A vergonha tem de mudar de lado

por Patrícia Portela,    25 Março, 2025
A vergonha tem de mudar de lado

“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte. 

Querida Chéu,

Falas em consideração, respeito, estima, e vem-me à imagem um sem número de pessoas que admiro – que considero, respeito e estimo – e que, penso, não raras vezes, continuam a manter a sanidade dos nossos dias graças à sua incansável labuta diária, quase sempre invisível, quase sempre na sombra, por vezes em lugares de destaque e ainda assim sem a atenção merecida. Estou a pensar em muitos benfeitores da nossa praça e a título de exemplo, salta-me logo à vista o nome de alguém muito próximo, Zeferino Coelho, editor da Caminho (e meu editor) que sem alarme ou alarido publicou no mês passado dois livros de poesia fundamentais para quem deseja continuar vivo e a fazer sentido: “Corpos de Memória”, o último livro de poesia de Hélder Macedo, uma lenda viva que deveria ser apaparicada por um país que aguardará, como sempre, pela sua partida para lhe louvar a arte, a sabedoria (de Camões ao surrealismo), a dedicação (à literatura, à academia, à política), a postura, a seriedade, a partilha sempre tão generosa em cada aula, em cada leitura, em cada conferência; “Chuva de Jasmim”, um livro absolutamente indispensável da palestiniana Shahd Wadi que nos confirma que quando a prosa e a política nos envergonham, a poesia eleva-nos e obriga-nos a tentar estar à altura dos nossos dias.

Quando vivemos num mundo que se aproveita das “modas” (credo! Devia ter vergonha na cara para falar do que acontece por estes dias como “modas) e publica autores com este ou aquele pretexto, ou deste ou daquele país acompanhando as  polémicas mediáticas, é bom reconhecer a diferença entre publicar o que é urgente e o que é simplesmente unânime. Vivemos numa época em que acenamos entusiasticamente com causas óbvias para escondermos o facto de não nos sabermos posicionar em relação às causas prementes.

Falas de um poder potencialmente todo ele corrupto, mas na verdade temos muitos homens e mulheres de magna e excelsa sabedoria que teimamos em que relevar para segundo plano. Sabemos que eles lá estão, sabemos que não vão deixar de fazer o que fazem – pois não conseguem viver de outra maneira – e por isso não os cuidamos, não os respeitamos verdadeiramente, não os consideramos quando estamos em posição de dar este ou aquele apoio, esta ou aquela atenção, este ou aquele elogio. E com estes gestos ausentes, deixamo-los a sós, para escolherem entre a amargura e a ingenuidade convicta, a tristeza profunda e a incompreensão dos tempos que correm.

Falas em honra, e lembro-me da frase de Jorge de Sena na carta aos seus filhos a propósito dos fuzilamentos do dois de maio pintados por Goya, quadro que me persegue há anos e que não largarei até lhe (des)escrever cada espatulada: uma fiel dedicação à honra de estar vivo. Essa dedicação obriga-nos, quais fiéis soldados dos dias úteis, a não olhar para o lado de cada vez que acontece uma catástrofe (como se fosse um alívio não nos ter acontecido a nós!), a não evitar ver um noticiário porque estás farta de notícias (quantas vezes ouves amigas dizerem: ai eu já não vejo telejornais, ou, ai eu já não leio jornais, nem pensar!, dizem sempre a mesma coisa).

Gosto e nutro esta ideia de honra de estar viva. Esta honra não está (nem se defende) entre as pernas, como bem falavas na tua última carta a propósito da ideia de uma mulher honrada ser sinónimo de mulher fiel.  Esta honra está em não deixar morrer tudo o que é digno e merece cuidado (e que, na sua maioria, sejam pessoas, coisas ou acções, não dá lucro monetário, e, por isso, é pouco promovido e apoiado pelos demais).

Temos falado sobre vergonha e tenho pensado muito na vergonha que se tem nos bons gestos, nas boas acções. Uma espécie de vergonha enganada. Já pensaste nas voltas que este mundo deu nos últimos anos? Acompanho a vida social da minha filha adolescente e penso na quantidade de sinais errados e confusos que recebe por dia das redes sociais, do círculo de amigos, dos pais, dos amigos dos pais. Temos falado na vergonha que deve mudar de lado e quase sempre sobre situações em que a vergonha está no lado errado. Mas também há vergonha que não deveria existir de todo, não deveria estar em lado nenhum.

Já pensaste na quantidade de rapazes que têm vergonha de não ser bullies? De não serem uns idiotas e uns brutamontes com as raparigas porque assistem aos seus “populares” companheiros de carteira a serem bem-sucedidos com os seus comportamentos de merda (perdoa-me a linguagem) enquanto eles, bem-educados, bem formados, boas pessoas, são ignorados e votados ao isolamento social?

Já pensaste na quantidade de pessoas que tomam decisões acertadas, que decidem não se comprometerem com determinadas situações que consideram inaceitáveis, mas as escondem porque o seu grupo de amigos, na mó de cima, regozija-se com as suas pequenas traições, com as suas pequenas trafulhices e golpes de baú(zinhos)?

Já pensaste na quantidade de raparigas adolescentes lindas de morrer e cheias de futuros brilhantes pela frente que se mutilam, que deixam de comer, que se endividam para comprarem roupas e maquilhagem descabida para se transformarem naquela beleza que, acham, deveriam ter?

Sei que tens uma filha com 13 anos. Eu, uma com 16. Como avançamos a partir daqui? Que gestos, que exemplos, que limites, que sonhos deveríamos partilhar com elas para que se sintam suficientemente fortes e apoiadas para não terem vergonha de quem são ou desejam ser, independentemente do que o mundo, os namorados e namoradas, os outros desejam delas?

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