Sumol Summer Fest com festa em português
O Sumol Summer Fest reergue-se anualmente como um dos reservatórios principais da defesa do hip-hop. Pela democratização sofrida pelo género, já não desempenha isolado esse papel: festivais por todo o território nacional cedem os lugares cimeiros da programação a estrelas rap, nacionais ou internacionais, reforçando uma tendência (?) que teima em afirmar-se como mais que isso.
Sem ilusões, essa vénia aos instrumentais poderosos e às rimas no estado mais puro não é parte do ADN de um festival com poucos traços identitários: há pragmatismo na opção de oferecer tudo aquilo capaz de ser apetecível ao seu público-alvo. Isso explica a predominância do reggae em 2010 e anos subsequentes, bem como a migração lenta até à oferta de 2018. Joey Bada$$, Vic Mensa, French Montana, Papillon, Rincon Sapiência ou Wet Bed Gang são trunfos a mais, até para quem mesmo partilhando destas opções musicais, configura uma carta fora do baralho no universo Sumol (como nós).
Por muito que se antecipe um festival destes, ninguém está completamente preparado para o ecossistema sui generis que acaba por encontrar no Ericeira Camping. Não é só a viagem de finalistas que muitos de nós não viveram a tempo: há tanta fome de tudo no público do Summer Fest que é quase redutor (só) fazer alusão à sua condição etária.
Sim, esta é a plateia predileta do festival: nova, algo inocente, faminta e movida pela música que doura o cartaz deste ano. É justo e equilibra a balança dos concertos de Verão em Portugal; para ouvintes focados em fait-divers e para públicos maduros e experimentados na criação de consistentíssimas narrativas de Instagram, teremos sempre o Alive.
Música houve de sobra no primeiro dia de comunhão na Ericeira e os primeiros acordes do Palco Sumol chegaram acompanhados pela voz de April Ivy, encarregue de dar início ao certame solarengo. Mariana Gonçalves, prestes a cumprir 19 anos, ligou as máquinas de um recinto que se enchia a conta-gotas. Sem medos e com um reportório bem dividido entre temas originais e covers de levar a plateia aos píncaros. Shut Up, tema-bandeira da artista, dividiu o recinto em dois: metade dançava despudoradamente enquanto a outra metade se beijava sem pudor nenhum.
Seguiram-se hits como Be Ok e No Rules (da autoria da mais recente diva pop internacional, Dua Lipa), num show diverso em que até Shawn Mendes se ouviu. Inesperada foi a chegada de Conductor, subido a palco para estrear ao vivo Frida, o single lançado no mesmo dia. A escolha não podia ter sido mais acertada: é este o cenário idílico para novidades, com um público tão propício e predisposto a primeiras vezes. A nova faixa – com iguais doses de sonoridades latinas e um instrumental estranhamente próximo de I Like It (Cardi B) – conseguiu a proeza de contar com versos do ex – Buraka Som Sistema, normalmente reservado aos pratos e responsável por ritmos de tantos outros artistas nacionais.
Mas no Sumol sabe-se bem ao que se vem e mal o concerto chegava o fim, uma legião de fãs entoava cânticos aguerridos, repetindo “Wet Bed Gang, Wet Bed Gang”. Habituados a não deixar à espera quem tão bem os acarinha, o coletivo da Vialonga subiu a palco à hora agendada e os urros de vitória foram sendo disparados pelo público. Igualmente ladeados por Conductor, começaram e terminaram aqui as semelhanças com o concerto anterior. Não demorou nada até que os presentes se galvanizassem com a faixa responsável por lançar o grupo coqueluche do rap nacional: Não Tens Visto deu-nos algo que efetivamente não nos lembramos de alguma vez ter visto.
Copos voaram, refrões cantaram-se e o que seria um concerto animado porém controlado, transformou-se num motim aberto à segunda música.
Há uma energia característica nos Wet Bed Gang – desta vez acompanhados por baixista, guitarrista, baterista e dj – que é prontamente abraçada pelos ouvintes, quer os mais fiéis, quer aqueles que não lhes conhecendo os êxitos, dificilmente lhes ficam indiferentes.
É duro terminar com justiça e precisão qualquer frase que se inicie com “o hip-hop é”; mesmo assim, Kroa, Zizzy, Zara G e GSon estão a construir algo capaz de perfilar no final dessa sentença, com todo o mérito e propriedade. A simbiose entre os rappers da V-Block e um público que os elegeu como concerto da noite, aliada à harmonia do grupo, é por demais evidente e talvez resulte da imensidão de shows que ofereceram no último ano. Mesmo havendo detalhes a aprimorar, o nível de qualidade verificado – quando comparado a outras atuações dentro do género – destaca-se por longa distância.
Estreou-se ao vivo Devia Ir e como sempre, ficamos a perceber que o maior problema dos Wet Bed Gang é uma questão de foro interno: os vocais, a lírica, a construção métrica e o flow fazem de GSon um dos MC’s mais destacados. Ele retribui ao transformar qualquer gig de guerrilha numa serenata a céu aberto e mesmo quando não quer, é para ele que se direcionam todos os holofotes.
“GSon, dá o que um gajo quer!”, ainda se ouviu alguém implorar.
Ao som de Mais Uma Party assistiu-se a mais uma das aulas de dança docilmente facultadas no Sumol: nem quem não domina a nobre arte de footwork ficou indiferente. Não Sinto despertou os poucos que ainda não entoavam as letras da banda e resultou num coro inusitado, para Aleluia quebrar as resistências de quem ainda não tinha esgotado toda a energia.Os Wet Bed Gang trazem uma oferta musical vasta e extremamente rica, nada enfraquecida pela ausência de hits como Kill’em All ou pela inclusão de faixas a solo como Chaminé (Zara G).
De seguida deu-se o embate de língua portuguesa mais anunciado dos últimos tempos: o Sumol Summer Clash colocou uma armada portuguesa composta por Papillon, Holly Hood, GSon, DJ Big e Sir Scratch a duelar com uma team canarinha de que eram parte Rincon Sapiência, Rashid, Kamau, Drick Barbosa e DJ Nyack. O confronto em solo luso já se adivinhava pouco equilibrado antes de ter começado, nada que as interpretações exímias de Cobras e Ratazanas, Voar, Metamorfose Pt. II ou Impasse (com Plutónio em palco) – da equipa portuguesa – não tenham vincado ainda mais. De batalha a exibição só tinha o nome, assumindo-se mais como uma cimeira de rap em português. Nota para as versões alteradas das faixas com que DJ Big inovou: originais de Da Weasel, Boss AC, Nastyfactor, Sam The Kid, Tim (Xutos e Pontapés) ou Carolina Deslandes fizeram-se ouvir com mudanças subtis a nível da letra, feitas exclusivamente para a ocasião. Elevaram sempre o dj de serviço e configuraram um exercício de ego trippin’ sem precedentes, igualmente representativo da influência de que Big goza no panorama musical português. “O Big ganhou para a vida toda” parece ser, de resto, a única forma capaz de obrigar estes festivaleiros a ouvir (com agrado) Deslandes debitar palavras. No final da sessão pessoal, Big ainda teve a escáfia de chutar “A Bélgica foi só a 1º parte, nós viemos fazer a segunda”.
O desnível reiterado pelo público não desmotivou a seleção brasileira: não se deu por vencida e foi bem-sucedida na arte de levantar uma plateia portuguesa somente com letras cantadas em português do Brasil. Ouviram-se hinos de Gabriel, O Pensador e Marcelo D2, lançados pela acutilância e destreza de Ponta de Lança – salvé Rincon – ou pela popularidade desgarrada de Bum Bum Tam Tam ou Vai Malandra. Bola cá, bola lá e jogadas deslumbrantes de Kamau e Drik Barbosa, homem e mulher a rimar em sintonia, com igual qualidade, sem favoritismos ou desigualdades: isto seria possível em português de Portugal? Na mesa, DJ Nyack segurou com mestria uma exibição com mais presença em palco do que a portuguesa, bem mais confortável com a prestação individual dos seus elementos e sem ter que se lançar à conquista de um público que já estava ganho. Ainda houve direito a hino conjunto de amor à língua portuguesa, com participações de ambos os lados da barricada e um refrão que clamava É Nossa (a língua portuguesa).
Um momento de comunhão memorável e a ponte perfeita entre dois países comprometidos com a valorização do hip-hop e ambos igualmente empenhados em levá-lo a outros pontos do globo.
Não há muito mais a lembrar do dia de ontem, para lá de mencionar que o nome mais esperado – e respetivo cabeça-de-cartaz – configurou também a maior desilusão da noite. French Montana chegou atrasado (foi o único da noite) e trouxe consigo um set recheado de colaborações, confettis e jogos de fumo. É inconcebível que um destaque deste calibre, numa carreira construída de forma dúbia e francamente discutível, se dedique tão pouco à preparação de uma estreia absoluta, num país que não o(s) dele. Até quando teremos que assistir a rappers de milhões com fraca presença em palco, nenhuma capacidade vocal, capacidade de inovação nula e uma dependência demasiado manifesta de auto-tune’s e amplificadores vocais semelhantes. Ainda assim, o marroquino não se coibiu de cantar por cima da própria voz e das próprias faixas, com os elementos pré-gravados a sobrepôr-se muitas vezes ao que era cantado em palco.
O concerto mais antecipado, que registou subidas de temperatura ao som de Nirvana, XXXTentation e Lil Pump, só lançou o prémio de consolação quando já muita da plateia havia desmobilizado: Unforgettable reforçou um problema sintomático, transversal às exibições pertencentes ao género e flagrante na primeira vez de Montana em solo luso: que ilações retirar quando a plateia canta (bem e bem) mais que o artista?
Fotografias de João Amorim / CCA