Carla Fernandes: ‘Uma pessoa branca não pode sofrer racismo’

por Fumaça,    28 Junho, 2018
Carla Fernandes: ‘Uma pessoa branca não pode sofrer racismo’
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O que vais ouvir, ler ou ver foi produzido pela equipa do É Apenas Fumaça, um projecto de media independente, e foi originalmente publicado em www.apenasfumaca.pt.

Terça-feira, 26 de junho de 2018. Estava a preparar esta entrevista quando uma série de tweets me chamou a atenção. Já passava da hora de almoço. Na rede social do pássaro azul corriam mensagens a denunciar agressões racistas a raparigas que esperavam por um autocarro em frente ao Mercado do Bolhão, no Porto, na madrugada da noite de São João, 24 de junho.

Contacto após contacto, passava já das onze da noite quando terminou a quase uma hora de conversa com uma das protagonistas, Daniela Mendes, 20 anos, estudante, uma das vítimas com quem tínhamos conseguido falar diretamente. Com detalhe [divulgaremos esta conversa ainda esta semana], a única pessoa branca deste grupo de três amigas, explicaria o que aconteceu: Nicol Quinayas, 21 anos, colombiana que vive em Portugal desde o cinco anos, tinha sido barbaramente espancada por um funcionário da empresa de segurança privada 2045, que fazia fiscalização – controlo de bilhetes, cujos trabalhadores são popularmente conhecidos como “picas” – ao serviço da STCP-Sociedade de Transportes Colectivos do Porto.

O caso começou por causa de um mal entendido quando se organizava a fila para entrar no autocarro, em frente à paragem da carreira 800. O segurança viu que havia uma discussão e assumiu que as duas jovens não brancas eram as responsáveis, impedindo-as de entrar no autocarro, que entretanto chegara. Uma delas foi Tânia Marques, 21 anos, negra, também agredida e insultada que, por email, nessa tarde, nos contou a sua versão dos acontecimentos:

“(…) Criou-se ali um desconforto e o indivíduo agressor, um dos vários seguranças da empresa 2045, decidiu vir para o nosso meio para nos separar, partindo do princípio que nós é que estávamos a arranjar confusão, pois ele afirmou “pessoas como vocês só arranjam confusão”. Ele tentou afastar-me das minhas amigas e eu fiquei revoltada pois queria estar à beira delas.
Eu não aceitei que ele me estivesse a empurrar pois não tinha direito nenhum de fazer aquilo que estava a fazer.
Estava com medo dele, admito. Era o dobro de mim e a maneira como ele falou assustou-me.
A minha amiga perguntou-lhe: “Você tem algum problema com as pessoas de cor?” O homem riu-se na nossa cara e começou a insultar-nos usando a nossa cor de pele como desculpa. “Pretas de merda”, disse ele(…).”

“(…) Ele amarrou-a [à Nicol] no cabelo e arrastou-a para fora, imobilizando-a com uma força horrível.
Eu tentei entrar e ele fez a mesma coisa comigo e disse: “Ide apanhar o autocarro na vossa terra”. Aí ficámos completamente chocadas e desnorteadas, pelo que a minha amiga lhe disse aos berros “Você não merece estar aqui, é um racista, um triste, um otário”.
Aí, ele deu-lhe um soco na cara e a minha amiga começou imediatamente a sangrar.
Eu vi aquilo e meti-me no meio, mas ele empurrou-me para o chão com um ódio enorme. Nós não percebemos o porquê de ele nos estar a fazer aquilo (…).”

“(…) Foi horrível, achei que ia perder ali uma amiga por causa daquele «monstro», que não lhe consigo dar outro nome. Foi um ato desumano, nós só temos 21 anos (…).”

“(…) Pior é a justificação daquele ato ser racismo, e mesmo que não fosse, ele é um segurança. Como é que alguém que aprende valores educacionais, que é suposto proteger-nos, faz isto a duas raparigas com idade para serem filhas dele?
A minha amiga teve de ir para o hospital e passou lá a noite.
Triste também foi ver que as autoridades, quando chegaram, nem nos perguntaram se precisávamos de alguma coisa. Não fizeram absolutamente nada, ainda disseram ‘Nós estamos aqui obrigados’
É esta a segurança que temos em Portugal? Isto não pode passar assim como se não tivesse acontecido nada. Foi horrível. Ainda hoje temos pesadelos com isso e andamos na rua com medo(…).”

Enquanto Tânia escrevia estas linhas, a história passava o Atlântico e chegava à Colômbia, publicada no site da cadeia de radiodifusão Blu Radio: “Golpean brutalmente a colombiana en Portugal en acto de racismo”.

Ontem, 27 de junho, ganhou atenção nacional e foi contada no Diário de Notícias (DN): “Preta de merda, queres apanhar um autocarro, apanhas no teu país” e no Público: “Jovem agredida por fiscal: ‘Pôs-me os joelhos em cima, como se fosse um troféu.’

A violência do momento ficou registada em vídeo e as consequências nas fotos, que mostram Nicol Quinayas completamente desfigurada.

Os insultos racistas, carregados de ódio, lembraram-me as descrições feitas pelos seis jovens da Cova da Moura, na Amadora, que acusam vários agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP) de os terem espancado e torturado no dia 5 de fevereiro de 2015, na esquadra da PSP de Alfragide, Amadora. Entre outros relatos:

Estás a rir de quê, macaco? Encosta-te aí à parede!

“Vão morrer todos, pretos de merda!”

“Então não morreste (do AVC)? Agora vai dar-te um que vais morrer. Ainda por cima és pretoguês filho da puta!”

Não sabem como odeio a vossa raça. Quero exterminar-vos a todos desta terra. É preciso fazer a vossa deportação. Se eu mandasse vocês seriam todos esterilizados.

“É melhor irem para o ISIS”

“Vocês vão desaparecer, vocês, a vossa raça e o vosso bairro de merda!”

No ano passado, 18 agentes da PSP foram acusados pelo Ministério Público dos crimes de tortura, sequestro, injúria e ofensa à integridade física qualificada, agravados pelo ódio e discriminação racial. Em dezembro o Tribunal de Instrução Criminal decidiu julgar 17 dos agentes acusados. As sessões do julgamento começaram em Maio deste ano e já foram ouvidos os agentes da autoridade. Esta terça-feira, 26 de Junho, foi a vez das vítimas.

Que tem isto que ver com a entrevista à Carla Fernandes (na foto acima), a nossa convidada desta semana? Carla tem trabalhado como jornalista e durante vários anos fez rádio para a comunidades dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, a partir da Alemanha. Regressada a Lisboa criou, em 2014, o audioblogue Rádio Afrolis, para contar as histórias das pessoas negras em Portugal que não se sentem representadas nas narrativas apresentadas pelos média. Afrolis é, hoje, uma associação, mas Carla criou também o espaço “Lugar de Fala” que se apresenta como “bar afrocentrado em Alfama”, em Lisboa.

Esta quinta-feita (28), a partir das 17h30, no Museu do Aljube, Carla Participa na conversa “Poesia, literatura, intenção e intervenção política”, no âmbito do Rama em Flor – festival comunitário feminista queer.

Na nossa entrevista, queríamos falar sobre visibilidade das pessoas negras; sobre propostas como a “Campanha por outra Lei da Nacionalidade”; sobre a “Década Internacional de Afrodescendentes 2015-2024”, instituída pelas Nações Unidas; sobre conceitos como “lugar de fala” e o de o racismo não se aplicar a uma pessoa branca, entre vários outros temas. E falámos.

Mas acabámos de voz embargada e lágrimas nos olhos, depois da leitura de uma parte do artigo da jornalista Valentina Marcelino, do DN, que relata o que se passou no tribunal, esta terça-feira, quando Bruno Lopes, jovem agredido da Cova da Moura, falou:

“Contou que se estava a rir da conversa com o primo e que um agente o questionou sobre o motivo do riso. Explicou e este mandou-o encostar à parede, partindo-lhe o nariz com uma bastonada, deferida do lado do punho de ferro. “Perdi os sentidos momentaneamente e quando acordei estava a ser arrastado pelos braços para me meterem na carrinha”, relatou.
De joelhos no chão, com as mãos algemadas atrás das costas, afirma ter sido agredido com “socos e bastonadas” todo trajeto até à esquadra, que lhe pareceu mais “longo” do que o normal. Contou que já na esquadra, dois agentes “deram remates” (pontapés) no seu peito. Durante o dia e a noite (já nos “calabouços” de Moscavide) ouviu insultos racistas (“tens sangue de macaco”, “devias ir para o Estado Islâmico, que estão lá à tua espera”) e os “gritos” dos amigos que o tinha ido procurar e acabaram também, segundo o MP, violentamente espancados e detidos.”

Até já.

Texto e entrevista: Pedro Miguel Santos
Preparação: Frederico Raposo, Pedro Miguel Santos e Ricardo Ribeiro
Edição de fotografia e vídeo: Frederico Raposo
Edição de som: Bernardo Afonso

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