“Beleza Fatal”: como o streaming deu nova vida à telenovela

por Pedro Miguel Coelho,    26 Fevereiro, 2025
“Beleza Fatal”: como o streaming deu nova vida à telenovela
Fotografia: MAX / Divulgação

Abro este texto com uma confissão: estou viciado numa telenovela. Chama-se “Beleza Fatal” e é uma produção original da Max. Não é a primeira vez na vida que me acontece, mas é a primeira vez em muitos anos.

Para efeitos de contexto, partilho convosco que a minha infância e juventude foram marcadas pelas produções da Globo transmitidas pela SIC, e sou capaz de enumerar várias que marcaram a minha experiência enquanto jovem espectador: foram dezenas, vistas com afinco devoto e diário. Até cheguei a gravar episódios em VHS quando não estava em casa para as ver. E foi assim até as trocar pelas séries.

Julgo que perdi a religiosidade que uma produção com mais de 200 capítulos exige. E, depois de estarmos habituados ao ritmo acelerado e episódico de uma série, é difícil voltar atrás, para a novela e o seu enredo explicadinho, ocasionalmente pachorrento e, como dizem os brasileiros, com “barriga”, que é a fase a meio de uma telenovela em que parece que o enredo está às voltas em círculos consigo mesmo. 

Tudo isto era uma verdade absoluta na minha disciplina de apreciador e consumidor de televisão até que me apanhei, no Nordeste do Brasil, a ouvir falar de uma telenovela que estava mesmo boa e que ia valer a pena. Protagonizada por pesos pesados da dramaturgia tupiniquim, como Giovanna Antonelli (“O Clone”) e Camila Pitanga (“Mulheres Apaixonadas” e “Paraíso Tropical”), e com um elenco onde pontificam astros vindos do star system da “Vênus Platinada”, a colossal líder do mercado, a Rede Globo, “Beleza Fatal” apresenta-se com uma proposta que parece unir dois mundos até aqui irremediavelmente separados.

Fotografia: MAX / Divulgação

Ambientada no voraz e assustador mundo das cirurgias e procedimentos estéticos, esta é uma história de vingança exagerada, turbinada pelo ressentimento e polarização de um país onde a desigualdade é afrontosa, com direito a arrivismo, crime e tragédias familiares mesclados com o tradicional núcleo humorístico e popular que se move no mundo do samba e do churrasco. Mas tem uma particularidade invulgar para uma novela: conta essa história em 40 episódios, lançados ao ritmo de cinco por semana, e corre um risco que se pode correr no streaming mas que é raro na televisão aberta brasileira: é uma obra fechada. Foi toda gravada antes de ir para o ar.

Da autoria do escritor Raphael Montes, autor de “Bom dia, Verônica”, que a Netflix adaptou, “Beleza Fatal” está assim protegida contra aqueles prolongamentos de fazer render o peixe e também de indesejável “fan service” a que os focus groups conduzem os autores de novela. 

O sucesso desta novela do streaming, que já atingiu o primeiro lugar na Max em 15 países, surge numa altura particularmente crítica para a Globo. A toda-poderosa, que ainda garante sozinha quase 40% do mercado brasileiro, registou o pior mês de sempre em dezembro passado, e tem tido como principais adversárias as plataformas de vídeo on-demand.

Camila Queiroz, jovem protagonista da trama, foi rosto de uma das apostas da Globo no streaming, a série “Verdades Secretas” / Fotografia: MAX / Divulgação

“Beleza Fatal”, ainda um produto de nicho, mas cujo hype se tem feito sentir nas redes sociais, é aclamada numa fase em que as apostas de ficção da líder têm demonstrado fragilidades, e vai mesmo ter transmissão na TV Bandeirantes, uma pequena concorrente da Globo, depois de terminada a sua disponibilização no streaming. “Mania de Você”, a principal telenovela do canal, da autoria de José Emanuel Carneiro, o nome por detrás de “Avenida Brasil” e “A Favorita”, tem se mantido como o pior resultado de sempre na faixa mais importante do horário nobre: as 21h. Em Portugal, num contexto mais competitivo na televisão aberta, também é preciso recuar anos para encontrar episódios de novela com uma audiência média de mais de um milhão de espectadores.

Fotografia: MAX / Divulgação

Mas nada se perde, tudo se transforma – o amor por uma boa novela não foi a lado nenhum, só mudou de destinatário. O exagero, o cliché assumido, o enredo dramático e a prender-nos para as cenas do próximo capítulo, a vilã cartoonesca que Camila Pitanga entrega, talvez sejam um bom abre-olhos para a arrumadinha, politicamente correta e ensimesmada Globo e para outros canais em todo o mundo: a novela não tem de ser outra coisa, tem só de ser a mesma coisa mas num tempo novo, com outro ritmo (e outro orçamento, admitamos) para poder contar as histórias que ainda apaixonam o público. 

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