Cisjordânia. Isto sem contar com os mais de 300.000 que vivem em Jerusalém Oriental, igualmente presos do lado de lá do muro. E por isso, na prática, o que aconteceu foi que o muro não só lhes cortou a ligação das casas às terras, que eram o sustento de muitos, mas também restringiu o acesso a serviços básicos e a emprego.
No livro “Lords of the Land: The War Over Israel’s Settlements in the Occupied Territories”, o jornalista Avika Eldar, e o historiador Idith Zertal, ambos israelitas, escrevem que a barreira foi construída “sem avaliação e sem lógica, a não ser o propósito de incluir o maior número de colonatos possíveis do lado ocidental Israelita e de dividir e confiscar terras palestinianas. O objetivo era implementar a ideia de bantustão“.
O “bantustão” (ou bantustan, em inglês) era um conjunto de territórios que o governo sul-africano, no início do século XX, reservou para as populações negras, com o objetivo de limpar etnicamente o país. Jamal Juma, coordenador da Stop The Wall, que acompanhámos no último episódio, explica esta ideia num vídeo publicado no Youtube:
“E aqui vou relembrar o que Ariel Sharon disse quando estava na África do Sul, em 1989: ‘Encontrei uma solução para os palestinianos: o bantustão’. Ele explicou: ‘Nos dias de hoje, não podes colocar as pessoas em carrinhas e atirá-las para lá da fronteira, mas podes criar uma condição que as convença a sair’. E isto é o que se chama «expulsão voluntária», porque ele não colocou as pessoas em carrinhas, apenas as fechou, separando-as das escolas, do trabalho, da suas cidades, das suas famílias, e eles ficaram ameaçados aqui e saíram.” – Jamal Juma
O muro é, desde o início da sua construção, considerado ilegal à luz do Direito Internacional. Em 2004, a Assembleia Geral da ONU pediu um parecer ao Tribunal Internacional de Justiça – principal órgão judiciário das Nações Unidas – e este considerou que Israel tinha a obrigação de parar a construção do muro, desmantelar a estrutura já construída e restituir o povo palestiniano pelos danos causados.
Até hoje, nada disso foi feito. Por outro lado, Benjamin Netanyahu, atual primeiro-ministro de Israel, mostrou querer ir além do plano inicial, e anunciou, em 2016, planos para circundar todo o território israelita com uma barreira de segurança para, disse, “proteger-nos dos predadores”.
De volta a Belém.
Tal como vimos ao passar no checkpoint de Qalandia, para Ramallah, no episódio anterior, também em Belém o muro serve como tela de protesto político. São vários os grafitis, as frases pintadas, os rostos desenhados.
Mas também pela cidade se desenham as paredes em protesto. Não muito longe do centro, vê-se um graffiti – uma criança de vestido cor de rosa a revistar um soldado. É de Banksy, um dos artistas mais conhecidos do mundo, e que tem em Belém algumas obras.
Anas – Olá! Prazer em conhecer-vos. Eu sou o Anas.
Maria – Eu sou a Maria.
Ricardo – Ricardo.
Anas – Sejam bem vindos. Prazer em conhecer-vos. Aqui vêm a maior chave do mundo.
Não há como não reparar nela. A escultura da chave de nove metros é feita de aço e pesa uma tonelada. Fica por cima do portão do campo. Anas diz-nos que esta é a maior chave do mundo, mas apesar dos esforços de várias organizações não entrou ainda para o livro de recordes do Guinness, segundo diz, por motivos políticos.
“Como vêem na chave está escrito: “não está à venda”. Porque a maior parte da comunidade internacional tentou compensar os refugiados mas sem o direito ao retorno à suas casas. Até agora, recusámos sempre fazer qualquer acordo sem direito de retorno às nossas casas. E isto é o símbolo que afirma que não nos esqueceremos das nossas terras. Eu sou o Anas, vivo no Aida Camp, sou um refugiado de uma vila chamada Bayt Nattif, agora destruída e transformada num colonato chamado Bet Shemesh.” – Anas Abu Srour
O direito de retorno para os refugiados palestinianos foi determinado pela ONU, em 1948. Na resolução 194, lê-se: “Aos refugiados que desejem regressar a suas casas e viver em paz com os seus vizinhos deve ser permitido o regresso o mais cedo possível, e deve ser paga uma compensação pelas suas propriedades, para os que escolham não regressar, e pela perda ou dano à propriedade que, de acordo com os princípios do direito internacional ou da equidade, deve ser tratada pelos governos ou autoridades responsáveis”.
Apesar de tudo, esta resolução nunca foi levada a sério e, até aos dias de hoje, nada disto foi posto em prática pelos vários governos israelitas. Por isso, ainda hoje existem campos de refugiados, como o Aida Camp.
O Aida Camp é um dos três campos de refugiados de Belém. Foi criado em 1950, depois da Nakba, ou “catástrofe” – de que falamos no primeiro episódio – e tem residentes de 35 vilas palestinianas, quase todas destruídas. A maior parte das refugiadas e refugiados vieram de Jerusalém ou das montanhas de Hebron, mais a sul. Em 1950, viviam aqui 1125 pessoas. Hoje, apertam-se 5.500, mais ou menos no mesmo espaço.
Ricardo – Uma das coisas que nos disse o Jamal Juma da Stop the Wall foi que existem algumas famílias que se recusam a procurar casas noutros locais porque a única casa para a qual voltariam é a sua casa.
Anas – Claro. Como eu. Eu tenho um apartamento fora do Aida Camp, mas o meu pai, a minha mãe e eu recusamo-nos a sair do Aida Camp. Temos o sonho de ir para as nossas terras. AInda estamos no Aida Camp porque se o campo não existir, o problema palestiniano vai ser ignorado. Ninguém vai querer saber dos palestinianos. Tudo o que aconteceu aqui na Palestina está relacionado com refugiados. Os israelitas querem o fim dos refugiados, para poderem dizer às pessoas: ‘Não existem refugiados, onde é que eles estão? A maior parte deles estão em cidades, na Europa na América, onde estão os refugiados?’. Mas se o campo existir, toda a gente vai ver que os refugiados existem.
A ONU tem uma órgão dedicado a estas pessoas: a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina e define uma pessoa palestiniana refugiada como alguém, “cuja residência normal foi a Palestina durante o período entre 1 de Junho de 1946 e 15 de Maio de 1948, e que perdeu a sua casa e os meios de subsistência como resultado do conflito de 1948”, incluindo também todos os descendentes de refugiados homens.
“Existem muitos refugiados na Síria, mais de 500.000. Na Jordânia, três milhões, até agora. No Líbano são mais de um milhão e meio. E em toda a Europa, América e Austrália são… não sei o número exato, mas é um número gigante.” – Anas Abu Srour
Segundo a ONU, os palestinianos são a maior população de refugiados do mundo, mais de cinco milhões, superando a Síria e o Afeganistão. Quase um terço, mais de um milhão e meio, vive em campos de refugiados na Jordânia, Líbano, Síria, Cisjordânia, Jerusalém Oriental, ou na Faixa de Gaza. Na Cisjordânia, vivem 800.000 refugiados. Na Faixa de Gaza, onde vivem quase dois milhões de pessoas, um milhão e trezentas mil são refugiadas.
A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina detém 58 campos de refugiados e emprega mais de 30.000 pessoas. Quase todo o orçamento da agência – 92% – vem de doadores internacionais, mas os seus maiores financiadores confundem-se também com os maiores aliados do estado israelita: Estados Unidos da América, União Europeia – Reino Unido e Alemanha estão no top cinco da lista.
Os Estados Unidos assinaram, em 2016, durante a governação de Obama, um memorando de entendimento para ajuda monetária a Israel num valor de 38 mil milhões de dólares, em dez anos. Segundo a Campaign Against Arms and Trade, o Reino Unido, desde 2015, exportou o equivalente a 320 milhões de libras esterlinas – o equivalente a 365 milhões euros, atualmente – em armas, licenças e material militar, para Israel. Ainda assim, é a Alemanha o país europeu com o maior volume de negócio com Israel no que toca a material bélico: mais de mil milhões de euros, entre 2003 e 2016.
“Usualmente, a maior parte dos doadores internacionais, os governos ocidentais, tentam forçar a sua visão económica (e, claro, política), que usualmente é má.” – Dawood Hamoudeh
Este é Dawood Hamoudeh, que já ouvimos no episódio anterior, em Ramallah – é membro do Farmers Union, um sindicato de agricultores, na Palestina. Um dos programas da ONU que tem trabalhado com diversos campos de refugiados na Palestina é o World Food Program, em português, Programa Alimentar Mundial, e distribui cabazes de comida a refugiados e outras pessoas com necessidades nutritivas. Este programa é alimentado mais ou menos pelos mesmos países que aparecem no topo da lista de doadores da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina.
“O World Food Program, por exemplo, distribuiu, em 2006, cerca de 120 milhões de dólares em cabazes de comida, e o ministério dos Assuntos Sociais distribuiu cerca de 140 milhões de dólares em cabazes de comida, financiados por doadores internacionais. Estamos a falar de cerca de 260 milhões de dólares. Agora, por cada tonelada de doações o sector da agricultura perde 1600 dólares. Então, em 2006 e 2007 as perdas estimadas foram de 98 milhões de dólares no setor da agricultura (ou 8%) por causa dos cabazes de comida. Desde o início do ano que estamos a lutar com o World Food Program, que é parte da agência das Nações Unidas e do Ministério dos Assuntos Sociais. Se eles colocarem 10% ou 20% destes cabazes vindos de cooperativas de mulheres e pequenos agricultores, serão cerca de 26 milhões ou 52 milhões de dólares, que seria mais do que todos os fundos que vieram para a agricultura em 2006.” – Dawood Hamoudeh
Segundo Dawood, as – ONG’s (Organizações Não Governamentais) estrangeiras e as Agências das Nações Unidas estão a competir diretamente com a economia palestiniana.
Ricardo – De onde vêm os produtos dos cabazes?
Dawood – A maior parte, não vem da palestina. São importados. Se calhar são reembalados na Palestina, especialmente produtos como trigo, arroz. Não plantamos isso aqui, de qualquer maneira. Óleo de milho.
Ricardo – O que estás a dizer é que vocês produzem alguns desses alimentos aqui na Palestina e que podiam comprá-los a pequenos agricultores.
Dawood – Como o azeite. Porque é que distribuem óleo feito de milho? Porque é que precisamos de importar óleo de milho vindo sei lá de onde e distribuí-lo em cabazes alimentares se somos produtores de azeite? E todos os anos o preço cai, porque não há mercado para esse azeite. De facto, de 1948 até hoje, como eles distribuem óleo de milho nos campos de refugiados, o gosto dos consumidores mudou. Portanto, hoje, não consegues convencer as pessoas nos campos de refugiados a fritar um ovo ou batatas com azeite. Como os aldeões fazem em West Bank. Eles usam óleo de milho, que tem uma sabor totalmente diferente. O que dizemos é o seguinte: ‘porque que é que distribuímos óleo de milho se podemos distribuir azeite?’ O cabaz alimentar é grande. Qual seria o dano se adicionássemos ou incluiremos produtos de alto valor [nutritivo], saudáveis, produtos locais como o tomilho, o mel ou xarope de uvas? Estes são produtos que fazem parte do pequeno-almoço ou do almoço locais e as pessoas já os compram em campos de refugiados ou outros sítios. Então porque é que precisamos evitar isso e focar-nos no arroz, por exemplo, ou no trigo. Vão a Gaza agora, vão aos mercados. A maior parte das pessoas que recebe trigo está a vender uma parte no mercado, para ter dinheiro. Porque é que não reduzimos a quantidade de trigo a colocamos antes uma percentagem para o tomilho, o mel, estes produtos locais?
Maria – E o que dizem as Nações Unidas das vossas queixas?
Dawood – Repara, a ONU ignora totalmente esta questão. E, de qualquer forma, diz que é um dano menor para o setor [agrícola]. Eles afirmam que todos esses fundos são para ajudar os palestinianos e nós estamos a tentar explicar que isso causa danos aos palestinianos, que se nos querem realmente ajudar precisam de consumir uma parte da nossa produção, em vez de competirem com ela.
O jornalista americano Ben Ehrenreich, escreve no seu livro “The Way to the Spring: Life and Death in Palestine”: “Grande parte da população palestiniana encontrou trabalho nas 2100 ONGs que surgiram nos anos seguintes a Oslo [nos acordos de paz assinados em 1993]. Quase todas essas organizações sobreviveram através do financiamento de doadores internacionais, acima de tudo norte-americanos e europeus. Os seus trabalhos refletem inevitavelmente mais as prioridades das nações doadoras do que as necessidades dos palestinianos. Os doadores, afinal, apesar dos protestos sobre Direitos Humanos e Direito Internacional, eram aliados do ocupante”.
Kwame Nkrumah, ex-presidente e ex-primeiro ministro do Gana descreve isso como “neocolonialismo”. Diz que é apenas o imperialismo a mudar de tática. Citando um texto seu, de 1965: “Isto significa (…) que ele [o poder colonizador] está a dar independência aos seus antigos sujeitos, a ser seguida por uma “ajuda” [entre aspas] para o seu desenvolvimento. Debaixo de tais frases, no entanto, ele concebe inúmeras formas de alcançar objetivos que eram conseguidos através do colonialismo nú.”
Anas – Vamos ver o campo de cima porque depois fica de noite.
Ricardo – Sim.
Anas – Vamos. Não é fácil subir. Não está acabado. Têm de ter cuidado, ok?
Ricardo – Perfeito. Então, onde estamos a ir?
Anas – Lá acima, para ver onde está o campo localizado, o que está à sua volta, para ver o muro, os colonatos à volta do campo… Isto é o Aida Camp.
O cântico que ouvimos no terraço do Aida Youth Center é a chamada para a reza muçulmana – adhan – e é cantada através dos megafones que a mesquita do campo tem no topo da sua torre – o minarete – o edifício mais alto de todo o campo. Cá de cima vêem-se as ruas estreitas, as casas e prédios auto-construídos e as paredes pintadas com grafittis e rostos dos mártires. O Aida Camp está cercado pelo muro da separação em dois dos seus lados.
De onde estamos, conseguimos ver o outro lado do muro.
“Por detrás do muro consegues ver as oliveiras. Todas estas oliveiras pertencem a palestinianos. Em 2003, quando eles começaram a construir o muro, confiscaram toda esta terra que pertencia aos palestinianos e os seus donos ainda estão aqui. Ainda do lado de fora do muro.” – Anas Abu Srour
Daqui vê-se também a estrada principal do Aida Camp, a mais larga, toda em alcatrão, que vai desde o portão que sustem a chave gigante, até à passagem onde as forças israelitas vigiam o campo a toda a hora. Esta passagem não é de livre de acesso para os residentes, mas apenas para os soldados que, dia sim, dia sim, fazem rusgas pelo campo. Consigo levam bombas de gás lacrimogéneo, granadas de atordoamento, canhões de água de esgoto e armas de fogo.
Anas – Ao mesmo tempo consegues ver aqui este checkpoint, esta passagem. É para os soldados.
Ricardo – Lá dentro?
Anas – Sim, dentro do portão é um acampamento de soldados.
Ricardo – Isso está a 200 metros, 300 metros?
Anas – Daqui lá? Cerca de 200 metros, talvez menos, 150. Todas as noites e todos os dias, a maior parte dos soldados passam por essa passagem e fazem rusgas de dia e de noite para prender pessoas, destruir casas, prender crianças do Aida Camp. Temos 35 ou 40 crianças com menos de 18 anos em prisões israelitas.
Ricardo – Neste momento [setembro de 2017]?
Anas – Sim. E há cerca de 80 pessoas do Aida Camp ainda nas prisões.
Ricardo – De que são acusadas?
Anas – A maior parte são detidos porque atiraram pedras, atiram pedras aos soldados israelitas quando eles começam descer… Olha, eles estão a descer. E quando descem começam a disparar gás lacrimogéneo e balas revestidas a borracha e começam a chatear as pessoas.
Ricardo – Vêm aí seis soldados.
Anas – Sim, eles agora estão a caminhar, mas às vezes trazem um jipe, um carro israelita, e começam a disparar gás lacrimogéneo e esgoto. Tem um cheiro muito mau que fica durante um mês. Sempre que se passa na rua sente-se o cheiro. É água com esgoto e muitos químicos. Fica presa à estrada e cheira muito mal.
Neste momento, seis soldados descem a pé, calmamente, desde o checkpoint, e param a cerca de 200 metros da chave – a 200 metros de onde Aboud, de 13 anos, foi morto em 2015. Estão de uniforme castanho, arma na mão, botas de aço, proteções nas caneleiras, pernas, braços, peito e costas, e capacete na cabeça. Parece que estamos numa zona de guerra.
Ricardo – Quanto tempo vão eles ficar ali?
Anas – O tempo que eles quiserem. Às vezes ficam horas, às vezes minutos, às vezes dias. Descem sempre e começam a subir as escadas e a disparar gás lacrimogéneo para o campo. E às vezes escondem-se e apanham crianças. Às vezes entram e começam a chatear as pessoas dentro do campo. Depende do que lhe apetece fazer. Não há ninguém que os impeça de fazer o que quer que seja… Vamos dar uma volta ao Campo?
Maria – Sim
Ricardo – Claro
Descemos as escadas, que ainda estão meio em construção, e voltamos para a rua. Lá em baixo, vemos de perto as casas que foram construídas desde 1950. Edifícios de tijolo e cimento, de dois ou três andares, que pela cor e aspeto se nota terem sido construídos em alturas diferentes. São casas de retalhos.
“Como podem ver, o Aida Camp está cheio. Muitos prédios grandes, porque antes de 1951 estavam cá 500, 1000 pessoas, no máximo. Depois de 67 ou 68 anos, a maior parte dos seus filhos cresceram e casaram, e começaram a construir mais andares. Como vêem, existem prédios de quatro andares e cinco. Os filhos estão a viver com os pais, porque o campo é muito pequeno, então começaram a construir uns por cima dos outros.” – Anas Abu Srour
Ao andar pelas ruas estreitas vêem-se pequenos cafés e restaurantes, mini-mercados ainda abertos ou cabeleireiros.
“Como podem ver, existem muitas lojas, como este restaurante. Toda a gente de fora do campo vem a este restaurante comer. Mas existe um barbeiro, um cabeleireiro para mulheres, uma loja de usados. Aqui no Aida Camp as pessoas ainda têm a esperança de ter uma vida normal. Estão a lutar para conseguir dar aos seus filhos a oportunidade de viver como qualquer criança no mundo.” – Anas Abu Srour
As crianças brincam cá fora. Anas explica-nos que as escolas do campo ficam ali ao lado.
Anas – Esta é uma escola primária das Nações Unidas para as crianças do campo. Aqui é a escola dos rapazes e existe outra daquele lado, para raparigas.
Ricardo – Então os miúdos vão à escola dentro do campo.
Anas – Sim, dentro do campo.
Quase metade da população do Aida Camp são crianças e menores de 18 anos e, segundo dados da ONU, 1.200 estão inscritas em escolas do campo.
De repente, vemos enormes poças de água no chão.
Anas – Podem ver aqui a água.
Ricardo – No chão.
Anas – Acho que chegou hoje a água. Ouvem o motor? Como o motor está a puxar a água? Para dentro dos tanques.
O abastecimento de água tinha acabado de chegar ao campo. Israel controla 80% de todas as reservas de água da Palestina. Na prática, isto obriga a Autoridade Palestiniana – o Governo da Cisjordânia – a comprar a sua própria água, uma vez que ela é extraída de território palestiniano ocupado.
Assim, é comum haver falta de água na Palestina. Basta o estado de Israel querer e milhares de famílias ficam sem acesso a um bem de sobrevivência básico. O que acontece é haver racionamento da água. Ou seja, a água chega num determinado dia e é armazenada em tanques para ser usada nos dias seguintes, até que haja novo abastecimento. Por isso é que se vêem tantos tanques nos telhados das casas do Aida Camp e um pouco por toda a Palestina. São cilindros pretos enormes e quase todas as casas têm um. No Aida Camp, explica-nos Anas, o fornecimento de água acontece apenas de 10 em 10 dias.
Anas – *A partir de amanhã, a água será cortada e as pessoas começaram usar a água dos tanques. Depois de dez dias, recebem água outra vez. *
Ricardo – Então têm de gerir água durante dez dias.
Anas – Sim. Ao mesmo tempo, os israelitas têm água durante 24 horas. Eles não têm tanques nas suas casas. Não têm cortes de água. E estamos na mesma área. Nós estamos aqui e eles estão nos colonatos que conseguem ver daqui. Não há razão. Eles dizem que têm falta de água. Mas então porque dão água 24 horas por dia aos israelitas e uma vez de dez em dez dias aos palestinianos?
Um problema na Palestina, mas não em Israel. Segundo dados da B’tselem, um ou uma israelita tem acesso a 287 litros de água por pessoa, por dia. Os palestinianos, apenas a 79 litros. Dados da Autoridade Palestiniana para a Água mostram que apenas 73,5% das famílias da Cisjordânia consideram a sua água boa o suficiente para ser bebida. Na Faixa de Gaza, a situação é calamitosa: 1,2 milhões dos quase dois milhões de residentes não têm acesso a água canalizada e, para os que têm, quase toda a que chega às torneiras – 97% – está demasiado poluída, com excesso de sal e esgoto, para poder ser consumida.
De volta à estrada principal, os soldados israelitas continuam no mesmo sítio.
Anas – Vêm como eles apontam lasers e começam a chatear as pessoas?
Ricardo – Eles estão mesmo a apontar um laser na nossa direção…
Anas – Aqui. O Abdulrahman estava aqui.
Estávamos a poucos metros do sítio onde foi morto Aboud, há pouco mais de dois anos. Os três parados, a conversar, desarmados, o Ricardo e eu de mochila às costas, com um telemóvel a fazer de microfone. Apenas isso, quando vejo a luz verde de um laser no peito do Ricardo. Na minha ingenuidade, achei que seriam miúdos a brincar. Mas não. Tínhamos armas apontadas a nós.
Olhamos para Anas. Ele repara e continua a conversar, como se fosse normal.
Os soldados apontavam agora as armas para as quatro ou cinco crianças e adolescentes que estavam um pouco mais à frente. Todos rapazes, fazendo peito aos soldados, desafiando-os com a postura e o olhar, não querendo mostrar medo. Estavam exatamente no mesmo sítio onde Aboud tinha sido executado. Ao lado via-se o cartaz com a sua fotografia, de que falámos no início do episódio. A frase continua lá: “O meu nome é Aboud Shadi, um refugiado palestiniano de 13 anos. Estava aqui mesmo, parado com os meus amigos, quando um sniper israelita me matou com um tiro”.
Anas – *Como vêem, as crianças juntam-se aqui. *
Ricardo – Eles estão agora a apontar lasers para crianças mais ou menos a três metros de nós.
Olhamos de novo para Anas, que nos diz que é melhor sairmos dali. Saímos. Demos meia volta e virámos as costas aos soldados. Mas nem por isso deixámos de ver as marcas que o exército israelita foi deixando ao longo do tempo no Aida Camp.
Anas – Vêm aqui todos estes buracos neste prédio? São de soldados israelitas. Quando eles atacam o campo, disparam para todo o lado. Todos estes buracos são de balas. São balas dos soldados israelitas quando atacam o campo, à noite, e fazem rusgas. Dispararam de dia e de noite. Para todo o lado. Uma vez levei um tiro quando estava aqui parado, levei um tiro no estômago. Em 2002, tinha 14 anos. Estava aqui com os meus amigos e os soldados israelitas entraram no campo por muitos sítios e começaram a disparar. Levei um tiro aqui.
Ricardo – Eles disparam de balas revestidas a borracha?
Anas – Não, não, balas reais. Levei um tiro aqui e não senti. Só depois de 30 segundos é que comecei a sentir que algo estava quente. Quando pus a mão senti o sangue. Levaram-me para o hospital onde fiquei quatro ou cinco dias. Quando eles me levaram para o hospital estava um tanque a fechar a rua e nós passámos por milagre. Não sabemos como conseguimos passar, porque a rua estava fechada.
Ricardo – Que idade tinhas?
Anas – 14 anos.
Anas conta-nos isto com alguma naturalidade, como se aquele episódio fosse semelhante ao de uma criança que um dia partiu o pulso a jogar à bola. Retomámos o nosso percurso, que já estava a ficar tarde. Pelo caminho, mostra-nos uma parede enorme com uma longa lista de nomes escritos em árabe.
“Aqui estão os nomes das crianças que foram mortas em 2014 pelos israelitas.” – Anas Abu Srour
Uma homenagem a todas as crianças mortas na Faixa de Gaza, nesse ano.
Anas – É chamada a “Guerra de Gaza”. Estão são as cerca de 260 crianças mortas por Israel, a maioria são da mesma família. Estes são Abu Jami, Abu Jami, Abu Jami, Abu Jami. São quatro ou cinco irmãos. Estes são Al-Qasas, Al-Qasas, Al-Qasas. Estes são irmãos e irmãs. Al-Kilani, Al-Kilani, Al-Kilani, Al-Kilani. Estes cinco são irmãos e irmãs, quase todos crianças. Olhem, Amnanjar, Amnanjar, Amnanjar. Vêm, famílias mortas, família toda morta pelos israelitas. Só porque são palestinianos. Não fizeram nada. Quase todos são civis, crianças.
Maria – Como é que foram mortos?
Anas – Foram mortos por ataques e tanques. Começaram a disparar contra Gaza para matar toda a gente, na Guerra de Gaza. Cerca de 3000 foram mortos por israelitas. Só em duas ou três semanas, não me lembro exatamente.
“Operation Protective Edge”, foi o nome que Israel deu à guerra. Estávamos no verão de 2014 e o Hamas, partido que governa a Faixa de Gaza, na Palestina, não disparava oficialmente um único rocket em direção a Israel, desde Novembro de 2012, segundo do Exército israelita. O partido que o estado hebraico considera uma organização terrorista tinha-se comprometido a terminar com a violência e a travar outras organizações em Gaza que a quisessem praticar. Ainda assim, rockets ocasionais eram enviados por movimentos mais pequenos e com pouca expressão.
De qualquer forma, os mísseis disparados a partir de Gaza, quando comparados com o armamento das forças militares israelitas, deixam bem clara a relação “David contra Golias” que desde sempre existe na região. Segundo dados oficiais do governo israelita, apenas 32 israelitas foram mortos (26 deles civis) pelos quase 20.000 rockets enviados entre 2001 e o verão de 2014.
O ano anterior ao início da guerra, 2013, foi o período com menos rockets enviados nessa década – parecia que se estava a caminhar para a paz. Mas, em menos de um ano, tudo mudaria.
A 30 de Junho de 2014, o jornal The Times of Israel noticiava que o Hamas tinha começado a atirar mísseis em direção a Israel, pela primeira vez, desde 2012. Uma fonte do exército israelita dizia que o ataque seria provavelmente uma resposta a um bombardeamento que Israel teria feito umas horas antes, que tinha morto um membro do Hamas e ferido outros três. Começava aí o maior massacre da década na Palestina.
Durante as sete semanas seguintes, 2.202 palestinianos foram mortos, mais de 60% eram civis. Um quarto dos palestinianos mortos eram crianças: 526. Do lado israelita, contaram-se 72 mortes, entre eles, seis civis, uma criança.
A meio da guerra, Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelita, justificava-se ao canal de televisão norte-americano NBC: “Um homem tem de fazer o que um homem tem de fazer”.
“Pergunto-lhe: ‘Que escolha é que tem? O que faria?’ O que faria, Brian, se as cidades americanas, como aquela onde agora está, fossem bombardeadas, atingidas por centenas de rockets? Sabe? Sabe o que você diria? Diria ao seu líder: ‘Um homem tem de fazer, o que um homem tem de fazer’. E você diz, ‘Um país tem de fazer o que tem de ser feito’. Temos de nos defender. Tentamos fazê-lo com a menor quantidade de força ou atingido o melhor que sabemos os alvos civis-militares. Mas vamos agir para nos defender. Nenhum país pode viver assim.” – Benjamin Netanyahu
Netanyahu dizia tentar defender-se com a mínima força possível, apontado a alvo militares, e não civis.
“Ele argumenta que usou força mínima. Há tanto para dizer sobre isso.” – Norman Finkelstein
Este é Norman Finkelstein, investigador e autor de “Gaza: an inquest into its martyrdom”, em entrevista ao “Democracy Now!”, em janeiro deste ano.
“Podes decidir por ti se é força mínima quando Israel pulveriza 18.000 casas. Quantas casas israelitas foram pulverizadas? Uma. Israel matou 550 crianças. Quantas crianças israelitas foram mortas? Uma. Podes sempre dizer: ‘Bem, isso é porque Israel um sistema de defesa civil sofiticado, Israel tem a Cortina de Ferro.’ Eu não vou por aí, agora não tenho tempo [para explicar]. Mas há um teste simples. O teste é: ‘O que é que os combatentes israelitas viram? O que é que eles disseram?’ Não acreditarias. Um após o outro, após o outro, dizem: ‘As nossas ordens eram atirar para matar qualquer coisa que mexesse e qualquer coisa que não mexesse.’ Um após o outro, após o outro, dizem: ‘Israel usa quantidades insanas de poder de fogo em Gaza. Israel usa quantidades lunáticas de poder de fogo em Gaza’.” – Norman Finkelstein
Um terço da população de Gaza viu as suas habitações serem atingidas pela guerra. Segundo as Nações Unidas, 20.000 casas foram completamente destruídas ou ficaram inabitáveis. Até hoje, o estado de Israel nunca foi condenado por crimes de guerra por causa deste massacre e, em Maio desde ano, a Autoridade Palestiniana entregou uma queixa ao Tribunal Penal Internacional, numa ação sem precedentes.
Enquanto isso, a vida na Faixa de Gaza deteriora-se a cada dia que passa. O bloqueio que Israel impõe há mais de dez anos limita as importações a bens essenciais e tem também cercado dois milhões de pessoas, dentro de um retângulo de 365 quilómetros quadrados, do qual não podem sair sem uma autorização do governo israelita ou egípcio.
David Cameron, antigo primeiro ministro do Reino Unido – um dos países que mais comércio de armas tem com Israel -, descrevia assim Gaza, em 2010:
“Deixem-me também esclarecer que a situação em Gaza tem de mudar. Pessoas e bens humanitários devem fluir nos dois sentidos. Gaza não pode e não deve ser autorizada a permanecer como um campo de prisioneiros.” – David Cameron
A eletricidade é assustadoramente precária – a população tem acesso a apenas quatro horas de eletricidade por dia, no máximo. Uma em cada duas pessoas estão desempregadas.
Norman Finkelstein, em entrevista ao podcast The Intercepted, este maio, vai mais longe:
“Em 2012, as Nações Unidas começaram a emitir relatórios. Diziam: ‘Será Gaza habitável em 2020?’ Depois, em 2015, outro relatório foi lançado pela UNCTAD [Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento], uma das principais agências da ONU. Dizia: ‘No trajeto atual, Gaza não será habitável em 2020’. Depois, em 2017, um alto funcionário da ONU, disse: ‘Parece que as nossas previsões têm sido otimistas’. Sanguíneo. Ele disse: ‘Gaza cruzou o limiar da inabitabilidade há muito tempo.’ Não estamos a falar de poesia. Não estamos a falar de uma hipérbole. Estamos a falar de uma avaliação, do veredicto dos muito conservadores, mas muito profissionais e competente burocratas das Nações Unidas. Gaza é um sítio inabitável. Noventa e sete por cento da água de Gaza está contaminada. É imprópria para consumo humano. O que quer isto dizer? Vamos ouvir a opinião de Sara Roy, que é a maior especialista no mundo sobre a economia de Gaza. Os seus pais estiveram [presos] no campo de concentração de Auschwitz. Por isso, tenham em conta as palavras que usa. Ela disse: ‘Pessoas inocentes, a maioria crianças (porque em Gaza a maioria esmagadora são crianças, 51% são crianças) são diariamente envenenadas.’ É um facto. E as pessoas não querem ouvir isso, ficam enjoadas. ‘Porque estás a falar de campos de concentração? Porque estás a falar de envenenamento?’ Bem, não matem o mensageiro por trazer as más notícias. Israel está a envenenar um milhão de crianças.” – Norman Finkelstein
A 30 de Março passado, “A marcha do grande retorno”, levou milhares de pessoas para perto da cerca criada por Israel, exigindo que o bloqueio a Gaza terminasse e que lhes seja permitido o regresso às casas ou vilas, abandonadas à força em 1948. Durante este protesto semanal, que começou em Abril, durou sete semanas e culminou a 15 de Maio, dia em que se comemora a “Nakba”, morreram mais de 100 pessoas e milhares ficaram feridas.
A maior parte não armadas. A maior parte assassinadas por tiros disparados pelo exército israelita.
As pessoas que protestavam atiravam pedras, arremessavam granadas já usadas pelo exército israelita ou pneus e outros objetos em fogo, alguns deles caídos ainda antes da cerca. Israel, um dos mais poderosos exércitos do mundo, respondeu com tiros sobre os manifestantes, bombardeamentos por drones e granadas de gás lacrimogéneo. Netanyahu:
“Não conheço nenhum exército que fizesse algo diferente se tivesse de proteger as suas fronteiras contra pessoas que dizem ‘nós vamos destruir-vos, nós vamos invadir o vosso país’. Tentámos outros meios, todo o tipo de meios. Tentámos meios não letais, mas não funcionam. Restam-nos más escolhas. É um mau acordo.” – Benjamin Netanyahu
As forças militares israelitas defendem o uso da força com o facto de protestantes estarem visivelmente a tentar destruir aquilo a que chamam “fronteira”, tentando ultrapassar os diferentes obstáculos que separam os dois territórios e entrando, portanto, em terra que Israel assume pertencer-lhe.
“Não quero ser demasiado pedante em relação a isto, mas Confúcio disse uma vez: ‘O início de qualquer sabedoria é chamar as coisas pelos seus nomes’. Eu sei que pode parecer a frase de um bolinho da sorte mas, na verdade, é uma ideia muito profunda. Por isso, neste caso, se olharmos para as publicações tradicionais, que ecoam a propaganda israelita, ou se olhares para o The New York Times, eles referem uma “fronteira”. Uma fronteira é se dois estados soberanos estiverem em cada lado. Mas vamos olhar para os factos: o distinguido sociólogo Baruch Kimmerling, da Hebrew University descreveu Gaza, e agora estou a citar, como “o maior campo de concentração de sempre”. O respeitado jornal israelita “Ha’aretz” refere-se ao “Gueto de Gaza”, com a óbvia ligação para os judeus com o “Gueto de Varsóvia”. E depois o primeiro-ministro britânico David Cameron, que se referiu a Gaza como uma prisão a céu aberto. Então, estamos a ser preciso, estamos a chamar as coisas pelos nomes ao dizer que os palestinianos em Gaza estão a tentar quebrar a fronteira? Não. Os palestinianos em Gaza estão a tentar quebrar a cerca do campo de concentração. Estão a tentar quebrar a cerca do gueto. Estão a tentar quebrar o portão da prisão.” – Norman Finkelstein
Mesmo assim, protestantes foram mortos a 50 e a 100 metros dessa mesma barreira, como relatou Sharid Abel Kouddous, correspondente do Democracy Now. Laila Anwar Al-Ghandoor, uma bebé de oito meses, foi morta por uma granada de gás lacrimogéneo. Fadi Abu Salmi, 30 anos, atirava pedras numa cadeira de rodas e tinha as duas pernas amputadas.
De volta a Belém, Anas continua a mostrar-nos o campo.
“Sabem, o Papa veio ao Aida Camp. O Papa Bento XVI.” – Anas Abu Srour
O Papa Bento XVI visitou Belém, em 2009. Meses antes da visita, os residentes do Aida Camp iniciaram a construção de um palco onde queriam receber o pontífice. A estrutura, que passou a chamar-se “Teatro da liberdade”, teria como fundo o muro da separação. Jumah al-Owais, um dos residentes que ajudou a construí-lo, dizia por essa altura à NPR, rádio norte-americana, “Quando o papa vier, os olhos do mundo vão segui-lo, e então todo o mundo vai ver o sofrimento do povo palestiniano”.
“Nós começámos a preparar este sítio para que o festival fosse aqui, neste teatro. Os israelitas recusaram fazer o evento aqui. Eles disseram “Não, não vamos deixar o Papa entrar no Aida [Camp] ou em Belém se a celebração for aí. Façam noutro sítio”. Porque estavam com medo que se tirassem fotografias ou se fizessem filmes com o Papa e o muro. Eles recusaram porque estavam com medo que as pessoas soubessem que há um muro aqui, em Belém, que temos o muro da separação. Eles não querem que as pessoas no mundo saibam que temos uma polícia racial contra os palestinianos.” – Anas Abu Srour
Mas o mundo ficou a saber. No fim, o discurso do Papa foi político. Tão político como o “teatro da liberdade”:
“As vossas legítimas aspirações a casas permanentes, a um estado palestiniano independente, continuam por cumprir (…) num mundo onde as fronteiras se abrem para fazer comércio, viajar e trocar experiências culturais, é trágico que muros ainda estejam a ser erguidos.” – Papa Bento XVI
Ricardo – Agora estamos a voltar ao mesmo sítio, certo? Este é o sítio em que trabalhas.
Anas – Sim, é este o edifício. Queria dar-te mais informação, mas não tenho tempo.
Ricardo – Não faz mal.
Anas – *Tenho uma loja fora do campo, preciso de voltar. Vou mostrar-te algumas fotografias do campo, do Centro e depois temos de sair. Onde está a chave…? *
Entramos agora no escritório do Aida Youth Center com Anas, que nos mostra vídeos e fotografias do campo e nos explica que a maioria das pessoas que aqui vive trabalha do outro lado do muro, o que implica atravessar checkpoints diariamente.
Anas – Aqui, no Aida Camp, a maior parte das pessoas trabalha em Jerusalém. Para entrar em Jerusalém e ir para o trabalho têm de acordar às três da manhã. Ainda esperam aqui até às seis, para abrirem o portão. E há imensas pessoas a vir de todo o lado. Do Aida Camp, Belém, Deisheh, Hebron. Vêm e esperam aqui, que lhes abram a porta. Podem ver como isto está apinhado de gente. Isto é um fardo enorme para as pessoas. Vão para o trabalho às três da manhã, voltam às seis ou sete da tarde. Percebem a dificuldade porque passam todos os dias? Vêem como está repleto? Tanta, tanta gente.
Ricardo – Aqui é a passagem do muro?
Anas – Sim, sim.
Maria – Mas essas pessoas não conseguem encontrar trabalho aqui, por isso têm de ir para o outro lado? Que tipo de trabalhos fazem?
Anas – A maior parte deles são eletricistas ou trabalham em construção. E estão a trabalhar com organizações internacionais em Jerusalém. Trabalham em muitas profissões. Mas aqui na Palestina não existem muitas oportunidades. Se as pessoas não trabalhassem em Jerusalém, a maior parte estaria desempregada. Mesmo passando pelas dificuldades por que passam todos os dias, são forçadas a ir. Eu não iria. Não iria todos os dias às três da manhã e depois de volta às seis. Não ter vida e depois das seis estar com a minha família duas horas antes de ir dormir. Porque se queres acordar às três, tens de dormir três ou quatro ou cinco horas. Não é vida.
Anas fala-nos também das atividades que o Aida Youth Center tem para as crianças. Mas, enquanto nos mostra imagens de alguns trabalhos feitos por miúdos de não mais de oito anos, é interrompido.
Anas – Caixas, pins e coisas do género. E fazemos… [ouve-se uma explosão] Isto são os soldados.
Ricardo – *O que é que ouvimos agora? *
Anas – Um bomba. Eles estão a atirar bombas às crianças e… [ouvem-se dois tiros] Tiros. Isto é aqui fora…
Ricardo – Então isto é normal.
Anas – Sim, isto é normal. Aqui no Aida Camp isto é muito normal.
Ricardo – E as crianças continuam a andar pelas ruas, normalmente…
Anas – Sim, nós não temos escolha. Ou vivemos esta vida ou vamos para onde? Não há sítio nenhum. Não vamos ser refugiados pela segunda vez. Esta é a nossa vida e ainda estamos aqui. A maior parte das pessoas dizem que mesmo que eles façam um milhão de massacres, não vamos sair das nossas terras.
No próximo episódio vamos até Hebron, uma das maiores cidades palestinianas. É aqui que se sente a maior tensão. Colonos israelitas e palestinianos vivem lado a lado, separados por jaulas de metal e soldados armados.
Vai a apenasfumaca.pt para veres as fotografias desta reportagem. A série “Palestina: histórias de um país ocupado” é escrita pela Maria Almeida, e por mim, Ricardo Ribeiro. Editada pelo Pedro Santos. A edição de som é feita pelo Bernardo Afonso.
Subscreve em aqui para receberes os próximos episódios desta série.
O É Apenas Fumaça é produzido por:
Bernardo Afonso
Frederico Raposo
Maria Almeida
Pedro Zuzarte
Pedro Santos
Ricardo Ribeiro
Sofia Rocha
Tomás Pereira
Tomás Pinho
A música do genérico é dos Lotus Fever.
Durante este episódio, ouviste também as músicas “Roubamma”, “Faraadees”, de Le Trio Joubran – esta última com o poema escrito e dito por Mahmoud Darwish. “Memories of a Palestinian Wound”, de Amal Markus. “Sans Adresse”, de Ramzi Aburedwan. “Kofeyye Arabeyye”, de Shadia Mansour e “Ya Samti” de Zuhair Francis e Tamer Nafar.