Reportagem. A Pequena Sereia, o Caçador e a Amália

por Fumaça,    14 Junho, 2018
Reportagem. A Pequena Sereia, o Caçador e a Amália
Fotografia: Divergente.pt

O que vais ouvir, ler ou ver foi produzido pela equipa do É Apenas Fumaça, um projecto de media independente, e foi originalmente publicado em www.apenasfumaca.pt.

Já passámos a fase de usar palavras como fressureiras, fongas, fufas, sapatonas, camionistas, lambe-carpetes e por aí fora. Mulheres que gostam de mulheres designam-se lésbicas. Ou tratam-se simplesmente pelo nome.
Panilas, panisgas, paneleiro, panasca, florzinha, veado, bichona, abafa palhinhas… É escolher. Referem-se a gays e são insultos. Ou será que não?

Há algum tempo que dentro da comunidade LGBTI – lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexuais – estas e outras ofensas são usadas como medalhas. Veja-se o caso da palavra queer (em inglês, esquisito), ou do seu equivalente em português, bicha, que são agora utilizadas com orgulho.

O duo Fado Bicha comemorou, em maio, um ano de atuações e música subversiva. Vamos conhecê-los, saber como chegaram um ao outro, e como passaram de cantar fado a capella, com uns instrumentais manhosos tirados do Youtube, a músicos profissionais. Eles já andavam há uns tempos nos espaços alternativos da noite lisboeta. Mas, mais do que falar do seu trabalho artístico quisemos perceber quem eram estas duas pessoas que ousaram pegar nas letras e músicas da canção-hino de Portugal e cantar os amores e desamores das vidas LGBTI.

Acompanhámos dois concertos da dupla formada pelo vocalista Tiago Lila, ou melhor, Lila Fadista, 33 anos, e pelo guitarrista João Caçador, 28. Estivemos no antes, no durante e no depois das subidas a palco, nos locais onde costumam cantar. A 5 de maio, no 49, bar da Galeria Zé dos Bois, no Bairro Alto, em Lisboa, onde atuam uma vez por mês, aos sábados; no dia 11 de maio – data em que celebravam um ano de fadistagem – o palco foi o mesmo onde estão de 15 em 15 dias. Às sextas, no The Late Birds Lisbon, uma casa de hóspedes dirigida ao público gay, frequentada sobretudo por turistas estrangeiros, onde um quarto pode custar mais de 200 euros por noite.

Tiago canta.
É alto, de cara esguia e olhos castanhos profundos. Tem quase dois metros e o cabelo vai variando a cor ao sabor da vontade. Ora loiro, ora verde, ora azul, ora sabe-se lá…
Tem uma tatuagem no braço, de uma corça, a evocar o triângulo cor-de-rosa invertido que os homossexuais eram forçados a usar nos campos de concentração nazis. Usa barba.
E tem as maçãs do rosto avermelhadas, como um menino tímido.
É formado em Psicologia. Pondera as palavras, reflete enquanto fala. Mas é também expressivo, exaspera-se, suspira, duvida.
Tiago é Lila. Lila é Tiago. Uma pessoa, várias facetas e um sobrenome-profecia, que parecia adivinhar-lhe a fluidez no ser.

João toca guitarra elétrica.
Tem o ar e a descontração de um galã discreto que finge não saber partir corações.
Cabelo e barba aparados, calças justas e afuniladas, camisa ou blazer a fazer pandã com os sapatos.
Quando ele sorri, enche uma divisão. Boca grande, lábios grossos, dentes brancos… O homem ri e contagia o ambiente de boa disposição. Esconde o nervosismo de estar a ser entrevistado com cordialidade e humor.
Estudou jazz, passou pelo Hot Club. Toca fado tradicional, em casas de fado tradicionais. Mas também canta. Lançou no início do ano o fado “Amor sem Lugar”, com música de Mário Laginha. Orgulha-se de si e do caminho que tem feito. Fá-lo convicto.

Ser-se bicha orgulhosa neste país é “veleidade” recente. Até 1982, ser homossexual era crime em Portugal. Sim, até 1982. Na investigação “O Estado Novo dizia que não havia homossexuais, mas perseguia-os”, da jornalista do Público São José Almeida – que serviria de base ao seu livro “Homossexuais no Estado Novo” -, pode ler-se:

A lei era clara. A homossexualidade começou a ser punida pelo Código Penal a partir da revisão de 1886, através dos artigos 70.º e 71.º, que perdurarão quase 100 anos – até 1982. Sem nunca mencionar a palavra, prescreve-se que aos que “se entreguem habitualmente à prática de vícios contra a natureza” passam a ser “aplicáveis medidas de segurança”, como o “internamento em manicómio criminal”, “internamento em casa de trabalho ou colónia agrícola”, “liberdade vigiada”, “caução de boa conduta” e “interdição do exercício de profissão“.

Nos dias 23 e 24 de abril de 2004, debateu-se no Parlamento a VI Revisão Constitucional. Entre várias mudanças, a Constituição da República Portuguesa passou a incluir a orientação sexual como factor de não-discriminação. O número dois, do artigo 13.º – “Princípio da igualdade” -, lê-se, agora, assim:

Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

Mas nem isso chegou para que o Código Penal deixasse de ter artigos discriminatórios e inconstitucionais. Só três anos mais tarde, em 2007, na sua vigésima terceira alteração, o documento foi extirpado de preconceito e passou a tratar da mesma forma pessoas heterossexuais e homossexuais no que diz respeito ao direito penal.

Foi eliminado o artigo 175, que punia de forma mais dura os actos de abuso sexual de menores quando estes eram de natureza homossexual. E incluiu-se, no novo crime de violência doméstica, os casais do mesmo sexo. O ódio baseado na orientação sexual passou também a ser circunstância agravante de crime, como já acontecia antes com delitos de ódio baseados na “raça” ou na “religião”.

Talvez seja por isso que ainda hoje tanta gente tenha dificuldade em assumir publicamente relações amorosas e afetivas com pessoas do mesmo sexo. É precisamente pelo direito à diferença, para celebrar a não-normatividade, o direito a ser e estar como der na real gana que todos os anos, mundo fora, saem à rua as Marchas do Orgulho. Por cá, há cada vez mais locais a celebrarem a diversidade. A 19 de maio saiu-se pelos Direitos LGBTI, pela primeira vez na história, em Faro e em Bragança, onde Tiago e João foram cabeças de cartaz. A 26 de maio, a Marcha do Orgulho desfilou pela segunda vez em Vila RealBraga celebrou a sexta edição no dia 2 de junho. No Porto, é só em julho, dia 7, que se vão comemorar 13 anos de festa e luta.

Este sábado, 16 de junho, é a vez da Marcha do Orgulho LGBTI+ de Lisboa, a maior e mais antiga do país. Lila e Caçador, lá estarão. O desfile parte, como é costume, da Praça do Príncipe Real, pelas 17h00, em direção à Ribeira da Naus. O manifesto deste ano tem como título “Saúde das Pessoas Trans, Autodeterminação e Respeito – Medicina sem Preconceito” e a mensagem vai direitinha ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que recentemente vetou as alterações à Lei da Identidade de Género, aprovadas pelo Parlamento.

Foi um acontecimento, em particular, passado no outro lado do Atlântico, que fez de junho o mês das celebrações da comunidade LGBTI, como conta o documentário “Stonewall Uprising”. A Batalha de StoneWall, como ficou conhecida, é um dos marcos do movimento global de luta da comunidade arco-íris.

Na verdade, não foi o primeiro. Em 1966, também nos Estados Unidos, mas na cidade de São Francisco, do outro lado do país, houve confusão à séria. Aconteceu no bairro de Tenderloin – uma área de drogas e prostituição controlada e gerida pela polícia local – num dos poucos sítios onde gays, lésbicas, mas sobretudo travestis e pessoas trans se reuniam em segurança: o snack bar Gene Compton’s. Mas a polícia fazia rusgas constantes – espancava e humilhava as pessoas queer. Num dia de agosto desse ano, não se sabe ao certo qual, as bichas fartaram-se e ripostaram, atacaram a polícia e começaram a partir tudo – como conta o documentário “Screaming Queens: The Riot at Compton’s Cafeteria“. Este é o primeiro registo noticiado de uma revolta espontânea contra a brutalidade policial. Como aconteceria mais tarde em StoneWall foram os mais à margem- pessoas trans, travestis, gente que se prostituía e drogava – a revoltar-se contra a violência e exploração que a polícia fazia das suas vidas e dos seus corpos. Foram os não normativos a exigir respeito.

E em Portugal é também pelas Marchas do Orgulho que tem passado uma parte importante da pressão política que, nos últimos anos, trouxe para a lei algumas das reivindicações LGBTI. Como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, aprovado na generalidade, no Parlamento, a 8 de janeiro de 2010 e promulgado a contragosto por Cavaco Silva, à época Presidente da República. A lei entraria em vigor no dia 5 de junho desse ano. Dois dias depois, Teresa Pires e Helena Paixão, que durante anos deram a cara por esta luta, casavam. Mas a lei trazia em si uma contradição discriminatória: vedava aos homossexuais casados o direito de adopção. Foi preciso esperar mais de cinco anos e um braço de ferro político entre o Parlamento e o Presidente da República. Só em novembro de 2015 a Assembleia aprovou a mudança na lei que Cavaco Silva viria a vetar três meses depois. Mas a história não terminaria aí e a alteração acabaria por passar. Desde 1 de março de 2016, que qualquer pessoa solteira, casada, ou unida de facto, pode adoptar uma criança.

Por isso é que eu acho que as marchas são tão importantes (…) Acredito e – infelizmente – que a história mostra que foi sempre através de sangue, de luta, de choque e de visibilidade. E de não ter medo. Essa história do ir muito devagar e tentar normalizar nunca levou a nada.” – João Caçador.

Sim, Lila e Caçador são ativistas. E são fadistas. E são bichas.

Até já.

PS: Se quiserem saber porque que é que a Pequena Sereia é chamada ao título desta reportagem têm mesmo de a ouvir.

Texto: Pedro Miguel Santos e Sofia da Palma Rodrigues
Fotografias: Diogo Cardoso e do Ricardo Venâncio Lopes
Edição de som: Bernardo Afonso

Este trabalho é uma parceria É Apenas Fumaça + Divergente que teve já outras versões complementares publicadas em papel, no Diário de Notícias, e online, em Divergente.pt

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