‘Westworld’: Guia completo da série

por João Estróia Vieira,    15 Outubro, 2016
‘Westworld’: Guia completo da série

Após duas semanas no ar, Westworld tem solidificado a sua posição de sucesso na TV e na Internet, tanto que já se fala de uma segunda temporada. Erradamente olhada com desconfiança por estar a ser apelidada de novo Game of Thrones, a distinção clara entre as duas deveria dispensar comparações sem sentido. É claro, no entanto, o desejo da HBO de ter na sua grelha de programação uma série com capacidade para agregar o número de pessoas que Game of Thrones faz e fez, temporada após temporada. Mas, além disso ser uma tarefa quase impossível, o legado de fantasia criado no imaginário de George R. R. Martin infelizmente está a chegar ao fim e é altura de preparar o futuro.

Provavelmente curiosos pelo hype gerado com esta comparação, Westworld teve um dos melhores resultados de audiências dos últimos largos anos (no Twitter a sua estreia gerou um tráfego 545% superior ao da estreia de Vinyl) igualando a estreia de True Detective. Mas, afinal, não foi só por ser a estreia. O segundo episódio consolidou a série, novamente com um elevado número de espectadores num fim de semana complicado de debate presidencial e de futebol americano – um factor que levou também à disponibilização do segundo episódio em formato online dois dias antes.

Ao assistirmos à nova série da HBO (a sua nova grande aposta após o falhanço Vinyl) estamos não só a ver um Western sci-fi drama (não é fácil rotular Westworld…) composto por um elenco de actores de luxo, mas também uma série dentro de outra série – uma espécie de Inception, nesse aspecto. Baseado no filme homónimo de 1973, Westworld dá-nos a possibilidade de explorar um parque temático futurístico (não sabemos até ao momento a data onde se encontra exactamente) onde humanóides interagem com os humanos que pagam para visitar o parque, proporcionando-lhes todos os seus desejos e aventuras num imaginário cheio de possibilidades e histórias por explorar.

Os “visitantes” vestem-se à Old West e embarcam numa experiência imersiva onde podem fazer o que bem entenderem com – ou com – os “anfitriões”, seres artificiais programados para dar, a quem paga para lá ir, o que eles quiserem experienciar, desde ter relações com prostitutas a entrarem numa busca por foragidos à justiça; de visitarem as casas dos anfitriões a simplesmente matarem os que lhes aparece à frente. Os humanos não podem ser magoados mas podem, por outro lado, disparar sobre os seres artificiais e “matá-los” sem misericórdia.

Westworld, é, nesse sentido, um lugar distópico, opressivo, onde a verdadeira natureza humana vem ao de cima para com não-humanos. Essa ideia de liberdade total quanto a seres em tudo semelhantes a nós confronta-nos connosco mesmos e com os nossos mais primitivos desejos e impulsos com um único objectivo de entretenimento próprio, egoísta.

Todo este leque quase infinito de opções neste parque temático está previamente escrito e faz parte da programação dos andróides feitos no outro local onde se passa a série. O local é um quartel general que segue atentamente todos os passos dados pelos visitantes e andróides dentro do parque. Dirigidas pelo Dr. Ford (Anthony Hopkins), o director criativo do cérebro que criou e idealizou o parque temático, nestas instalações é onde também está a imensa equipa de restantes directores do parque, criadores, seguranças e analistas de software dos andróides, num número vasto o suficiente para ter o parque em funcionamento e em segurança.

(Possíveis spoilers para quem ainda não começou a ver a série)

Os dois primeiros episódios tiveram o condão de abrir duas grandes frentes narrativas em relação ao que se poderá passar no resto da primeira temporada. Por um lado, parece estar em ebulição uma revolta por parte dos andróides, que têm fugido ao “guião” – um pouco como na premissa da série Humans (façam o favor de a ir ver).

Por outro lado, aquele que é, porventura, o foco mais importante da série, começou logo no primeiro episódio. Numa verdadeira lição de storytelling, começamos a conhecer o mundo de Westworld pelos olhos de Dolores Albernathy (Evan Rachel Wood), a mais antiga “anfitriã” do parque, e é através dela que descobrirmos a capacidade dos andróides em armazenar memórias passadas quando tal não se julga possível. Através destas memórias, parecem descobrir em si emoções como o sofrimento, a tristeza, a empatia ou a raiva, pelo menos até certo ponto. Isto coloca-nos não só num óbvia de isto poder estar na origem de uma possível revolta, mas, mais importante que isso, num plano filosófico e de questionamento sobre a IA e o futuro que ela representa para nós.

Logo à partida, mesmo podendo os humanos fazer o que quiserem no parque, a ética, a moral e todo o nosso comportamento são postos em julgamento a partir do momento em que encontramos seres semelhantes a nós, mas apenas no aspecto físico. Até que ponto todos os nossos valores não se colocam facilmente em causa a partir do momento em que podemos fazer com estes andróides tudo o que desejarmos, desde a violá-los, matá-los ou agredi-los.

Mais ainda, até que ponto tudo o que vemos na série muda, se analisarmos todas as acções antes de sabermos que os andróides podem sentir ou recordar? Não é só o que vemos que passa a ser alvo do nosso julgamento mas também nós mesmos pela nossa mudança ou não de pensamento em relação a esse facto. Um pouco do diálogo que o excelente Ex-Machina (ou títulos cinematográficos como A.I. – Inteligência Artificial e I, Robot) nos colocou o ano passado sobre uma temática em tudo semelhante.

O mais interessante em Westworld parece ser o vasto terreno que há ainda a explorar em termos narrativos. Na série, somos tanto espectadores como visitantes do próprio parque.

O facto de se tratar de uma série situada no futuro permite que sejam usadas muitas referências históricas e actuais, sobretudo ao nível da música, maioritariamente contemporânea. A ideia do uso de música já existente para a série partiu de um dos seus criadores, Jonathan Nolan (irmão do reputado Christopher Nolan, o realizador de Inception). Quem trata dos arranjos musicais é Ramin Djawadi, com quem Nolan já tinha trabalhado em Person of Interest. Estes momentos musicais permitem dar à série não só uma nuance de nostalgia como também aliar músicas com uma mensagem já familiar aos nossos ouvidos, aos momentos certos. Mas não é só na música que a série está repleta de referências e citações interessantes debruçando-se sobre outras áreas. São essas mesmas referências que aqui tentamos escrutinar.  Mas não só. Westworld, como seria de esperar numa série do género, também tem gerado discussão à volta de teorias sobre alguns pormenores que têm aparecido nos episódios.

Na Música

Radiohead
No primeiro episódio começou a ouvir-se timidamente e, em jeito de surpresa, uma cover da música No Surprises de Radiohead, do álbum Ok Computer. Ao som de um piano, a letra acaba por ser simbólica em relação à cena que era acompanhada em pano de fundo pela música.

A heart that’s full up like a landfill
A job that slowly kills you
Bruises that won’t heal
You look so tired, unhappy
Bring down the government
They don’t, they don’t speak for us
I’ll take a quiet life
A handshake of carbon monoxide

With no alarms and no surprises
No alarms and no surprises
No alarms and no surprises
Silent, silent”

Uma alegoria em relação aos anfitriões, presos silenciosamente no seu guião numa “vida” que está previamente escrita, definida e aceite mas na qual as memórias, as “bruises” que nunca se curam, existem por defeito e os magoam também.

Johnny Cash
No final desse mesmo episódio começa a tocar a música Ain’t No Grave de Johnny Cash. Com várias interpretações possíveis, pode apontar no sentido de a revolução dos andróides estar aí ao virar da esquina e que nada poderá parar a sua vontade. Por outro lado, e atendendo à fase mais religiosa de J. Cash, remonta para o facto de um corpo estar preso numa campa e disso não impedir a existência da alma e da salvação da mesma. Resta saber se é a nossa ou a “alma”, isto é, o interior dos anfitriões.

Soundgarden e Rolling Stones

O saloon onde tocou a No Surprises é de resto um local pródigo nestes momentos musicais. Outras duas músicas que já lá tocaram foram a Black Hole Sun dos Soundgarden e um arranjo da Paint it Black de Rolling Stones. Duas músicas “negras”, que vêm ambientar o clima nas suas cenas.

Só fica mesmo a faltar uma música de Pearl Jam, atendendo às escolhas feitas até agora. Ou da Every Day Is Exactly The Same dos Nine Inch Nails ou The Nobodies de Marylin Manson.

Cinema

Jurassic Park

Torna-se impossível não assinalar as semelhanças entre Westworld (filme) e Jurassic Park, duas obras do mesmo criador, Michael Crichton. Esta é uma referência enganadora mas impossível de deixar passar de lado. Apesar do filme que deu origem a esta série ser anterior ao realizado por Steven Spielberg, é obrigatório assinalar que em ambos há um parque temático onde as criaturas se revoltam contra os humanos (vamos ver se na série isso se cumpre novamente).

Arte

Da Vinci

Na intro da série é-nos mostrada uma estrutura onde os andróides são concebidos. A semelhança com o Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci não parece inocente. O desenho de Da Vinci, referência ao arquitecto Marco Vitrúvio Polião que, na sua época, já tinha tentado encaixar as proporções de um corpo humano dentro da figura de um quadrado e um círculo. Infrutíferas as tentativas, foi só com Da Vinci que o encaixe saiu perfeito. O Homem Vitruviano é tido como o corpo humano de proporções perfeitas, o que vai de encontro ao facto de Dr. Ford ser também ele um perfeccionista na concepção do seu parque.

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Hieronymous Bosch

“Fará parecer com que Hieronymous Bosch estava a rabiscar gatinhos” foi uma frase dita pelo guionista Lee Sizemore (Simon Quarterman) sobre as suas últimas criações para Westworld. Hieronymous Bosch é pseudónimo do pintor holandês Jeroen van Aeken autor da obra “O Jardim das Delícias Terrenas” que descreve as três fases da vida: criação, paraíso térreo e o inferno.

Literatura

Shakespeare é referido pelo menos quando Peter Albernathy (Louis Herthum) é interrogado pelo Dr. Ford para se perceber a sua actual condição e se está operacional. Tendo sido professor numa outra “vida” dentro do parque, Peter tem referências literárias constantes, mas entre elas está uma recitada a Dr. Ford que parece ser uma trigger phrase capaz de libertar os andróides do seu guião e de estar a provocar com isso uma revolta entre eles e as suas disfuncionalidades. A frase é “these violent delights have violent ends.” Do texto de Romeu e Julieta, a citação parece adivinhar uma mudança de comportamentos que levarão a uma vingança ou a um fim trágico.

By most mechanical and dirty hand…” é outra quote a Shakespeare, desta vez de Henry IV, parte II.

Gertrude Stein

Ainda na conversa com Dr. Ford, Peter quando interrogado sobre a sua identidade cita Gertrude Stein com a frase “a rose is a rose is a rose”. A frase, inspirada também ela em Romeu e Julieta, “a rose by any other name would smell just as sweet”, que significa não interessar a sua identidade, mas sim o seu propósito, quem ele realmente é.

Arthur Conan Doyle

Outra trigger phrase presente em Westworld é também ela uma referência. “Deep and dreamless slumber” está presente na obra de Arthur Conan Doyle, A Study in Scarlet, um dos livros sobre o detective Sherlock Holmes.

Alice do País das Maravilhas

Tanto a própria actriz Evan Rachel Wood como a co-criadora da série Lisa Joy admitiram que a personagem de Dolores é fortemente baseada na de Lewis Carrol. Não só pelo estilo e indumentária, a própria personagem está também num mundo de “fantasia” ao qual ela afirma, perante os técnicos que lhe fazem um check-up num dos episódios, estar num “sonho”, tal como Alice na sua aventura onírica.

Teorias e outros apontamentos

Man in Black

Uma figura estranha tem deambulado e espalhado o terror um pouco por todo o parque de diversões. A personagem de Ed Harris frequenta há anos (trinta, segundo o próprio) o parque e parece agora estar em busca de um “nível” superior presente no mesmo. No mesmo episódio, é referido que a última crise no parque se deu há tanto tempo como os anos em que esta personagem o frequenta. Estará ele ligado a esse acontecimento?

Leite

O leite é uma constante em Westworld. Desde logo na criação dos “anfitriões” que parecem ser construídos numa matéria leitosa. Além disso, são inúmeras as vezes em que os vemos beber ou segurar em leite. Estará somente ligado a ser um alimento essencial no início da nossa própria vida?

Religião

No final do segundo episódio, Dr. Ford vai até ao seu parque temático e parece indicar-nos, num dos últimos momentos, para uma espécie de capela com uma cruz no seu topo. Pode o Dr. Ford querer incutir a presença de um “Deus” no mundo de Westworld? Um “criador” a criar um outro “criador”, passe a redundância. Não deixa de ser ainda mais simbólico quando, momentos antes, Ford tinha “dominado” uma serpente (sendo que aqui há várias possibilidades por a serpente ter diferentes interpretações consoante as culturas à luz da qual a pesquisemos).

As moscas

As moscas são o único animal vivo natural no parque, além dos humanos que o visitam. No primeiro episódio, as moscas apareciam em momentos de maior tensão e desordem nos “anfitriões”. É também referido que esses mesmos “anfitriões” não podem fazer mal a nenhum ser vivo mas, no final desse episódio, mata simbolicamente uma mosca.

Um centro comercial?

Num dos episódios, descemos até um nível do edifício da onde a estrutura do mesmo tem muitas semelhanças com um centro comercial. Terá simplesmente a empresa adquirido o complexo ou haverá outra explicação como, por exemplo, ter havido algum surto ou crise na Terra que levou ao abandono deste espaço?

Westworld é uma série de enorme riqueza de conteúdo onde todos os detalhes levam a um mar de novas possibilidades narrativas (e teorias). Ao livre arbítrio presente nos humanos dentro do parque, houve nos criadores de Westworld uma liberdade criativa perceptível que aliada à sua qualidade técnica nos conquista episódio a episódio.

https://www.youtube.com/watch?v=Kn7HvvhfRCg

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